PATRIMÔNIOSPOSSÍVEIS

Arte, Rede e Narrativas da Memória em Contexto Iberoamericano

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Arte, Patrimônio e Tecnologia

A experiência como patrimônio

O artigo discute a questão do patrimônio material e imaterial, a partir do projeto expográfico do Museu Casa de Cora Coralina. A materialidade da casa e seu acervo e a imaterialidade da poesia formam o contexto de apresentação das intervenções realizadas pela equipe do Media Lab / UFG. O resultado foi o incremento na bilheteria e grande repercussão midiática, comprovando o êxito do projeto.

Palavras-chave: Patrimônio, Museu, Casa de Cora Coralina

The article discusses the issue of material and immaterial patrimony, based on the exhibition project of the Casa de Cora Coralina Museum. The materiality of the house and its collection and the immateriality of poetry form the context of presentation of the interventions carried out by the Media Lab / UFG team. The result was the increase in the box office and great media repercussion, proving the success of the project.

Keywords: Patrimony, Museum, Casa de Cora Coralina.

Autoria

Cleomar Rocha

Media Lab / UFG


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Contexto

Nas últimas décadas do século XX a sociedade passava por uma grande mudança, da valorização do modelo baseado em posse de bens de consumo para um modelo baseado em consumo de serviços, sugerindo a valorização da experiência em detrimento da ideia de posse. David Harvey (1996), dentre outros, apontou para essa mudança, identificando ali uma postura diferenciada frente ao mundo. Observando as mudanças geracionais, é possível identificar claramente essa mudança, ocorrida a partir da geração conhecida como Baby Boom, com acento maior ainda nas gerações que se seguiram, a X, Y e a Z.

Em outra abordagem, a sociedade da informação (POLIZELLI e OZAKI, 2007) identifica o vetor de desenvolvimento nos elementos imateriais, centrados na informação e no conhecimento. Com a tecnologia, mais e mais a tônica da imaterialidade, inclusive do objeto dinheiro, se consolida na sociedade que foi moldada pela ciência. Todas essas características desembocam em uma percepção clara de que a experiência desempenha protagonismo enquanto patrimônio pessoal. Na mesma direção, os patrimônios material e imaterial se consolidam como elementos compartilhados de uma cultura, provendo, acima de tudo, inter-relações entre tempos e espaços, contribuindo dinamicamente para que os bens de um povo sejam o diálogo que esse povo consegue estabelecer para além do seu lugar no mundo, para além de seu tempo.

Com efeito, essa perspectiva atualiza o pensamento de John Dewey (2010), com uma caracterização da experiência segundo o advento do tempo presente, deixando para trás o objeto que o inspirou, a arte contemplativa do final do século XIX e início do XX. No tempo presente, a experiência se organiza e se singulariza a partir das experiências social, afetiva, cognitiva e estética, sem se perder pela fragmentação, que é característica de nosso tempo, o Zeitgeist do contemporâneo.

É nesse contexto que as intervenções no Museu Casa de Cora Coralina, realizado pela equipe do Media Lab / UFG se apresenta, tensionando os elementos materiais que compuseram, por longa data e isoladamente, a proposta expográfica, com a substância poética que a casa simboliza, a poesia de Cora Coralina. A imaterialidade do verbo é a peça motriz para o projeto expográfico que atualmente consolida o Museu Casa de Cora Coralina com um museu que ousou, pela tecnologia, aportar a experiência no patrimônio imaterial.

O projeto teve apoio financeiro da Caixa Econômica Federal, a partir de edital de apoio à instituições museológicas.

O Museu Casa de Cora Coralina

Fig. 1: Fachada do Museu Casa de Cora Coralina.
Foto: Divulgação

O Museu Casa de Cora Coralina é um típico museu voltado para cultuar a personalidade que viveu ali: a casa onde Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Cidade de Goiás, 20 de agosto de 1889 - Goiânia, 10 de abril de 1985) viveu seu últimos anos, e onde ela deu asas para Cora Coralina, seu pseudônimo de reconhecimento mundial (Figura 1). Localizado na cidade de Goiás, foi a primeira capital goiana, guardando nas ruelas calçadas de pedras e no casario colonial, o ar nostálgico de um tempo que se mantém indicialmente presente na cidade histórica.

Figura 2: Espaço interno do Museu Casa de Cora Coralina.
Foto: Divulgação.
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A mobília simples, lembranças familiares, objetos pessoais e seus títulos e prêmios, certamente em uma disposição expositiva distinta do modo como a poetisa os guardava (Figura 2), formam o material em exposição, além da própria casa, eternizada nos poemas e identificada como a velha casa da ponte. A visita monitorada estabelece não apenas a ordem de apresentação, mas condiciona o percurso da visita, espacial e temporalmente. Explanações sobre os elementos mais notórios da casa, como as peças, prêmios e títulos, além de fragmentos da biografia de Cora Coralina são o texto base para a visita, fio de Ariadne que serve de guia aos visitantes. Com efeito, a visita apresenta a vida de Ana Bretas, mas não exatamente a morada de Cora Coralina, residente na poesia, nos versos que cantam o mundo, a mulher, a velha, a cidade e a sagacidade de quem vê a vida em verso.

O museu, como vários outros no mundo, não exibia exatamente um projeto expográfico, mas uma proposta, baseada a manutenção o mais fiel possível do estilo de vida que notorizou a casa. Por isso mesmo, parecia faltar algo.

O novo projeto expográfico

Em uma proposta realizada ao Media Lab / UFG, de atualizar tecnologicamente o espaço, o Museu recebeu como resposta outra proposta: mudar o foco da visita, dos elementos materiais para a imaterialidade da poesia. O objetivo seria devolver à casa a poesia que inspirou a poetisa.

Para tanto, a perspectiva considerou a passagem da sociedade baseada no consumo de bens para uma sociedade baseada no consumo de serviços (HARVEY, 1996). Mais que isso, considerou que a visita a um museu busca um encontro cultural, de satisfação das necessidades sociais, de auto-realização, cognitiva e estética.

Se o plano anterior estava pautado na satisfação de duas dessas necessidades, a social e a cognitiva, o novo projeto ampliava essa perspectiva, assumindo, na imaterialidade dos versos, o arcabouço para uma experiência também estética.

Partindo dos versos de Cora Coralina, que diz "Terra, água e ar: eis a triângulo da vida", o projeto se organizou para colocar o pulsar de seus versos na terra, na água e no ar. O conjunto de propostas apresentado pelo Media Lab / UFG usou, como elementos base, a tecnologia, a imagem e o som. A tecnologia como recurso midiático para fazer ver e ouvir a poesia coralina. A imagem como elemento verbal da escrita e o som como a poesia em execução, lembrando Saussure (1995).

Fragmentos de versos foram selecionados para serem aplicados em projeções, videomapping e sonorização, ampliando a visita para um encontro com uma casa feita de poesia. A experiência do encontro com as letras no ar (Figura 3), na água (Figura 4) e nos jardins resulta na singularização de uma visita ao museu.

Figura 3: Poesia no vapor de ar, na cozinha de Cora Coralina.
Foto: Cleomar Rocha.
Figura 4: Poesia na água, na bica do Museu Casa de Cora Coralina.
Foto: Cleomar Rocha.
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Na sala de entrada do Museu, um videowall convida os visitantes a ver e ouvir a ilustre poetisa (Figura 5). O vídeo é uma contextualização da visita, com o universo de Cora por ela mesma. A estrutura de seis aparelhos de TV dão o tom de aproximação que a tecnologia proporciona. Uma quase viagem no tempo, apresentando a dona da casa, a dona da poesia coralina.

O projeto resultou em um aumento da ordem de trinta e oito porcento (38%) do número de visitantes, despertando novo interesse pelo Museu. O lançamento do projeto rendeu grande exposição em mídia, em veículos impressos, televisivos e digitais. Tais resultados, expressivos, motivou a equipe a implementação de novas intervenções, sendo o projeto contemplado novamente pelo edital da Caixa Econômica Federal. A nova etapa se centra no áudio, levando a poesia para jardins, recantos e paredes, na inscrição poética de paredes que sussurram poesia, concretizando a perspectiva de uma casa feita de poesia.

Figura 5: Videowall na sala do Museu Casa de Cora Coralina.
Foto: Cleomar Rocha.

Conclusão

A inserção da tecnologia no Museu Casa de Cora Coralina é mais que uma constituição de experiência em um museu. Representa, para além da atualização, um encontro entre o patrimônio material, tanto da casa tombada quanto dos elementos identitários ali expostos, com a imaterialidade do verbo que tornou a casa notória, por sua moradora.

O diálogo entre patrimônios, presente no novo projeto expográfico, é um encontro entre o passado e o futuro, entre a memória e a tecnologia, entre o presente e o ausente, entre a materialidade e a imaterialidade.

A repercussão conquistada pelo projeto, tanto em mídia quanto na bilheteria do Museu, são comprovantes efetivos do êxito conquistado pelo projeto, que ressona poesia, com o pragmatismo da economia criativa, do pulsar poético de uma casa, de um museu e de uma voz que representa um povo.

Referências

DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 6 ed. São Paulo: Loyola, 1996.

POLIZELLI, Demerval e OZAKI, Adalton (organizadores). Sociedade da Informação. São Paulo: Saraiva, 2007.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. 26ª ed. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix: 1995.