PATRIMÔNIOSPOSSÍVEIS

Arte, Rede e Narrativas da Memória em Contexto Iberoamericano

84

Arte, Patrimônio e Tecnologia

Geopoéticas Urbanas: Cartografias dos Sentidos. Laboratório Nômade.

A experiência urbana contemporânea mediada por processos e práticas artísticas nos instiga a sentir, pensar, interpretar e traduzir tais experiências em narrativas poéticas. A presente pesquisa-intervenção parte da percepção dos sentidos e extrapola-os a níveis mais sofisticados da elaboração do pensamento simbólico, do coletivo, do social e do cultural, tendo como método de abordagem práticas transdisciplinares e a cartografia artística, as quais nos permitem imprimir novas relações com os entornos de onde emergerm e são friccionadas novas experiências. A residência artística e investigativa proposta como práxis para desenvolver experiências urbanas na cidade de Bauru em diálogo com uma extensa rede de grupos de pesquisa e coletivos artísticos, resultou na co-pesquisa em processo R.U.A. / M.A.U. – Realidade Urbana Aumentada e Mapeamento Artístico Urbano, respectivamente, desenvolvida no Campus da FAAC na UNESP em Bauru em 2015, revelando aspectos fundamentais que converteram a cartografia em visibilidades e visualidades artísticas e culturais, apontando dinâmicas de transformação, criando fluxos entre o visível e o invisível, entre o real e o virtual, resultando em mapas de experimentação e de interpretação do patrimônio cultural em transformação e da realidade diária que opera simultaneamente em um campo local e global, real e virtual.

Palavras-chave: Arte Contemporânea; Cartografia Artística; Patrimônio Cultural; Inter-territorialidades; Audiovisual.

The contemporary urban experience instigates us on Art, allowing to feel, to think, to interpret, and to translate the experience in poetic narratives. The artistic cartography practice begins with the senses perception, and elevates to the most sophisticated construction of thoughts, on a symbolic, social, and cultural level. This extent of artistic cartography allows new relationships with the surroundings which signifies and re-signifies the experience. The urban experience provided by R.U.A / M.A.U at Bauru in 2015 revealed fundamental aspects that transformed Cartography in an artistic and cultural representation of the reality, which nowadays works according to the dynamics of change, creating a flow between the visible and the invisible, and resulting in maps of cultural heritage in transformation and daily reality’s experimentation and interpretation, operated simultaneously on both local/global and real/virtual levels.

Keywords: Contemporary Art; Artistic Cartography; Cultural Heritage; Inter-territories; Audiovisual

Autoria

Lilian Amaral

Artista Visual, curadora e pesquisadora no campo da arte pública contemporânea, imaginário social e patrimônio cultural. Mestre e Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com Bolsa de Pesquisa internacional junto à Universidade Complutense de Madrid. Pesquisadora do Grupo de Investigação BR::AC “Barcelona, Recerca, Art i Creació” da Universitat de Barcelona. Pós-Doutora em Arte, Ciência e Tecnologia pelo IA/UNESP e Pós-Doutora Capes PNPD junto ao PPG Arte e Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais UFG sendo pesquisadora do MediaLab/UFG. Membro da ANPAP – Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas e da ANIAV – Asociación Nacional de Investigadores em Artes Visuales de España. Dirige a Rede Internacional de Educação Patrimonial em contexto ibero-americano – www.oepe.es. Publica regularmente no Brasil e exterior, integrando inúmeros Conselhos editoriais de periódicos indexados internacionalmente.

José Laranjeira

Artista Visual, Escultor e Designer, Mestre em Artes/IA- UNICAMP e Doutor em Belas Artes pela Universitat de Barcelona. Como pesquisador integra os Grupos de Pesquisa de Arte Sonora: BR::AC “Barcelona, Recerca, Art i Creació” da Universitat de Barcelona e o GIEIES-Grupo Interdisciplinario de Experimentación e Investigación de Escultura Sonora/ UNAM, México. É Professor da FAAC/UNESP desde 1988.


85

A experiência urbana contemporânea mediada pela prática artística nos instiga a sentir, pensar, interpretar e traduzir tais experiências em narrativas poéticas. Iniciando-se na percepção dos sentidos e indo até os níveis mais sofisticados da elaboração do pensamento simbólico, do coletivo, do social e do cultural, a prática artística contemporânea nos oferece alguns expedientes únicos para conseguir destacar o âmbito qualitativo dessa experiência. É assim, como a prática da cartografia artística se consolida como alternativa eficiente, pois, nos permite criar e recriar variadas possibilidades de interpretação e revelação da realidade através dos mais delicados prismas da poiésis.

Experimentar a cidade nunca é uma tarefa fácil. Principalmente, quando se persegue desenvolver a arte e explorar através dela um processo crítico e reflexivo. Uma proposição artística processual e investigativa, como ocorre na elaboração cartográfica cognitiva, nos permite entender com maior profundidade as complexas camadas que resultam da intrincada malha de interesses que se solapam e confrontam na ocupação que a sociedade faz nos territórios urbanos. Principalmente, em situações como ocorre nos contextos locais e iberoamericanos, onde ficamos expostos à evidencia de certos interesses abjetos impostos por determinados grupos de poder. Grupos que agem descaradamente sobre o território em detrimento, não só da preservação da natureza e o meio ambiente, mas do âmbito comum, ou ainda o que é pior, sendo frontalmente contrários a grupos específicos da população, como aqueles que vêm sendo marginalizados e sistematicamente excluídos das benesses do sistema económico e social.

Algumas práticas contemporâneas nas artes visuais e sonoras, como é o caso das cartografias sociais e culturais, encorajam em sua perspectiva crítica e reflexiva a exposição de tais questões, questões cruciais à ocupação do território, pois, deixam transparecer os significados e valores que as alicerçam e consequentemente, o posicionamento de respeito, ou não, que se tem, ou se deveria ter, com o meio ambiente e a dignidade humana. Questões reveladoras dos valores dominantes em que se funda o poder dessas elites.

Por outra parte, a adoção de expedientes criativos, que incluem como pauta a experiência coletiva e colaborativa no desenvolvimento de proposições processuais e investigativas, como ocorre ao transitarmos entre territórios - territórios culturais, afetivos, religiosos, etc. tem configurado novas possibilidades de ação artística que resultam de vital importância na elaboração de cartografias cognitivas, revelando-se, ainda, estratégicas e significativas para a arte contemporânea.

Neste tipo de prática se incluem de maneira incisiva e integrada a sensibilidade e a tecnicidade. Nos sistemas de cartografias sociais e culturais, a ação criativa impulsiona uma perspectiva reflexiva e crítica peculiar, onde o resgate da memória é sempre uma instância salutar. Quando o pensar e o fazer criativo se desenvolvem em meio a um processo coletivo e colaborativo, este usufrui plenamente das estratégias do brainstorming, explorando as perspectivas da interatividade de grupo para gerar mais e melhores ideias. Ao provocar diversas abordagens e sugestões sobre determinados assuntos acrescenta-se uma maior oportunidade de exploração da criatividade.

O sistema de cartografia social proporciona uma experiência única e relevante quando desenvolvida a partir da exploração coletiva. A experiência coletiva sobre um determinado território e seu consequente mapeamento permite integrar as capacidades de observação, leitura e interpretação da realidade social. Práticas artísticas como a cartografia, constituem um enorme desafio, principalmente, quando se propõe pensar o mundo como uma instância fundamental da experimentação social, da memória, do patrimônio e da cultura. Ao se integrar o visual ao sonoro, consequentemente, incluem-se também o âmbito corporal. Estimulam-se os sentidos para uma observação e percepção mais profunda e integral.

86

A cartografia artística se converte, desta forma, numa instância de experimentação e reapresentação sensível da realidade e, por tanto, plausível de confrontar as instâncias de análise e reflexão crítica proposta pela arte. É no compartilhamento coletivo dessas impressões que surgem as possibilidades de narrativas diversas e onde se promove a dinâmica que permite afiançar a criação, criando fluxos entre o visível e o invisível, entre o audível e o inaudível, qualidades primordiais de um mapeamento artístico experimental.

O projeto R.U.A. - REALIDADE URBANA AUMENTADA / M.A.U. - MAPEAMENTO ARTÍSTICO URBANO - BAURU busca o desenvolvimento da cartografia social para experimentar a cidade como estudo-intervenção, explorando as centralidades e os limites periféricos, as zonas de contato e suas fronteiras, áreas críticas de transição, pois, concentra-se num local de tensão e conflito, local onde precisamente vem ocorrendo mudanças bruscas de transformação urbana como tivemos a oportunidade de comprovar na experiência artística que desenvolvemos em contextos ibero-americanos, tais como em Porto Alegre / RS, São Paulo, Paranapiacaba e Bauru/SP, Rio de Janeiro/RJ, Fortaleza/CE, em diálogo com outros Grupos de Pesquisa em distintos territórios com perspectivas complementares, como La Red de lo Patrimoniable em Bogotá, Colombia – www.reddelopatrimoniable.com., O Observatório de Educação Patrimonial na Espanha – www.oepe.es e a decorrente Rede Internacional de Educação Patrimonial em contexto ibero-americano – RIEP - http://www.riep-inhe.com/.

Dentro deste intuito de diálogos entre o local e o global que desenvolveu-se o projeto R.U.A. / M.A.U. - BAURU como uma instância de criação coletiva de geopoética, uma cartografia dos sentidos que integrou-se à realização do IX Encontro de Arte e Cultura da FAAC/ UNESP, Campus de Bauru em novembro de 2015.

A experiência realizada no desenvolvimento do projeto "R.U.A. - REALIDADE URBANA AUMENTADA / M.A.U. - MAPEAMENTO ARTÍSTICO URBANO - BAURU (Figura 1) foi dirigido pelos artistas-pesquisadores Profa. Dra. Lilian Amaral (MediaLab UFG) e o Prof. Dr. José Laranjeira (FAAC-UNESP Bauru) como um espaço criativo interdisciplinar e de convergência.

Figura 1: Banner do Workshop.

O "R.U.A.- REALIDADE URBANA AUMENTADA / M.A.U. - MAPEAMENTO ARTÍSTICO URBANO, Bauru" parte do desafio de confrontar a realidade urbana brasileira/latino-americana a partir de um trecho periférico da cidade de Bauru, interior do Estado de São Paulo. Uma amostragem que, apesar de encontrar-se circunscrita e ser uma realidade urbana local específica, detêm circunstâncias e características comuns a outras realidades semelhantes que integram a realidade urbana do Brasil e de boa parte da América Latina. Circunstâncias e características que revelam muito do perfil antropológico e os estágios de desenvolvimento comportamental, social e cultural do nosso continente Latino Americano.

No projeto R.U.A./M.A.U-Bauru se exploraram as possibilidades de narrativas audiovisuais não lineares e os processos artísticos colaborativos que ajudaram a visualizar essas zonas de conflito e seu complexo processo de transformação. Durante o desenvolvimento do trabalho foram considerados alguns conceitos fundamentais que norteiam a elaboração da cartografia em contextos urbanos, como a elaboração dos mapas de experimentação do território em território geopoético.

87

A ação artística observou as formas de ocupação territorial e o dialogo de suas estruturas com a cidade e o patrimônio cultural contemporâneo. Dentro desse contexto utiliza-se enquanto procedimento metodológico o caminhar como prática estética [CARERI, 2013], as práticas da deriva, as deambulações e outras formas de percursos urbanos. Os levantamentos realizados levaram em consideração as distintas camadas de memorias, palimpsestos urbanos e heterocronias [HERNANDEZ-NAVARRO, 2008] que configuram as distintas fisionomias da cidade contemporânea posto que os artistas propõem pensar uma outra geografia do tempo, atendendo a outras realidades que já não são a do tempo cartográfico ocidental, mas as do conflito topológico da heterocronia: tempo múltiplo, espaço móvel, experiência em construção. Tratou-se, assim, de aprofundar a abordagem “geopoética” a partir de estratégias que incluem tanto a coleta de dados multisensoriais nos diversos contextos geográficos e humanos encontrados quanto suas análises, interpretações e compartilhamento. Estratégias que tiveram a finalidade de qualificar a ação artística para compor uma cartografia sensorial e crítica co-elabor-ativa.

A preparação da prática de compartilhamento ocorreu nas instalações do SESC/Bauru, ao tempo que a elaboração propriamente das ações de cartografia poética tiveram lugar no OEDH-Observatório de Educação em Direitos Humanos, campus universitário da UNESP em Bauru. A cartografia poética foi desenvolvida posteriormente, a partir dos materiais coletados em ”PerfoDerivas - atividades de campo” - realizadas pelos alunos e pesquisadores participantes que se transformaram em co-pesquisadores, co-autores da edição, montagem e georeferenciamento das paisagens sonoras, visuais, olfativas, gustativas, etc. que se integraram nos mapas em camadas, convertidos em cartografias geopoéticas dos sentidos.

Para qualificar a preparação e aprofundar a experiência, ainda mais, contou-se com a realização de uma videoconferência internacional com artistas-pesquisadores do IEMBA- Instituto Escuela Nacional de Bellas Artes da UDELAR- Universidad de la República do Uruguai e liderados pelo pesquisador Daniel Argente, contando, ainda com o pesquisador e artista Marcos Ulpièrrez. A videoconferência celebra o diálogo entre as seguintes Redes de Pesquisa Interinstitucionais: Rede de Narrativas Hipertextuais [NHT] e a Rede de lo Patrimoniable América Latina / Rede Internacional de Educação Patrimonial-RIEP, Brasil e contexto iberoamericano e Observatório de Educação Patrimonial, Espanha.

Pretende-se que, nas artes, particularmente, no âmbito das artes visuais e sonoras, a relação com a realidade urbana esteja sempre pautada por uma disposição intrínseca à observação profunda, dinâmica, relacional, criativa e crítica dessa realidade. Na arte, a observação deverá explorar ao máximo as capacidades perceptivas dos sentidos e intuição. Curiosamente, essa disposição a usufruir plenamente da capacidade sensorial e intuitiva, constitui-se na principal plataforma sensível para outorgar significados no plano intelectual, semântico e criativo. São esses significados particulares que emergem do contato sensível e intuitivo que, confrontados àqueles outros significados que já integram o âmbito coletivo e social, âmbito da cultura e universo simbólico, tecem as tramas das práticas artísticas. A expressão artista adquiri, neste sentido, a responsabilidade de consolidar plenamente no pensamento e na linguagem, a qualidade estética e ética com função poética.

Baseamo-nos na capacidade que possuímos de desenvolver leituras e interpretações do mundo e das realidades sociais por meio das práticas culturais, artísticas e educativas que integram o âmbito corporal, amplificando a percepção através da observação mais aguçada e reveladora de diversas camadas que complementam a ação e intervenção no território como prática artística.

88

A experiência urbana R.U.A./M.A.U-Bauru, revelou aspectos fundamentais que convertem a cartografia numa representação artística e cultural da realidade que hoje trabalha com a dinâmica da mudança, criando fluxos entre o visível e o invisível e adquirindo concretude nos mapas resultantes da experimentação e de interpretação de uma realidade que opera simultaneamente em vários níveis, do local ao global, do real ao virtual.

As cartografias artísticas incluem imagens, sons, cheiros, sentimentos, sensações, estados de espírito e sonhos que são tão necessários de serem realizados, quanto outros, como os topográficos, de estradas e redes de comunicação. Como propõe Merleau-Ponty, não se tratou de proporcionar apenas mais informação, mas o que realmente se fez necessário foi deixar o testemunho. E este testemunho que aportamos como narrativa multissensorial, sobretudo, audiovisual, na qualidade de agentes do patrimônio cultural contemporâneo.

A provocação dos sentidos na arte contemporânea fricciona novos e velhos repertórios e tem colocado a existência humana no centro de suas ações com efusiva persistência, como se esta se constituísse verdadeiramente em sua pauta fundamental. A existência humana vem sendo para a arte um acontecimento singular, descontínuo, ahistórico e passível de infinitas transformações. De certo modo, a experiência da contemporaneidade nos permite uma “ultrapassagem” capaz de impulsionar o “construir sobre o construído”, e ainda, colocando-nos fora dos limites tradicionais. Entre suas principais funções destaca-se “a resistência”, entendida como um questionamento constante dos próprios limites, dos próprios axiomas, do próprio lugar, seja em sua relação com o público, seja no âmbito de sua realização, onde se pode adotar o disfarce, a negação, o hibridismo, a contestação e a transformação.

Referir-se às ações de arte contemporânea demanda, entretanto, estabelecer ou possuir um vínculo com o presente na vivencia dos acontecimentos, eventos e processos que ocorrem no eixo diacrônico, e sem subestimar a percepção sutil que emana das sincronicidades como instancias qualitativas que alinhavam uma experiência extensa da realidade no espaço/tempo.

Se levarmos em consideração que contemporâneo é pertencente ou relativo ao tempo ou época em que vivemos, podemos permitir-nos situar com pertinência a contemporaneidade a partir das próprias referências pessoais que possuímos. Nada mais contemporâneo do que a própria vivência, particularmente, aquela que aporta uma experiência qualitativa e sensível e que vimos acumulando ao longo do tempo como experiência artística e cultural. Repertórios que acumulamos no âmbito da percepção, significação e reflexão da realidade a partir do deambular, do caminhar e a deriva como principais estratégias de ação.

Trata-se de instalar o caminhar como prática artística, como exercício privilegiado, cuja ação nos impele a confrontar a realidade com o impulso dinâmico e criativo, próprio do caminhar à deriva. A criação como uma instância qualitativa única de tradução, reflexão e poiésis.

Assim como a palavra enunciada é prática da língua, o caminhar pelo território da cidade é uma prática do sistema urbano, um ato de enunciação da cidade, um exercício da espacialidade que nos permite traduzir a experiência com expressões criativas e poéticas. O caminhar se integra como ação fundamental, como um exercício privilegiado da experiência urbana, transformando-a.

89

Parafraseando Certau (1998), nossa história também começa e se faz ao rés do chão, com passos cuja agitação traz um inumerável de singularidades e onde os jogos dos passos que adotamos moldam os espaços. Tecem lugares e é sob esse ponto de vista que nossa motricidade de pedestres forma um sistema real cuja existência faz efetivamente a cidade.

Como lembra Certau,

os jogos dos passos moldam espaços, tecem os lugares e certamente os processos de caminhar podem reportar-se em mapas urbanos de maneira a transcrever-lhes os traços e as trajetórias. Traços que nos remetem à ausência daquilo que experimentamos, vivenciamos, refletimos. Os destaques do percurso perdem o que foi: o próprio ato de passar a operação de ir e de poder vagar o nosso olhar, a atividade de passantes é transposta em pontos, pontos que transportam a experiência a sua representação, uma linha dinâmica, ”totalizante e reversível”. (CERTAU, 1998, p.176)

O visível como operação de registro cartográfico se torna possível. Uma forma de fixar a memória e reverter o seu esquecimento. O traço no mapa recupera a experiência, a prática, o exercício da percepção espacial. Manifesta a voracidade que o sistema geográfico tem e o seu poder de metamorfosear o agir com legibilidade, deixando de lado outras maneiras de estar no mundo.

Se bem é verdade que existe uma ordenação na realidade espacial que organiza o território como conjunto de possibilidades, é o artista, ao caminhar que as atualiza e as destaca. Somos nós, nos registros e inclusão visual e/ou sonora que assumimos a responsabilidade de fazer ser, destacar, fazer aparecer certa ordem espacial e não outra. Exercemos o poder de deslocar e inventar, privilegiando certos aspectos em detrimento de outros. No próprio processo de deslocamento insere-se o poder de escolha ao enfatizar ou ocultar certos aspectos dos lugares, provocando destaques ou concedendo inércia, ou, ainda, condenando ao desaparecimento. No caminhar temos a possibilidade de criar um discurso, um poder retórico intrínseco à caminhada.

Caminhar configura-se, assim, em um ato narrativo. A cidade, por meio do andar como discurso poético, torna-se campo da crítica. As propriedades do território são identificadas e classificadas articulando a reflexão e situando características que resultam dos processos de ocupação, uso e gestão desse território. Percebem-se neles os níveis de investimento, ou descaso, que provêm da indiferença, do desvio ideológico e que resultam na segregação, na contaminação, na doença e na morte da natureza.

O caminhar pela cidade converteu-se em uma experiência de deslocamento de sentidos, ato de enunciação onde a cartografia assumiu a disposição criativa de articulação da vivência no território como apropriação criativa e crítica bem como texto poético.

A experiência cotidiana do território ao imaginar percursos e conceber a sua apresentação cartográfica no mapa poético produz uma geografia da ação ordenando a realidade urbana como metáfora dela mesma.

O enfoque metodológico investido na ação poética foi qualitativo, baseado na Pesquisa em Arte. A atenção à realidade ocorreu de maneira a privilegiar a ação indagativa de forma dinâmica e em vários sentidos, explorando fatos e gerando suas interpretações de forma flexível. As atividades exploratórias serviram para apontar quais seriam as questões mais relevantes, para aprimorá-las e problematiza-las por meio das proposições corporais, textuais, visuais e sonoras que integraram o trabalho de cartografia artística e social.

90

O percurso realizado no território, ou seja, a caminhada na região do “Villággio Zero” (Figura 2) durante a experiência RUA / MAU Bauru, apesar de sua singela especificidade, permitiu identificar nitidamente algumas instâncias gerais que integram a experiência antropológica do espaço, onde a dicotomia homem/espaço traz apenas um dos desdobramentos estéticos e éticos possíveis, sendo, ainda, reveladoras de outras tantas questões que puderam ser categorizadas, como por exemplo, a relação homem/natureza, homem/cidade, homem/periferia, importantes dicotomias que estão diretamente vinculadas à presença/ausência do homem no território e que, portanto, são reveladoras de suas ações e seus comportamentos, de sua vivência social e de seus valores simbólicos. Instâncias fundamentais que revelam, das mais diversas formas, as estratégias de ocupação e uso adotadas no território enquanto experiência coletiva, social e cultural. Enfim, um universo com características que se assentam em valores simbólicos transformados em instrumentos e suportes de ação poética e de empoderamento e, portanto, instrumentos de análise e reflexão crítica.

A experiência do andar no projeto artístico processual RUA / MAU Bauru, ainda revelou outras possíveis dicotomias como cidade/natureza e, principalmente, aspectos que referendam seus limites e fronteiras, faixas periféricas onde se pode identificar com maior nitidez a transição e o jogo da sobreposição, da intersecção ou da proporção dos valores imbricados no território. A cidade, a natureza e a periferia ganham destaque como elementos de um organismo urbano regido por valores simbólicos instrumentais de emponderamento. Elementos que, apesar da tentativa de serem regidos pela fragmentação, são altamente interdependentes.

A experiência que desencadeou os primeiros contatos com a realidade do “Villággio Zero”, na cidade de Bauru, esteve pautada por vários níveis de aproximação que se integraram como experiência singular e única, acumulada sobre esse território ao longo de muitos anos. Experiência múltipla e diversa de uma realidade complexa, pois, implicou vários níveis de atravessamentos - poéticos, éticos e estéticos, envolvendo distintos planos de percepção.

É na sobreposição desses vários níveis de aproximação e atravessamentos onde associam-se as diversas condições que determinam as relações que podemos ter como sujeitos e que nos definiriam, ora como cidadãos, moradores, vizinhos, profissionais, educadores, ou simplesmente, pesquisadores, professores de arte ou artistas.

A pesquisa-intervenção R.U.A./M.A.U. - Bauru pautou-se pelo aprofundamento dos estudos da paisagem sonora articulando-os, concomitantemente, com as diferentes possibilidades e dimensões narrativas, textuais e audiovisuais. Acreditamos que estas possuem um significativo potencial expressivo e comunicacional capaz de proporcionar-nos, além de uma garantida visibilidade, uma perspectiva promissora de provocação, que tem um potencial contido para transformação efetiva de algumas circunstâncias problemáticas desse território.

O roteiro da caminhada não foi improvisado, ao contrario, seguiu-se um traçado predeterminado que fora elaborado previamente, baseado em estudos e evidências, assim como na experiência acumulada e no conhecimento que os pesquisadores adquiriram sobre esse território, não só enquanto artistas-pesquisadores, mas principalmente, como moradores e vizinhos dessa região da cidade. O traçado teve a intenção de permitir aos participantes da construção da experiência cartográfica geopoética um contato inicial pautado pela sensibilização e o conflito presente nas dicotomias territoriais.

A sensibilização do grupo permitiu a realização de uma experiência reveladora desse território. Uma experiência que foi disponibilizando inúmeras sensações, à medida que a caminhada avançava e que permitiram efetuar um contato intenso e profundo com as qualidades e os índices que caracterizam as três instâncias norteadoras, identificadas enquanto unidades dicotómicas, pois como já mencionamos, estão associadas diretamente às relações homem/cidade, homem/natureza e homem/periferia, respetivamente. Relações que resultam do desenvolvimento, nesta região da cidade, da apropriação do território durante a ocupação e uso do mesmo, e que identificamos como se se tratassem de unidades relacionais dicotômicas independentes, pois embora se integrem no território, diluindo abruptamente suas fronteiras, permanecem autônomas e indiferentes entre si.

91

A expedição fora realizada com o objetivo de mapear, catalogar, analisar e sistematizar os dados e vivências previamente para, posteriormente compartilhar esse material com todos os participantes a fim de co-pesquisarem e co-criarem narrativas geopoéticas multisensoriais. Do contato e experiências nas expedições, resultou um material textual, visual e sonoro precioso acerca da realidade desse território, antes circunscrito a uma experiência pessoal. A experiência realizada desta forma co-elabor-ativa exercitou com plenitude uma dimensão poética, política e pedagógica, incorporando, principalmente, a dimensão coletiva e política, que promoveu o engajamento dos participantes numa discussão reflexiva profunda sobre a realidade encontrada. Discussão, esta, que se alicerçou qualitativamente na dimensão ética e poética por meio da prática artístico, coerente com uma cartografia crítica.

Tivemos o objetivo de preparar os corpos dos pesquisadores participantes para a intervenção performativa com a intenção de produzir narrativas audiovisuais bem como preparar-lhes para atuar no espaço público.

Neste sentido, operamos com os conceitos da Geopoética dos Sentidos (AMARAL, 2014), em diálogo com as idéias de Conrado Beguinot (2008 / 2009) em estreito diálogo com as orientações da educação somática. A intenção desta experiência em Mapa Percurso é, sobretudo, a de possibilitar a quem dele participe ou venha a utilizá-lo como orientação de leitura e interpretação do território, para performar o espaço da rua: caminhar e observar, procurar, descobrir, inventar e encontrar elementos que constituem o espaço pública urbano; organizar seu corpo e seus movimentos para adentrá-lo. Ver, ouvir, contemplar, inter-agir e percorrar toda a sua extensão, compreendendo-a como um corpo feito de pele, músculo e osso. Um sistema vivo. A pele é arquitetura, textura e cores da rua. O músculo são os fluxos, tensionamento, gestos. O osso é vestígio do passado, camada mais profunda e de sustentação da história que se revela no momento presente.

Esta perspectiva em camadas e, especialmente, camadas corporais, são traduções e apropriações poéticas e sensoriais de um trabalho de preparação corporal proposto pelo coreógrafo francês Fabrice Ramalingom. Melissa Bamonte e Érika Moura, responsáveis por um trabalho fundamental de estimular a propriocepção e instrumentalização em dança, possibilitam uma reflexão sobre o corpo híbrido, multidisciplinar e urbano salientado por Valéria Cano Bravi. O pensamento que permeou todo o trabalho corporal está ancorado nas abordagens somáticas propostas por Luciana Bortoleto junto ao AVOA! Núcleo Contemporâneo, que vem integrando as investigações em processo que incorporam a rua como lugar, contexto, espaço habitado por meio da prática artística com base na dança urbana contemporânea, em diálogo com as linguagens textuais, sonoras e visuais. A ativação das camadas descritas, associadas à outras tantas experiências somáticas na rua foram fundamentais para estabelecer a conexão com as conceituações da Geopoética dos Sentidos e da “Cidade de Pedra”, “Cidade Relacional” e “Cidade Imaginada”, propostas por AMARAL(2014). Ao estabelecermos uma relação entre corpo e cidade, podemos aproximar a Cidade de Pedra da Pele, pois ambas são superfície e materialidade que conectam interior e exterior. À “Cidade Relacional” teríamos a associação com os músculos, pois são estes que definem e agenciam os fluxos e movimentos que determinam as dinâmicas corporais e urbanas. E por fim, à “Cidade Imaginada” associamos aos ossos, pois a eles definimos as dimensões de enraizamento, profundidade e memória.

92

Pretendíamos produzir e criar no contexto investigativo, tendo como contexto o IX Encontro de Arte e Cultura proposto pela FAAC, UNESP em Bauru, abrindo porosidades para que a pesquisa baseada nas artes estivesse ancorada no território vivo das comunidades, da sociedade, em que a universidade, desta forma, pudesse ampliar os espaços e campos de partilha com os agentes locais em diálogos globais.

Foi assim que, ao longo de três dias, o grupo de participantes liderados e coordenados pelos artistas-pesquisadores Profa. Dra. Lilian Amaral | MediaLab UFG e Prof. Dr. José Laranjeira – FAAC UNESP Bauru, compartilharam uma série de conceitos e procedimentos sobre projetos de arte urbana contemporânea, debruçando-se sobre problemáticas e práticas de arte que subsidiariam, assim, a escolha das estratégias, táticas e proposições metodológicas para sair a campo com vistas ao desenvolvimento das ações poéticas “in situ” a partir do encontro efetivo com o território. A análise do território resultou exaustiva, pois considerou amplas possibilidades do ponto de vista sensorial - visual, auditivo, tátil, olfativo, etc., semântico, recuperando memórias e atribuindo significados, e principalmente, no nível pragmático, onde a experiência coletiva e colaborativa confrontou a dureza do universo simbólico, da exclusão e do descarte urbano e humano.

Em grupos, os participantes partiram para o mapeamento coletivo, a coleta, documentação e registro das distintas paisagens e situações encontradas, verdadeiros índices crus da realidade confrontada. Uma vez realizados os mapeamentos e os registros, esse material passou a ser analisado e processado coletivamente. As ações poéticas deslocaram-se para o território, e por fim, ganharam corpo e concretude em inovadoras e colaborativas narrativas audiovisuais, textuais e performativas, resultados que ao final da imersão, foram apresentadas publicamente aos participantes do IX Encontro de Arte e Cultura, no auditório do SESC BAURU.

O projeto processual previu a apresentação e compartilhamento, também junto à comunidade do “Villággio Zero”, inscrevendo, assim, uma nova instância narrativa que implica na perspectiva dos próprios moradores do “villággio” tornarem-se possíveis narradores e agentes de transformação de sua própria realidade.

Quando há convivência e se detém vinculo afetivo com a comunidade é possível alcançar um convívio poético singular envolvendo os moradores como co-criadores, artógrafos - artistas co-autores de uma mesma narrativa ou texto poético, segundo Rita Irwin [2008], permeados por sentimentos de familiaridade e cumplicidade. Um fenómeno significativo e uma circunstância indispensável, se considerarmos que a comunidade é fechada e seu território restrito, pois não aceita com facilidade a presença de pessoas estranhas e sem nenhum vínculo direto com aquele contexto, uma vez que vivem em áreas ilegais e em frágeis condições vida.

Estabelecer um vinculo com a comunidade pode permitir que o convívio poético se transforme em uma perspectiva emancipatória, criando a condição nos próprios moradores de gerarem seus textos e narrativas em primeira pessoa. Este é um dos sentidos do que estamos formulando em âmbito latino-americano como o patrimoniável [AMARAL, L; FRACASSO, L, 2017], ou seja, aquilo que se define como valor a partir da apropriação, da significação e do vinculo estabelecido entre pessoas, contextos e bens culturais.

A ideia principal que norteou nossas ações, enquanto pesquisadores, sugere que os próprios moradores possam assumir o protagonismo como agentes de transformação. Adotando o papel de sujeitos das ações de transformação, onde o trabalho com arte poderá lhes permitir melhorar consideravelmente a autoestima, ganhar folego e poetizar sobre a realidade, fortalecem-se politicamente, amplificando a reflexão de certas questões e conflitos, tornando-se visíveis ao ponto de poderem legitimar, nas narrativas cartográficas, suas genuínas reivindicações e anseios por respeitabilidade, visibilidade e mudança.

Figura 2: experiências cartográficas geopoêticas no território. Acervo R.U.A./M.A.U.
93

Considerações em processo

Finalmente, podemos concluir que o R.U.A. / M.A.U. Bauru, imprimiu nos sujeitos e territórios implicados nas experiências geopoéticas, novas relações aos entornos urbanos, significando-os como experiência cotidiana. A atividade artística obteve novas relações na cidade como campo poético e político ao reapresentar esses trajetos de interterritorialidades (AMARAL, 2008) como caminhos dialógicos e relacionais, reafirmando a importância da cartografia social contemporânea como vivência profunda do território habitado e mapeado, convertido em uma nova experiência criativa, singular, individual e ao mesmo tempo, coletiva (AMARAL, 2016).

Entretanto, sabemos que o processo não se esgota, pois, apesar de termos alcançado resultados significativos nas proposições e narrativas realizadas, ainda, resta-nos muito a fazer visando promover agora, junto aos moradores do “Villágio Zero” a perspectiva de inscrever com intensidade suas reflexões nas próprias narrativas, legitimando reivindicações e anseios por futuros possíveis.

Referências

AMARAL, Lilian; BARBOSA, Ana Mae. Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo : Editora Senac São Paulo : Edições SESC SP, 2008.

AMARAL, Lilian. Cartografias Artísticas e Territórios Poéticos. E-book. Fundação Memorial da América Latina/Medialab, 2016. http://memorial.org.br/2016/08/livro-download/

AMARAL, Lilian; FRACASSO, Liliana. A faísca dos lugares inquietos. In: ROCHA, C. (org). Ignição. UFG: 2017 (no prelo).

ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. Tradução Frederico Bonaldo. São Paulo: Ed. Gilli, 2013.

CERTAU, Michel. A invenção do quotidiano. Artes do fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

HERNANDEZ-NAVARRO, M. A. Presentación. Antagonismos temporales. In: HERNANDEZ-NAVARRO, M. A.. (org). Heterocronías. Tiempo, arte y arqueologías del presente. Murcia: CENDEAC, 2008.

IRWIN, Rita. A/r/tografia: uma mestiçagem metonímica.In AMARAL, Lilian, BARBOSA, Ana Mae (org). Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo : Editora Senac São Paulo : Edições SESC SP, pgs 87–104, 2008.

LARANJEIRA, José. “Trânsitos Sonoros. El paisaje sonoro a partir de las tramas de la sincronicidad en el arte contemporáneo.”. Thesis de doctorado defendida en el programa: Comportamientos escultóricos: La articulación de la diversidad. Facultad de Bellas Artes. Universidad de Barcelona - UB. Nov. 2014.