Palavras de apresentação
Davidson Kaseker
A pedra prendia a porta até que o artista veio pedi-la emprestada para montar uma mostra. Era uma pedra-raio, apenas uma pedra. Na exposição, o artefato lítico foi à vitrine e ganhou legenda. Quando a pedra-raio retornou, não foi devolvida à porta para prendê-la com seu peso. Agora a pedra-raio foi parar na prateleira da sala, toda vistosa, como se fosse uma jóia.
A narrativa ilustra, poeticamente, o fenômeno que ocorre no processo de patrimonialização. Um objeto perde a sua função utilitária e adquire um valor patrimonial por meio da sua ressignificação. Mas qual seria o percurso museal a partir das razões e motivos com base nos quais os objetos ou seus usos se transformam ou são classificados como patrimônio?
Para Waldisa Rússio Guarnieri , o fato museal surge na relação do homem com o objeto e a realidade num cenário institucionalizado, que é o museu. Ou seja, o fato museal não depende de características intrínsecas dos objetos nem tampouco depende exclusivamente dos usos que os homens lhes deem. Não fosse assim eles se sustentariam ativos como razões para decidir aquilo que é patrimônio apesar dos contextos históricos, sociais, econômicos e políticos mudarem? Existirá, pois, uma estrutura de valor patrimonial possível de ser comprovada empiricamente?
Na tentativa de sistematização deste conhecimento com base na existência de um valor patrimonial que fosse capaz de descrever o percurso museal, seguindo as pegadas de Stránský, Cardoso considera que “ao se destruir a relação tripartida entre ‘objecto’, ‘uso’ e ‘valor’, se estava a esvaziar a Museologia do seu corpus de saber” . Ao contrário, desde que seja admitido o valor patrimonial e possível a sua enunciação, o autor reconhece a Museologia no campo mais vasto e básico da investigação dos processos de memória, consolidando-se como ramo autônomo do saber e disciplina científica sobre o patrimônio.
O patrimônio é, então, apresentado como uma categoria de pensamento capaz de organizar a percepção que as pessoas têm de si mesmos e do mundo, exercendo importante função mediadora de ideias, valores e identidades de grupos e categorias sociais. Função que é exercida a partir do ato de classificação dos objetos. “Na medida em que assim classificados e coletivamente reconhecidos, esses objetos desempenham uma função social e simbólica de mediação entre o passado, o presente e o futuro do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e sua integridade no espaço” (GONÇALVES, 2007) .
A dicotomia ‘objetos’ versus ‘usos’ constitui, realmente, um obstáculo sem saída na tentativa de narrar o percurso museal. Ao excluir o valor patrimonial, torna-se refém, por um lado, da materialidade do patrimônio e da respectiva aparência formal ou estética; por outro, dos “usos” ligados ao particularismo próprio de cada contexto histórico-social. Não seria por isso a febre contemporânea de tentar revelar “os argumentos implícitos nos discursos e nas representações” seja a nível ideológico, político, sociocultural, ou outro?
A valer a hipótese de Leroi-Gourhan, da existência de um famoso “instinto de colecionar” , o valor patrimonial corresponderia a um impulso natural próprio da humanidade, uma aptidão inata, portanto um dom biológico. Hoje diríamos, talvez, uma herança genética. Pomian, para quem a operação que transforma os objetos em semióforos ou coleções é resultado da atribuição de um valor que o torna portador de sentido vinculado a uma realidade , explicita desta forma o argumento em cima do qual se construiu todo o restante edifício teórico da museologia e da história do percurso museal.
5Existiria, entretanto, uma estrutura de valor patrimonial que substituísse o “instinto de colecionar” na teoria museológica? Se sim, o que definiria esta estrutura? Os seus elementos constitutivos mantêm-se inalterados ou mudam por efeito de uma influência cultural? É um fenômeno de natureza biológica, ou estritamente sociocultural, sujeito por isso a uma transmissão por aprendizagem? É uma construção social que se realiza coletiva e intrinsecamente ligada por meio da memória a processos identitários?
Na discussão dessa ideia, Hartog indaga se a tendência de se transformar tudo em patrimônio - “assim como se anuncia ou se reclama memórias de tudo, assim tudo seria patrimônio ou suscetível de tornar-se” , não seria um sintoma de que a patrimonialização ou a musealização se aproximam cada vez mais de uma historicização do presente. “Deseja-se museificar, mas mantendo vivo, ou melhor, revitalizar reabilitando. Ter um museu, mas sem o fechamento do museu: aqui ainda, um museu ‘fora dos muros’?” Estaríamos produzindo lugares de patrimônio urbano para inventarmos ou reinventarmos uma história da cidade ou do bairro que acolha a nossa identidade? Porque tudo é museu, temos de preservar o passado para nos proteger do futuro?
A leitura da presente obra – Patrimônios Possíveis: Arte, Redes e Narrativas da Memória em Contexto Ibero-americano contemporâneo – nos propicia o privilégio de poder refletir sobre estas questões ao reunir uma coleção de textos, com saborosas narrativas que exploram e expandem os horizontes conceituais do patrimônio em múltiplas direções e sentidos, formando redes que se interconectam desenhando uma cartografia de afetos e de interesses mútuos.
Para além de discursos acadêmicos rigorosamente estruturados e de incursões em políticas públicas institucionalizadas, evidencia-se a força da construção de territórios patrimoniais sustentada pela experiência da participação direta de sujeitos protagonistas a partir de movimentos sociais debruçados nas temáticas de meio ambiente, direitos humanos, diversidade sexual, direitos da natureza e direitos dos animais, que atuam em rede utilizando-se as redes sociais de comunicação e a arte como veículos e ferramentas narrativas para a visibilização e socialização do intangível, como pontua Marcos Umpièrrez em sua fala em Movimientos Sociales Y Patrimonio.
Com efeito, a emergência identitária como fenômeno essencial da vida pessoal e de mobilização social na era da mundialização, da Internet e da mídia, é um dos maiores paradoxos da sociedade contemporânea.
Transformações socioculturais de distintas paisagens culturais são aqui documentadas por diferentes vozes e referenciadas em diferentes épocas e regiões ibero-americanas. Sem cair na armadilha da ideia de identidade nacional nem tampouco na do etnicismo, tratam da valoração das tradições culturais que, recriadas no presente, identificam os povos e lhes restitui a individualidade como experiência vivida. Mais do que um ato de resistência às poderosas forças hegemônicas da globalização, trata-se do empoderamento de redes e narrativas que, convivendo simultaneamente numa mesma época e contexto territorial, enlaçam afetos e compartilham valores identitários, cultivados em comunhão na busca de um futuro mais justo, menos desigual, menos intolerante e mais equânime, inclusivo e solidário que precisa ser construído no presente. Trata-se, portanto, de perscrutar experiências relacionais que de alguma forma se referenciam a vivências pessoais.
6A memória teria se tornado, assim, reivindicação dos vencidos em tempos de pós-modernidade?
Ou pelo avesso estariam as memórias ocultas, negligenciadas e subalternizadas subvertendo as memórias oficiais mercantilizadas e mercantilizadoras, colocando-se a serviço de uma reeducação libertária para compor uma nova ordem do tempo?
Na cultura contemporânea, afinal, a memória seria um dever ou um direito? Ou ambos simultaneamente?
Sem a pretensão de esgotar a cartografia das paisagens culturais ibero-americanas, a publicação deste e-book pela Universidade Federal de Goiás MediaLab BR, sob a orientação de seus organizadores – Dr. Cleomar Rocha e Dra. Lilian Amaral, mais do que garimpar talentosos investigadores para compor um panorama caleidoscópico dos patrimônios possíveis pensados por diferentes vozes, concretiza-se como um passo decisivo que se soma e se articula à publicação de outro e-book - Cartografias artísticas e territórios poéticos [recurso eletrônico] – também organizado pela professora Lilian Amaral e publicado, em 2015, pela Fundação Memorial da América Latina, para consolidar a atuação da Rede Internacional de Educação Patrimonial na disputa da memória social e política em contexto ibero-americano.
Longe de poder oferecer respostas a tantas indagações, por ora apraz-me constatar em tão diversas narrativas a crença comum de que a constituição da memória como patrimônio deve estar a serviço da construção do futuro, como defendem Hugues de Varine e Andreas Huyssen , ainda que em diferentes momentos e por distintos modos. Com tal confissão, encerro estas palavras acompanhando Waldisa, para quem o museu – e por extensão todo o território patrimonial – deve ser um espaço de mediação, seja entre o patrimônio e a sociedade, seja entre a sociedade e suas utopias.
Boa leitura, boas reflexões!
Mestre em Museologia pelo PPGMUS-USP, desde 2013 é diretor do Grupo Técnico de Coordenação do Sistema Estadual de Museus de São Paulo/ Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.
GUARNIERI, W. R. C. (s/d), 1º Seminário Internacional de Legislação Comparada no Setor de Cultura. In BRUNO, M. C. O. (Org.). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado: Secretaria de Estado da Cultura: Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010. Vol.1, p.147-159.
CARDOSO, Pedro Manuel. A Estrutura do Valor Patrimonial. Cadernos de Sociomuseologia, 41, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias: 2011, p. 148.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O espírito e a matéria: o patrimônio enquanto categoria de pensamento. In: Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônio. Rio de Janeiro, 2007, p. 28.
POMIAN, K. Colecionistas, Aficionados e Curiosos. Paris Y Venecia 1500-1800. In Producciones del sentido: El uso de las fuentes em la historia cultural. Valntina Torres Sptién (coord.) Universidade Iberoamerica, s/d , p. 133-206.
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VARINE-BOHAN, H. As Raízes do Futuro. – O patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2012.
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