A experiência urbana contemporânea mediada pela prática artística nos instiga a sentir, pensar, interpretar e traduzir tais experiências em narrativas poéticas. Iniciando-se na percepção dos sentidos e indo até os níveis mais sofisticados da elaboração do pensamento simbólico, do coletivo, do social e do cultural, a prática artística contemporânea nos oferece alguns expedientes únicos para conseguir destacar o âmbito qualitativo dessa experiência. É assim, como a prática da cartografia artística se consolida como alternativa eficiente, pois, nos permite criar e recriar variadas possibilidades de interpretação e revelação da realidade através dos mais delicados prismas da poiésis.
Experimentar a cidade nunca é uma tarefa fácil. Principalmente, quando se persegue desenvolver a arte e explorar através dela um processo crítico e reflexivo. Uma proposição artística processual e investigativa, como ocorre na elaboração cartográfica cognitiva, nos permite entender com maior profundidade as complexas camadas que resultam da intrincada malha de interesses que se solapam e confrontam na ocupação que a sociedade faz nos territórios urbanos. Principalmente, em situações como ocorre nos contextos locais e iberoamericanos, onde ficamos expostos à evidencia de certos interesses abjetos impostos por determinados grupos de poder. Grupos que agem descaradamente sobre o território em detrimento, não só da preservação da natureza e o meio ambiente, mas do âmbito comum, ou ainda o que é pior, sendo frontalmente contrários a grupos específicos da população, como aqueles que vêm sendo marginalizados e sistematicamente excluídos das benesses do sistema económico e social.
Algumas práticas contemporâneas nas artes visuais e sonoras, como é o caso das cartografias sociais e culturais, encorajam em sua perspectiva crítica e reflexiva a exposição de tais questões, questões cruciais à ocupação do território, pois, deixam transparecer os significados e valores que as alicerçam e consequentemente, o posicionamento de respeito, ou não, que se tem, ou se deveria ter, com o meio ambiente e a dignidade humana. Questões reveladoras dos valores dominantes em que se funda o poder dessas elites.
Por outra parte, a adoção de expedientes criativos, que incluem como pauta a experiência coletiva e colaborativa no desenvolvimento de proposições processuais e investigativas, como ocorre ao transitarmos entre territórios - territórios culturais, afetivos, religiosos, etc. tem configurado novas possibilidades de ação artística que resultam de vital importância na elaboração de cartografias cognitivas, revelando-se, ainda, estratégicas e significativas para a arte contemporânea.
Neste tipo de prática se incluem de maneira incisiva e integrada a sensibilidade e a tecnicidade. Nos sistemas de cartografias sociais e culturais, a ação criativa impulsiona uma perspectiva reflexiva e crítica peculiar, onde o resgate da memória é sempre uma instância salutar. Quando o pensar e o fazer criativo se desenvolvem em meio a um processo coletivo e colaborativo, este usufrui plenamente das estratégias do brainstorming, explorando as perspectivas da interatividade de grupo para gerar mais e melhores ideias. Ao provocar diversas abordagens e sugestões sobre determinados assuntos acrescenta-se uma maior oportunidade de exploração da criatividade.
O sistema de cartografia social proporciona uma experiência única e relevante quando desenvolvida a partir da exploração coletiva. A experiência coletiva sobre um determinado território e seu consequente mapeamento permite integrar as capacidades de observação, leitura e interpretação da realidade social. Práticas artísticas como a cartografia, constituem um enorme desafio, principalmente, quando se propõe pensar o mundo como uma instância fundamental da experimentação social, da memória, do patrimônio e da cultura. Ao se integrar o visual ao sonoro, consequentemente, incluem-se também o âmbito corporal. Estimulam-se os sentidos para uma observação e percepção mais profunda e integral.
86A cartografia artística se converte, desta forma, numa instância de experimentação e reapresentação sensível da realidade e, por tanto, plausível de confrontar as instâncias de análise e reflexão crítica proposta pela arte. É no compartilhamento coletivo dessas impressões que surgem as possibilidades de narrativas diversas e onde se promove a dinâmica que permite afiançar a criação, criando fluxos entre o visível e o invisível, entre o audível e o inaudível, qualidades primordiais de um mapeamento artístico experimental.
O projeto R.U.A. - REALIDADE URBANA AUMENTADA / M.A.U. - MAPEAMENTO ARTÍSTICO URBANO - BAURU busca o desenvolvimento da cartografia social para experimentar a cidade como estudo-intervenção, explorando as centralidades e os limites periféricos, as zonas de contato e suas fronteiras, áreas críticas de transição, pois, concentra-se num local de tensão e conflito, local onde precisamente vem ocorrendo mudanças bruscas de transformação urbana como tivemos a oportunidade de comprovar na experiência artística que desenvolvemos em contextos ibero-americanos, tais como em Porto Alegre / RS, São Paulo, Paranapiacaba e Bauru/SP, Rio de Janeiro/RJ, Fortaleza/CE, em diálogo com outros Grupos de Pesquisa em distintos territórios com perspectivas complementares, como La Red de lo Patrimoniable em Bogotá, Colombia – www.reddelopatrimoniable.com., O Observatório de Educação Patrimonial na Espanha – www.oepe.es e a decorrente Rede Internacional de Educação Patrimonial em contexto ibero-americano – RIEP - http://www.riep-inhe.com/.
Dentro deste intuito de diálogos entre o local e o global que desenvolveu-se o projeto R.U.A. / M.A.U. - BAURU como uma instância de criação coletiva de geopoética, uma cartografia dos sentidos que integrou-se à realização do IX Encontro de Arte e Cultura da FAAC/ UNESP, Campus de Bauru em novembro de 2015.
A experiência realizada no desenvolvimento do projeto "R.U.A. - REALIDADE URBANA AUMENTADA / M.A.U. - MAPEAMENTO ARTÍSTICO URBANO - BAURU (Figura 1) foi dirigido pelos artistas-pesquisadores Profa. Dra. Lilian Amaral (MediaLab UFG) e o Prof. Dr. José Laranjeira (FAAC-UNESP Bauru) como um espaço criativo interdisciplinar e de convergência.
O "R.U.A.- REALIDADE URBANA AUMENTADA / M.A.U. - MAPEAMENTO ARTÍSTICO URBANO, Bauru" parte do desafio de confrontar a realidade urbana brasileira/latino-americana a partir de um trecho periférico da cidade de Bauru, interior do Estado de São Paulo. Uma amostragem que, apesar de encontrar-se circunscrita e ser uma realidade urbana local específica, detêm circunstâncias e características comuns a outras realidades semelhantes que integram a realidade urbana do Brasil e de boa parte da América Latina. Circunstâncias e características que revelam muito do perfil antropológico e os estágios de desenvolvimento comportamental, social e cultural do nosso continente Latino Americano.
No projeto R.U.A./M.A.U-Bauru se exploraram as possibilidades de narrativas audiovisuais não lineares e os processos artísticos colaborativos que ajudaram a visualizar essas zonas de conflito e seu complexo processo de transformação. Durante o desenvolvimento do trabalho foram considerados alguns conceitos fundamentais que norteiam a elaboração da cartografia em contextos urbanos, como a elaboração dos mapas de experimentação do território em território geopoético.
87A ação artística observou as formas de ocupação territorial e o dialogo de suas estruturas com a cidade e o patrimônio cultural contemporâneo. Dentro desse contexto utiliza-se enquanto procedimento metodológico o caminhar como prática estética [CARERI, 2013], as práticas da deriva, as deambulações e outras formas de percursos urbanos. Os levantamentos realizados levaram em consideração as distintas camadas de memorias, palimpsestos urbanos e heterocronias [HERNANDEZ-NAVARRO, 2008] que configuram as distintas fisionomias da cidade contemporânea posto que os artistas propõem pensar uma outra geografia do tempo, atendendo a outras realidades que já não são a do tempo cartográfico ocidental, mas as do conflito topológico da heterocronia: tempo múltiplo, espaço móvel, experiência em construção. Tratou-se, assim, de aprofundar a abordagem “geopoética” a partir de estratégias que incluem tanto a coleta de dados multisensoriais nos diversos contextos geográficos e humanos encontrados quanto suas análises, interpretações e compartilhamento. Estratégias que tiveram a finalidade de qualificar a ação artística para compor uma cartografia sensorial e crítica co-elabor-ativa.
A preparação da prática de compartilhamento ocorreu nas instalações do SESC/Bauru, ao tempo que a elaboração propriamente das ações de cartografia poética tiveram lugar no OEDH-Observatório de Educação em Direitos Humanos, campus universitário da UNESP em Bauru. A cartografia poética foi desenvolvida posteriormente, a partir dos materiais coletados em ”PerfoDerivas - atividades de campo” - realizadas pelos alunos e pesquisadores participantes que se transformaram em co-pesquisadores, co-autores da edição, montagem e georeferenciamento das paisagens sonoras, visuais, olfativas, gustativas, etc. que se integraram nos mapas em camadas, convertidos em cartografias geopoéticas dos sentidos.
Para qualificar a preparação e aprofundar a experiência, ainda mais, contou-se com a realização de uma videoconferência internacional com artistas-pesquisadores do IEMBA- Instituto Escuela Nacional de Bellas Artes da UDELAR- Universidad de la República do Uruguai e liderados pelo pesquisador Daniel Argente, contando, ainda com o pesquisador e artista Marcos Ulpièrrez. A videoconferência celebra o diálogo entre as seguintes Redes de Pesquisa Interinstitucionais: Rede de Narrativas Hipertextuais [NHT] e a Rede de lo Patrimoniable América Latina / Rede Internacional de Educação Patrimonial-RIEP, Brasil e contexto iberoamericano e Observatório de Educação Patrimonial, Espanha.
Pretende-se que, nas artes, particularmente, no âmbito das artes visuais e sonoras, a relação com a realidade urbana esteja sempre pautada por uma disposição intrínseca à observação profunda, dinâmica, relacional, criativa e crítica dessa realidade. Na arte, a observação deverá explorar ao máximo as capacidades perceptivas dos sentidos e intuição. Curiosamente, essa disposição a usufruir plenamente da capacidade sensorial e intuitiva, constitui-se na principal plataforma sensível para outorgar significados no plano intelectual, semântico e criativo. São esses significados particulares que emergem do contato sensível e intuitivo que, confrontados àqueles outros significados que já integram o âmbito coletivo e social, âmbito da cultura e universo simbólico, tecem as tramas das práticas artísticas. A expressão artista adquiri, neste sentido, a responsabilidade de consolidar plenamente no pensamento e na linguagem, a qualidade estética e ética com função poética.
Baseamo-nos na capacidade que possuímos de desenvolver leituras e interpretações do mundo e das realidades sociais por meio das práticas culturais, artísticas e educativas que integram o âmbito corporal, amplificando a percepção através da observação mais aguçada e reveladora de diversas camadas que complementam a ação e intervenção no território como prática artística.
88A experiência urbana R.U.A./M.A.U-Bauru, revelou aspectos fundamentais que convertem a cartografia numa representação artística e cultural da realidade que hoje trabalha com a dinâmica da mudança, criando fluxos entre o visível e o invisível e adquirindo concretude nos mapas resultantes da experimentação e de interpretação de uma realidade que opera simultaneamente em vários níveis, do local ao global, do real ao virtual.
As cartografias artísticas incluem imagens, sons, cheiros, sentimentos, sensações, estados de espírito e sonhos que são tão necessários de serem realizados, quanto outros, como os topográficos, de estradas e redes de comunicação. Como propõe Merleau-Ponty, não se tratou de proporcionar apenas mais informação, mas o que realmente se fez necessário foi deixar o testemunho. E este testemunho que aportamos como narrativa multissensorial, sobretudo, audiovisual, na qualidade de agentes do patrimônio cultural contemporâneo.
A provocação dos sentidos na arte contemporânea fricciona novos e velhos repertórios e tem colocado a existência humana no centro de suas ações com efusiva persistência, como se esta se constituísse verdadeiramente em sua pauta fundamental. A existência humana vem sendo para a arte um acontecimento singular, descontínuo, ahistórico e passível de infinitas transformações. De certo modo, a experiência da contemporaneidade nos permite uma “ultrapassagem” capaz de impulsionar o “construir sobre o construído”, e ainda, colocando-nos fora dos limites tradicionais. Entre suas principais funções destaca-se “a resistência”, entendida como um questionamento constante dos próprios limites, dos próprios axiomas, do próprio lugar, seja em sua relação com o público, seja no âmbito de sua realização, onde se pode adotar o disfarce, a negação, o hibridismo, a contestação e a transformação.
Referir-se às ações de arte contemporânea demanda, entretanto, estabelecer ou possuir um vínculo com o presente na vivencia dos acontecimentos, eventos e processos que ocorrem no eixo diacrônico, e sem subestimar a percepção sutil que emana das sincronicidades como instancias qualitativas que alinhavam uma experiência extensa da realidade no espaço/tempo.
Se levarmos em consideração que contemporâneo é pertencente ou relativo ao tempo ou época em que vivemos, podemos permitir-nos situar com pertinência a contemporaneidade a partir das próprias referências pessoais que possuímos. Nada mais contemporâneo do que a própria vivência, particularmente, aquela que aporta uma experiência qualitativa e sensível e que vimos acumulando ao longo do tempo como experiência artística e cultural. Repertórios que acumulamos no âmbito da percepção, significação e reflexão da realidade a partir do deambular, do caminhar e a deriva como principais estratégias de ação.
Trata-se de instalar o caminhar como prática artística, como exercício privilegiado, cuja ação nos impele a confrontar a realidade com o impulso dinâmico e criativo, próprio do caminhar à deriva. A criação como uma instância qualitativa única de tradução, reflexão e poiésis.
Assim como a palavra enunciada é prática da língua, o caminhar pelo território da cidade é uma prática do sistema urbano, um ato de enunciação da cidade, um exercício da espacialidade que nos permite traduzir a experiência com expressões criativas e poéticas. O caminhar se integra como ação fundamental, como um exercício privilegiado da experiência urbana, transformando-a.
89Parafraseando Certau (1998), nossa história também começa e se faz ao rés do chão, com passos cuja agitação traz um inumerável de singularidades e onde os jogos dos passos que adotamos moldam os espaços. Tecem lugares e é sob esse ponto de vista que nossa motricidade de pedestres forma um sistema real cuja existência faz efetivamente a cidade.
Como lembra Certau,
os jogos dos passos moldam espaços, tecem os lugares e certamente os processos de caminhar podem reportar-se em mapas urbanos de maneira a transcrever-lhes os traços e as trajetórias. Traços que nos remetem à ausência daquilo que experimentamos, vivenciamos, refletimos. Os destaques do percurso perdem o que foi: o próprio ato de passar a operação de ir e de poder vagar o nosso olhar, a atividade de passantes é transposta em pontos, pontos que transportam a experiência a sua representação, uma linha dinâmica, ”totalizante e reversível”. (CERTAU, 1998, p.176)
O visível como operação de registro cartográfico se torna possível. Uma forma de fixar a memória e reverter o seu esquecimento. O traço no mapa recupera a experiência, a prática, o exercício da percepção espacial. Manifesta a voracidade que o sistema geográfico tem e o seu poder de metamorfosear o agir com legibilidade, deixando de lado outras maneiras de estar no mundo.
Se bem é verdade que existe uma ordenação na realidade espacial que organiza o território como conjunto de possibilidades, é o artista, ao caminhar que as atualiza e as destaca. Somos nós, nos registros e inclusão visual e/ou sonora que assumimos a responsabilidade de fazer ser, destacar, fazer aparecer certa ordem espacial e não outra. Exercemos o poder de deslocar e inventar, privilegiando certos aspectos em detrimento de outros. No próprio processo de deslocamento insere-se o poder de escolha ao enfatizar ou ocultar certos aspectos dos lugares, provocando destaques ou concedendo inércia, ou, ainda, condenando ao desaparecimento. No caminhar temos a possibilidade de criar um discurso, um poder retórico intrínseco à caminhada.
Caminhar configura-se, assim, em um ato narrativo. A cidade, por meio do andar como discurso poético, torna-se campo da crítica. As propriedades do território são identificadas e classificadas articulando a reflexão e situando características que resultam dos processos de ocupação, uso e gestão desse território. Percebem-se neles os níveis de investimento, ou descaso, que provêm da indiferença, do desvio ideológico e que resultam na segregação, na contaminação, na doença e na morte da natureza.
O caminhar pela cidade converteu-se em uma experiência de deslocamento de sentidos, ato de enunciação onde a cartografia assumiu a disposição criativa de articulação da vivência no território como apropriação criativa e crítica bem como texto poético.
A experiência cotidiana do território ao imaginar percursos e conceber a sua apresentação cartográfica no mapa poético produz uma geografia da ação ordenando a realidade urbana como metáfora dela mesma.
O enfoque metodológico investido na ação poética foi qualitativo, baseado na Pesquisa em Arte. A atenção à realidade ocorreu de maneira a privilegiar a ação indagativa de forma dinâmica e em vários sentidos, explorando fatos e gerando suas interpretações de forma flexível. As atividades exploratórias serviram para apontar quais seriam as questões mais relevantes, para aprimorá-las e problematiza-las por meio das proposições corporais, textuais, visuais e sonoras que integraram o trabalho de cartografia artística e social.
90O percurso realizado no território, ou seja, a caminhada na região do “Villággio Zero” (Figura 2) durante a experiência RUA / MAU Bauru, apesar de sua singela especificidade, permitiu identificar nitidamente algumas instâncias gerais que integram a experiência antropológica do espaço, onde a dicotomia homem/espaço traz apenas um dos desdobramentos estéticos e éticos possíveis, sendo, ainda, reveladoras de outras tantas questões que puderam ser categorizadas, como por exemplo, a relação homem/natureza, homem/cidade, homem/periferia, importantes dicotomias que estão diretamente vinculadas à presença/ausência do homem no território e que, portanto, são reveladoras de suas ações e seus comportamentos, de sua vivência social e de seus valores simbólicos. Instâncias fundamentais que revelam, das mais diversas formas, as estratégias de ocupação e uso adotadas no território enquanto experiência coletiva, social e cultural. Enfim, um universo com características que se assentam em valores simbólicos transformados em instrumentos e suportes de ação poética e de empoderamento e, portanto, instrumentos de análise e reflexão crítica.
A experiência do andar no projeto artístico processual RUA / MAU Bauru, ainda revelou outras possíveis dicotomias como cidade/natureza e, principalmente, aspectos que referendam seus limites e fronteiras, faixas periféricas onde se pode identificar com maior nitidez a transição e o jogo da sobreposição, da intersecção ou da proporção dos valores imbricados no território. A cidade, a natureza e a periferia ganham destaque como elementos de um organismo urbano regido por valores simbólicos instrumentais de emponderamento. Elementos que, apesar da tentativa de serem regidos pela fragmentação, são altamente interdependentes.
A experiência que desencadeou os primeiros contatos com a realidade do “Villággio Zero”, na cidade de Bauru, esteve pautada por vários níveis de aproximação que se integraram como experiência singular e única, acumulada sobre esse território ao longo de muitos anos. Experiência múltipla e diversa de uma realidade complexa, pois, implicou vários níveis de atravessamentos - poéticos, éticos e estéticos, envolvendo distintos planos de percepção.
É na sobreposição desses vários níveis de aproximação e atravessamentos onde associam-se as diversas condições que determinam as relações que podemos ter como sujeitos e que nos definiriam, ora como cidadãos, moradores, vizinhos, profissionais, educadores, ou simplesmente, pesquisadores, professores de arte ou artistas.
A pesquisa-intervenção R.U.A./M.A.U. - Bauru pautou-se pelo aprofundamento dos estudos da paisagem sonora articulando-os, concomitantemente, com as diferentes possibilidades e dimensões narrativas, textuais e audiovisuais. Acreditamos que estas possuem um significativo potencial expressivo e comunicacional capaz de proporcionar-nos, além de uma garantida visibilidade, uma perspectiva promissora de provocação, que tem um potencial contido para transformação efetiva de algumas circunstâncias problemáticas desse território.
O roteiro da caminhada não foi improvisado, ao contrario, seguiu-se um traçado predeterminado que fora elaborado previamente, baseado em estudos e evidências, assim como na experiência acumulada e no conhecimento que os pesquisadores adquiriram sobre esse território, não só enquanto artistas-pesquisadores, mas principalmente, como moradores e vizinhos dessa região da cidade. O traçado teve a intenção de permitir aos participantes da construção da experiência cartográfica geopoética um contato inicial pautado pela sensibilização e o conflito presente nas dicotomias territoriais.
A sensibilização do grupo permitiu a realização de uma experiência reveladora desse território. Uma experiência que foi disponibilizando inúmeras sensações, à medida que a caminhada avançava e que permitiram efetuar um contato intenso e profundo com as qualidades e os índices que caracterizam as três instâncias norteadoras, identificadas enquanto unidades dicotómicas, pois como já mencionamos, estão associadas diretamente às relações homem/cidade, homem/natureza e homem/periferia, respetivamente. Relações que resultam do desenvolvimento, nesta região da cidade, da apropriação do território durante a ocupação e uso do mesmo, e que identificamos como se se tratassem de unidades relacionais dicotômicas independentes, pois embora se integrem no território, diluindo abruptamente suas fronteiras, permanecem autônomas e indiferentes entre si.
91A expedição fora realizada com o objetivo de mapear, catalogar, analisar e sistematizar os dados e vivências previamente para, posteriormente compartilhar esse material com todos os participantes a fim de co-pesquisarem e co-criarem narrativas geopoéticas multisensoriais. Do contato e experiências nas expedições, resultou um material textual, visual e sonoro precioso acerca da realidade desse território, antes circunscrito a uma experiência pessoal. A experiência realizada desta forma co-elabor-ativa exercitou com plenitude uma dimensão poética, política e pedagógica, incorporando, principalmente, a dimensão coletiva e política, que promoveu o engajamento dos participantes numa discussão reflexiva profunda sobre a realidade encontrada. Discussão, esta, que se alicerçou qualitativamente na dimensão ética e poética por meio da prática artístico, coerente com uma cartografia crítica.
Tivemos o objetivo de preparar os corpos dos pesquisadores participantes para a intervenção performativa com a intenção de produzir narrativas audiovisuais bem como preparar-lhes para atuar no espaço público.
Neste sentido, operamos com os conceitos da Geopoética dos Sentidos (AMARAL, 2014), em diálogo com as idéias de Conrado Beguinot (2008 / 2009) em estreito diálogo com as orientações da educação somática. A intenção desta experiência em Mapa Percurso é, sobretudo, a de possibilitar a quem dele participe ou venha a utilizá-lo como orientação de leitura e interpretação do território, para performar o espaço da rua: caminhar e observar, procurar, descobrir, inventar e encontrar elementos que constituem o espaço pública urbano; organizar seu corpo e seus movimentos para adentrá-lo. Ver, ouvir, contemplar, inter-agir e percorrar toda a sua extensão, compreendendo-a como um corpo feito de pele, músculo e osso. Um sistema vivo. A pele é arquitetura, textura e cores da rua. O músculo são os fluxos, tensionamento, gestos. O osso é vestígio do passado, camada mais profunda e de sustentação da história que se revela no momento presente.
Esta perspectiva em camadas e, especialmente, camadas corporais, são traduções e apropriações poéticas e sensoriais de um trabalho de preparação corporal proposto pelo coreógrafo francês Fabrice Ramalingom. Melissa Bamonte e Érika Moura, responsáveis por um trabalho fundamental de estimular a propriocepção e instrumentalização em dança, possibilitam uma reflexão sobre o corpo híbrido, multidisciplinar e urbano salientado por Valéria Cano Bravi. O pensamento que permeou todo o trabalho corporal está ancorado nas abordagens somáticas propostas por Luciana Bortoleto junto ao AVOA! Núcleo Contemporâneo, que vem integrando as investigações em processo que incorporam a rua como lugar, contexto, espaço habitado por meio da prática artística com base na dança urbana contemporânea, em diálogo com as linguagens textuais, sonoras e visuais. A ativação das camadas descritas, associadas à outras tantas experiências somáticas na rua foram fundamentais para estabelecer a conexão com as conceituações da Geopoética dos Sentidos e da “Cidade de Pedra”, “Cidade Relacional” e “Cidade Imaginada”, propostas por AMARAL(2014). Ao estabelecermos uma relação entre corpo e cidade, podemos aproximar a Cidade de Pedra da Pele, pois ambas são superfície e materialidade que conectam interior e exterior. À “Cidade Relacional” teríamos a associação com os músculos, pois são estes que definem e agenciam os fluxos e movimentos que determinam as dinâmicas corporais e urbanas. E por fim, à “Cidade Imaginada” associamos aos ossos, pois a eles definimos as dimensões de enraizamento, profundidade e memória.
92Pretendíamos produzir e criar no contexto investigativo, tendo como contexto o IX Encontro de Arte e Cultura proposto pela FAAC, UNESP em Bauru, abrindo porosidades para que a pesquisa baseada nas artes estivesse ancorada no território vivo das comunidades, da sociedade, em que a universidade, desta forma, pudesse ampliar os espaços e campos de partilha com os agentes locais em diálogos globais.
Foi assim que, ao longo de três dias, o grupo de participantes liderados e coordenados pelos artistas-pesquisadores Profa. Dra. Lilian Amaral | MediaLab UFG e Prof. Dr. José Laranjeira – FAAC UNESP Bauru, compartilharam uma série de conceitos e procedimentos sobre projetos de arte urbana contemporânea, debruçando-se sobre problemáticas e práticas de arte que subsidiariam, assim, a escolha das estratégias, táticas e proposições metodológicas para sair a campo com vistas ao desenvolvimento das ações poéticas “in situ” a partir do encontro efetivo com o território. A análise do território resultou exaustiva, pois considerou amplas possibilidades do ponto de vista sensorial - visual, auditivo, tátil, olfativo, etc., semântico, recuperando memórias e atribuindo significados, e principalmente, no nível pragmático, onde a experiência coletiva e colaborativa confrontou a dureza do universo simbólico, da exclusão e do descarte urbano e humano.
Em grupos, os participantes partiram para o mapeamento coletivo, a coleta, documentação e registro das distintas paisagens e situações encontradas, verdadeiros índices crus da realidade confrontada. Uma vez realizados os mapeamentos e os registros, esse material passou a ser analisado e processado coletivamente. As ações poéticas deslocaram-se para o território, e por fim, ganharam corpo e concretude em inovadoras e colaborativas narrativas audiovisuais, textuais e performativas, resultados que ao final da imersão, foram apresentadas publicamente aos participantes do IX Encontro de Arte e Cultura, no auditório do SESC BAURU.
O projeto processual previu a apresentação e compartilhamento, também junto à comunidade do “Villággio Zero”, inscrevendo, assim, uma nova instância narrativa que implica na perspectiva dos próprios moradores do “villággio” tornarem-se possíveis narradores e agentes de transformação de sua própria realidade.
Quando há convivência e se detém vinculo afetivo com a comunidade é possível alcançar um convívio poético singular envolvendo os moradores como co-criadores, artógrafos - artistas co-autores de uma mesma narrativa ou texto poético, segundo Rita Irwin [2008], permeados por sentimentos de familiaridade e cumplicidade. Um fenómeno significativo e uma circunstância indispensável, se considerarmos que a comunidade é fechada e seu território restrito, pois não aceita com facilidade a presença de pessoas estranhas e sem nenhum vínculo direto com aquele contexto, uma vez que vivem em áreas ilegais e em frágeis condições vida.
Estabelecer um vinculo com a comunidade pode permitir que o convívio poético se transforme em uma perspectiva emancipatória, criando a condição nos próprios moradores de gerarem seus textos e narrativas em primeira pessoa. Este é um dos sentidos do que estamos formulando em âmbito latino-americano como o patrimoniável [AMARAL, L; FRACASSO, L, 2017], ou seja, aquilo que se define como valor a partir da apropriação, da significação e do vinculo estabelecido entre pessoas, contextos e bens culturais.
A ideia principal que norteou nossas ações, enquanto pesquisadores, sugere que os próprios moradores possam assumir o protagonismo como agentes de transformação. Adotando o papel de sujeitos das ações de transformação, onde o trabalho com arte poderá lhes permitir melhorar consideravelmente a autoestima, ganhar folego e poetizar sobre a realidade, fortalecem-se politicamente, amplificando a reflexão de certas questões e conflitos, tornando-se visíveis ao ponto de poderem legitimar, nas narrativas cartográficas, suas genuínas reivindicações e anseios por respeitabilidade, visibilidade e mudança.
Considerações em processo
Finalmente, podemos concluir que o R.U.A. / M.A.U. Bauru, imprimiu nos sujeitos e territórios implicados nas experiências geopoéticas, novas relações aos entornos urbanos, significando-os como experiência cotidiana. A atividade artística obteve novas relações na cidade como campo poético e político ao reapresentar esses trajetos de interterritorialidades (AMARAL, 2008) como caminhos dialógicos e relacionais, reafirmando a importância da cartografia social contemporânea como vivência profunda do território habitado e mapeado, convertido em uma nova experiência criativa, singular, individual e ao mesmo tempo, coletiva (AMARAL, 2016).
Entretanto, sabemos que o processo não se esgota, pois, apesar de termos alcançado resultados significativos nas proposições e narrativas realizadas, ainda, resta-nos muito a fazer visando promover agora, junto aos moradores do “Villágio Zero” a perspectiva de inscrever com intensidade suas reflexões nas próprias narrativas, legitimando reivindicações e anseios por futuros possíveis.
Referências
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AMARAL, Lilian. Cartografias Artísticas e Territórios Poéticos. E-book. Fundação Memorial da América Latina/Medialab, 2016. http://memorial.org.br/2016/08/livro-download/
AMARAL, Lilian; FRACASSO, Liliana. A faísca dos lugares inquietos. In: ROCHA, C. (org). Ignição. UFG: 2017 (no prelo).
ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. Tradução Frederico Bonaldo. São Paulo: Ed. Gilli, 2013.
CERTAU, Michel. A invenção do quotidiano. Artes do fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
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IRWIN, Rita. A/r/tografia: uma mestiçagem metonímica.In AMARAL, Lilian, BARBOSA, Ana Mae (org). Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo : Editora Senac São Paulo : Edições SESC SP, pgs 87–104, 2008.
LARANJEIRA, José. “Trânsitos Sonoros. El paisaje sonoro a partir de las tramas de la sincronicidad en el arte contemporáneo.”. Thesis de doctorado defendida en el programa: Comportamientos escultóricos: La articulación de la diversidad. Facultad de Bellas Artes. Universidad de Barcelona - UB. Nov. 2014.