Contexto
Nas últimas décadas do século XX a sociedade passava por uma grande mudança, da valorização do modelo baseado em posse de bens de consumo para um modelo baseado em consumo de serviços, sugerindo a valorização da experiência em detrimento da ideia de posse. David Harvey (1996), dentre outros, apontou para essa mudança, identificando ali uma postura diferenciada frente ao mundo. Observando as mudanças geracionais, é possível identificar claramente essa mudança, ocorrida a partir da geração conhecida como Baby Boom, com acento maior ainda nas gerações que se seguiram, a X, Y e a Z.
Em outra abordagem, a sociedade da informação (POLIZELLI e OZAKI, 2007) identifica o vetor de desenvolvimento nos elementos imateriais, centrados na informação e no conhecimento. Com a tecnologia, mais e mais a tônica da imaterialidade, inclusive do objeto dinheiro, se consolida na sociedade que foi moldada pela ciência. Todas essas características desembocam em uma percepção clara de que a experiência desempenha protagonismo enquanto patrimônio pessoal. Na mesma direção, os patrimônios material e imaterial se consolidam como elementos compartilhados de uma cultura, provendo, acima de tudo, inter-relações entre tempos e espaços, contribuindo dinamicamente para que os bens de um povo sejam o diálogo que esse povo consegue estabelecer para além do seu lugar no mundo, para além de seu tempo.
Com efeito, essa perspectiva atualiza o pensamento de John Dewey (2010), com uma caracterização da experiência segundo o advento do tempo presente, deixando para trás o objeto que o inspirou, a arte contemplativa do final do século XIX e início do XX. No tempo presente, a experiência se organiza e se singulariza a partir das experiências social, afetiva, cognitiva e estética, sem se perder pela fragmentação, que é característica de nosso tempo, o Zeitgeist do contemporâneo.
É nesse contexto que as intervenções no Museu Casa de Cora Coralina, realizado pela equipe do Media Lab / UFG se apresenta, tensionando os elementos materiais que compuseram, por longa data e isoladamente, a proposta expográfica, com a substância poética que a casa simboliza, a poesia de Cora Coralina. A imaterialidade do verbo é a peça motriz para o projeto expográfico que atualmente consolida o Museu Casa de Cora Coralina com um museu que ousou, pela tecnologia, aportar a experiência no patrimônio imaterial.
O projeto teve apoio financeiro da Caixa Econômica Federal, a partir de edital de apoio à instituições museológicas.
O Museu Casa de Cora Coralina
O Museu Casa de Cora Coralina é um típico museu voltado para cultuar a personalidade que viveu ali: a casa onde Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 - Goiânia, 10 de abril de 1985) viveu seu últimos anos, e onde ela deu asas para Cora Coralina, seu pseudônimo de reconhecimento mundial (Figura 1). Localizado na cidade de Goiás, foi a primeira capital goiana, guardando nas ruelas calçadas de pedras e no casario colonial, o ar nostálgico de um tempo que se mantém indicialmente presente na cidade histórica.
A mobília simples, lembranças familiares, objetos pessoais e seus títulos e prêmios, certamente em uma disposição expositiva distinta do modo como a poetisa os guardava (Figura 2), formam o material em exposição, além da própria casa, eternizada nos poemas e identificada como a velha casa da ponte. A visita monitorada estabelece não apenas a ordem de apresentação, mas condiciona o percurso da visita, espacial e temporalmente. Explanações sobre os elementos mais notórios da casa, como as peças, prêmios e títulos, além de fragmentos da biografia de Cora Coralina são o texto base para a visita, fio de Ariadne que serve de guia aos visitantes. Com efeito, a visita apresenta a vida de Ana Bretas, mas não exatamente a morada de Cora Coralina, residente na poesia, nos versos que cantam o mundo, a mulher, a velha, a cidade e a sagacidade de quem vê a vida em verso.
O museu, como vários outros no mundo, não exibia exatamente um projeto expográfico, mas uma proposta, baseada a manutenção o mais fiel possível do estilo de vida que notorizou a casa. Por isso mesmo, parecia faltar algo.
O novo projeto expográfico
Em uma proposta realizada ao Media Lab / UFG, de atualizar tecnologicamente o espaço, o Museu recebeu como resposta outra proposta: mudar o foco da visita, dos elementos materiais para a imaterialidade da poesia. O objetivo seria devolver à casa a poesia que inspirou a poetisa.
Para tanto, a perspectiva considerou a passagem da sociedade baseada no consumo de bens para uma sociedade baseada no consumo de serviços (HARVEY, 1996). Mais que isso, considerou que a visita a um museu busca um encontro cultural, de satisfação das necessidades sociais, de auto-realização, cognitiva e estética.
Se o plano anterior estava pautado na satisfação de duas dessas necessidades, a social e a cognitiva, o novo projeto ampliava essa perspectiva, assumindo, na imaterialidade dos versos, o arcabouço para uma experiência também estética.
Partindo dos versos de Cora Coralina, que diz "Terra, água e ar: eis a triângulo da vida", o projeto se organizou para colocar o pulsar de seus versos na terra, na água e no ar. O conjunto de propostas apresentado pelo Media Lab / UFG usou, como elementos base, a tecnologia, a imagem e o som. A tecnologia como recurso midiático para fazer ver e ouvir a poesia coralina. A imagem como elemento verbal da escrita e o som como a poesia em execução, lembrando Saussure (1995).
Fragmentos de versos foram selecionados para serem aplicados em projeções, videomapping e sonorização, ampliando a visita para um encontro com uma casa feita de poesia. A experiência do encontro com as letras no ar (Figura 3), na água (Figura 4) e nos jardins resulta na singularização de uma visita ao museu.
Na sala de entrada do Museu, um videowall convida os visitantes a ver e ouvir a ilustre poetisa (Figura 5). O vídeo é uma contextualização da visita, com o universo de Cora por ela mesma. A estrutura de seis aparelhos de TV dão o tom de aproximação que a tecnologia proporciona. Uma quase viagem no tempo, apresentando a dona da casa, a dona da poesia coralina.
O projeto resultou em um aumento da ordem de trinta e oito porcento (38%) do número de visitantes, despertando novo interesse pelo Museu. O lançamento do projeto rendeu grande exposição em mídia, em veículos impressos, televisivos e digitais. Tais resultados, expressivos, motivou a equipe a implementação de novas intervenções, sendo o projeto contemplado novamente pelo edital da Caixa Econômica Federal. A nova etapa se centra no áudio, levando a poesia para jardins, recantos e paredes, na inscrição poética de paredes que sussurram poesia, concretizando a perspectiva de uma casa feita de poesia.
Conclusão
A inserção da tecnologia no Museu Casa de Cora Coralina é mais que uma constituição de experiência em um museu. Representa, para além da atualização, um encontro entre o patrimônio material, tanto da casa tombada quanto dos elementos identitários ali expostos, com a imaterialidade do verbo que tornou a casa notória, por sua moradora.
O diálogo entre patrimônios, presente no novo projeto expográfico, é um encontro entre o passado e o futuro, entre a memória e a tecnologia, entre o presente e o ausente, entre a materialidade e a imaterialidade.
A repercussão conquistada pelo projeto, tanto em mídia quanto na bilheteria do Museu, são comprovantes efetivos do êxito conquistado pelo projeto, que ressona poesia, com o pragmatismo da economia criativa, do pulsar poético de uma casa, de um museu e de uma voz que representa um povo.
Referências
DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 6 ed. São Paulo: Loyola, 1996.
POLIZELLI, Demerval e OZAKI, Adalton (organizadores). Sociedade da Informação. São Paulo: Saraiva, 2007.
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. 26ª ed. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix: 1995.