PATRIMÔNIOSPOSSÍVEIS

Arte, Rede e Narrativas da Memória em Contexto Iberoamericano

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Arte, Patrimônio e Tecnologia

Parque Ampliado do Pajeú: uma Abordagem Site-specific com uso de Locative media

O Riacho Pajeú é um recurso hídrico de fundamental importância histórica e ambiental para a cidade de Fortaleza que foi apagado do espaço físico e simbólico. Este artigo apresenta as investigações realizadas na dissertação de Mestrado de mesmo título sobre as possibili-dades de apropriação pelas artes das chamadas práticas locative media no contexto do ria-cho Pajeú como espaço ampliado pelo tempo, memórias, relações econômicas e políticas, bem como pelas tecnologias digitais de comunicação e localização. Diante do apagamento do riacho e das possibilidades de ampliação do espaço, emergem as questões: como nos apropriarmos das mídias locativas para discutir o apagamento nesse contexto específico? Como somar as virtualidades desses dispositivos às virtualidades do espaço para construir um Parque ampliado do Pajeú?

Palavras-chave: Locative Media; Site-Specific; Cidade; Espaço; Apagamento.

The Pajeú creek is a watercourse of fundamental historical and environmental relevance in Fortaleza, Brazil, which has been erased from the city’s physical and symbolic space. This article presents the investigations developed in the master’s thesis of the same title regarding the possibilities of appropriation by the arts of the so-called locative media practices in the specific context of the Pajeú creek as a space expanded by time, stories, memories, eco-nomic and political relations even as digital technologies of communication and location. In face of the creek’s erasure and its current possibilities of spatial expansion, questions emerge: how to take hold of locative media, in order to discuss the process of erasure in this specific context? How to add the virtualities of devices to the virtualities of space to create an augmented park for the Pajeú creek?

Keywords: Locative Media; Site-Specific; City; Space; Erasure.

Autoria

Cecília Andrade

Cesar Baio/UFC


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O Riacho Pajeú é um recurso hídrico de fundamental importância histórica e ambien-tal para a cidade de Fortaleza mas que foi, aos poucos, apagado do espaço físico e simbólico. Na pesquisa de mestrado em Artes “Parque ampliado do Pajeú: uma abordagem site-specific com uso de locative media” (Teixeira, 2017), orientada pelo Prof. Dr. Cesar Baio, exploramos as possibilidades das mídias locativas digitais (dis-positivos móveis de comunicação associadas a tecnologias de localização) como ferramentas de hiperlinkagem entre espaço físico e ciberespaço no contexto especí-fico do riacho Pajeú.

Diante do apagamento desse elemento e das possibilidades atuais de ampliação do espaço pela adição de camadas informacionais digitais, colocamos as questões: como discutir o apagamento no contexto específico do riacho Pajeú utilizando as potencialidades de ampliação da realidade criadas pelas mídias locativas? Como somar as virtualidades desses dispositivos às virtualidades do espaço para construir um Parque ampliado do Pajeú?

Objetivamos investigar as apropriações pelas Artes das chamadas práticas locative media para produzir um espaço desviante, ou seja, um espaço na contramão da agenda dominante, no contexto do riacho Pajeú. Buscamos também colaborar para a discussão sobre a produção social do espaço a partir deste contexto específico; tensionar visibilidade e apagamento; ampliar a discussão sobre uma arte de cami-nhar como forma de apropriação simbólica, escritura e leitura da cidade.

Da multidimensionalidade do espaço à abordagem site-specific

Os campos da Arquitetura e da Geografia assumem, a partir de vários autores, a multidimensionalidade do espaço, acrescentando, às três dimensões geométricas, o tempo como deslocamento (Zevi, 1996), como meio de produção de significado (Tuan, 1983) e como a dimensão histórica, que juntamente com a natureza são os componentes do próprio espaço (Argan,1966).

Do ponto de vista de Henri Lefebvre (2006), o espaço é uma unidade de três dimen-sões interconectadas e de dupla natureza, que agrega, por um lado (pela fenomeno-logia), o que o autor denomina níveis do real, e, por outro (pela linguística e semióti-ca), o que o autor designa momentos do real, formando três pares: espaço percebi-do–práticas espaciais; espaço concebido–representações do espaço; e espaço vivi-do–espaços de representação.

A partir dos estudos de linguagem, Lefebvre denomina a dimensão material do es-paço de Práticas espaciais, formadas pelas redes de interação, comunicação, pro-dução e troca; em Representações do espaço, Lefebvre abrange a produção de co-nhecimento: linguagem e palavra escrita, mapas e plantas, informação em fotos e signos dentre as representações do espaço, compreendidos por ele como formas de poder concreto; o autor designa, por fim, de Espaços de representação as formas de significação do espaço.

Pelo lado da fenomenologia, este autor chama Espaço percebido tudo que se apre-senta aos sentidos: a visão, a audição, o olfato, o tato e o paladar. Esse aspecto sensualmente perceptivo do espaço relaciona-se diretamente com a materialidade dos elementos que constituem o espaço. Espaço concebido presume um ato de pensamento que é ligado à produção do conhecimento. Espaço vivido é a terceira dimensão da produção do espaço e corresponde à experiência vivida do espaço, significando o mundo assim como ele é experimentado pelos seres humanos, na prática de sua vida cotidiana – e, assim, produzindo lugares. Essas três dimensões do percebido, concebido e vivido precisam ser entendidas como sendo equivalentes. Nenhuma delas pode ser imaginada como a origem absoluta, e nenhuma das di-mensões é privilegiada. No entanto, sobre a dimensão do vivido, Lefebvre é taxativo: ele é irredutível pela análise teórica, só podendo ser expresso com meios artísticos.

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Para Milton Santos (2008), o espaço é um sistema de objetos e de ações, os quais, somados à técnica e ao tempo, seriam dimensões do espaço geográfico na perspec-tiva do mundo vivido. Segundo o autor, pela primeira vez na história o sistema de objetos tende a ser o mesmo por toda parte (computadores, satélites artificiais, inter-net, telefonia móvel, etc.) e representa um sistema técnico interligado. Portanto, atu-almente, seria impossível pensar o conceito de espaço sem considerar o processo de globalização que conforma o atual período técnico-científico-informacional per-meando entre as escalas de nível planetário, nível nacional e nível regional e local.

Concordando com esse geógrafo, consideramos que, no atual período, os espaços urbanos se constituem também das “novas redes telemáticas” que o atravessam e preenchem, o que André Lemos (2007) chama de espaço informacional. Com as novas tecnologias computacionais, a informação é uma camada da realidade que, além de contextualizada e dinâmica, pode ser multimídia, responsiva e individualiza-da. Essa nova condição é o que Lev Manovich (2006) intitula de augmented space: espaço físico sobreposto (ou ampliado) com camadas de informação dinâmicas, mais como prática cultural e estética que como tecnologia.

As abordagens site-specific são procedimentos artísticos que produzem obras que dialogam fortemente com o espaço a partir do qual são criadas, respondendo aos aspectos desses lugares específicos. Segundo Miown Kown (2008), as práticas site-specific atuais (que a autora chama site-specificity), para além de considerar apenas os aspectos físicos/topográficos do espaço, atuam a partir das dimensões sociais e políticas, buscando um maior engajamento com o mundo externo e com a vida coti-diana, realizando uma crítica da cultura que inclui os espaços não especializados, instituições não especializadas e questões não especializadas em arte, expandindo sua atuação para fora dos espaços protegidos da arte, mas também produzindo uma expansão das artes em direção a outras disciplinas, como a antropologia, a sociolo-gia, a arquitetura, a informática etc., buscando trabalhar mais no interesse público do que necessariamente no espaço público.

A partir dessa noção multidimensional do espaço, ampliado não só pelo tempo, histórias, memórias, relações econômicas, influências políticas, como também pelas várias redes e dispositivos que agregam a ele dimensões informacionais digitais, entendemos, no trabalho apresentado, as apropriações pela arte de tecnologias e práticas mídias locativas como formas atuais de abordagem site-specific.

Desenvolvemos na pesquisa de mestrado uma abordagem site-specific que se refle-te na estrutura deste artigo: em Mergulho apresentamos as dimensões físicas e dis-cursivas do site; em Problema expomos os mecanismos de apagamento descober-tos na pesquisa; e em Obra discorremos sobre a proposição artística Excursão Pa-jeú desenvolvida para esse contexto.

Mergulho: site físico e discursivo do Pajeú

O que chamamos de Mergulho foi um movimento de exploração territorial, pesquisa bibliográfica e documental, inclusive de fontes primárias e de acompanhamento cer-rado das dinâmicas de produção das políticas espaciais atuais de Fortaleza, com participação em grupos de estudo da Lei de Uso e Ocupação do Solo e nas audiên-cias públicas sobre esta lei e sobre os novos planos e projetos do poder público vi-sando a compreensão das dimensões físicas e discursivas desse espaço.

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O riacho Pajeú é apontado como elemento fundador da cidade de Fortaleza. O tra-çado das ruas mais antigas e os velhos mapas atestam que a cidade cresceu aco-modada às curvas do Pajeú (Castro, 1977). Com quase 5 km de extensão, hoje, po-rém, o riacho corre invisível na maior parte de seu trajeto sendo apenas intuído pela leitura atenta do relevo e bocas-de-lobo, pelo mau-cheiro que produz em alguns pontos específicos e pelos alagamentos generalizados nas quadras chuvosas.

O riacho Pajeú tem sua nascente hoje já aterrada no bairro da Aldeota, área caracte-rizada por uma ocupação densa de classes A e B com baixíssima porcentagem de áreas verdes. O corpo d’água corre predominantemente no sentido leste-oeste por mais de dois quilômetros, quase o percurso inteiro subterrâneo, e encontra-se a céu aberto em cinco pequenos recortes, conformando menos que 300 metros lineares mas visualmente acessível em apenas uma quadra.

Fonte: Arquivo da autora. Produzido com informações da Planta da Fortaleza Capital da Provincia do Ceará levantada por Adolpho Herbster Ex. Engº da Provincia e Archº Apozentádo da Camara Munici-pal, 1888, Carta da Cidade de Fortaleza e Arredores, levantada, desenhada e impressa pelo Serviço Geográfico do Exército, 1945, plantas do sistema de drenagem, 1998 e 2004. (Teixeira, 2017)

O córrego faz uma inflexão ao norte no trecho do centro histórico da cidade, onde se encontra a maior extensão de espelho d’água visível e os únicos espaços urbaniza-dos. Ao longo desse percurso, suas margens são ocupadas por vários estaciona-mentos horizontais, inclusive de espaços turísticos, onde recebe o tratamento de um canal de drenagem, mas também se encontra em grande parte subterrâneo, soter-rado por galpões do mercado atacadista, centros de confecção popular e obras ile-gais que ainda seguem ocorrendo.

O trecho da foz é quase totalmente ocupado pela Indústria Naval do Ceará – INACE, implantada sobre o antigo Porto Hawkshaw (construção do fim do século XIX que marca a presença inglesa em Fortaleza) e faz limite, de um lado, com o hotel 5 es-trelas Marina Park e de outro com a comunidade de baixa renda do Poço da Draga.

Do século XVII até meados do XIX, o Pajeú foi de suma importância para o abaste-cimento de água e para a produção de alimentos. Em 1835, foi represado originando um açude e um chafariz público (Nogueira,1899). Durante toda a segunda metade do século XIX, há várias ordens de serviço, relatórios de obras e comunicações ofi-ciais que revelam a importância da bacia do Pajeú para o abastecimento dos mais desvalidos bem como a necessidade de obras que melhorassem as condições des-sas aguadas . Os documentos indiciam, contudo, que o riacho já era alvo de despejo de imundícies e nos informam uma busca por outras fontes de água.

O desmoronamento (ruína) da parede do açude Pajeú, em 1837, devido a uma en-chente; as rixas políticas entre partidários e antipatizantes do Senador Alencar – que resultaram também na ruína de seus esforços no colecionismo de águas, dentre eles, a manutenção do açude do Pajeú – implicando em seu abandono até a grande seca de 1877-79; as epidemias que se intensificaram na segunda metade do dito século, levando ao abarracamentos de doentes (Theofilo,1904) às margens do Pa-jeú; a permissão de exploração das águas do sítio do “Bemfica” por Paulino Hoo-nholtz, que as repassou à Ceará Water Company , de Londres – tentativa de privati-zação e monopólio do abastecimento d’água de Fortaleza por várias décadas; a aceitação, pelo governo local, da cláusula do contrato que proibia o abastecimento por outras fontes que não a empresa inglesa além de exigir o fechamento, por vários anos, dos chafarizes e das aguadas públicas que concorressem contra essa compa-nhia; a construção do porto na foz do riacho e a transformação desse trecho em área industrial, dentre outros acontecimentos, decretaram a decadência do curso d’água.

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Com a emergência do discurso da medicina social urbana, baseada no urbanismo francês, e da medicina dos pobres, fundamentalmente inglesa, o riacho vai cada vez mais ser associado à ideia de insalubridade: suas águas são ditas perigosas ou por serem paradas e infectas ou por provocarem destruições nas quadras invernosas. No fim do século XIX e início do século XX, o Pajeú deixa de ser visto como manan-cial de abastecimento d’água para tornar-se uma opção técnica para despejo dos esgotos, uma “cloaca máxima” (Theofilo,1904). Durante a euforia da Belle Époque, o riacho passa a ser encarado como barreira que precisa ser transposta pelo engenho humano, independente do prejuízo à estética e à noção de história que a ideia de modernização implicasse. A não implantação dos vários planos urbanísticos nos séculos XIX e XX permitiu que o Pajeú fosse paulatinamente suprimido da visão, do espaço e dos mapas: a partir de 1960, Fortaleza sofreu uma rápida expansão a leste, consolidando o bairro Al-deota e, sem proteção, o riacho foi engolido por avenidas ou loteado com a terra. Com a ascensão na política do Ceará, ao fim dos anos 1980, de uma classe de “jo-vens empresários” alinhados com uma agenda neoliberal, no contexto da redemo-cratização do país e da globalização do capital, emergiu um discurso do turismo co-mo vocação do território (Gondim, 2006). Fortaleza passou então por reformas urba-nas consonantes com as dinâmicas de revitalização dos centros históricos e cultu-rais das grandes cidades globais, e até mesmo de uma invenção do patrimônio pre-cisamente desenhado para atração do turismo. De 1990 em diante, várias obras es-truturais tiveram a função de promover o fluxo necessário para a nova atividade-alvo, enquanto diversas reformas urbanas visavam readequar a cidade e dotá-la de atrações culturais dignas de um destino internacional, levando à construção do Cen-tro Dragão do Mar de Arte e Cultura, entre outras ações, bem como às várias tentati-vas de revitalização do centro histórico e do próprio Pajeú.

Em 2015, o projeto Fortaleza 2040, contratado pela Prefeitura Municipal de Fortale-za, iniciou um ciclo de apresentações do Plano Master para a cidade para os próxi-mos 25 anos. Segundo entrevista do arquiteto-chefe da equipe (Melo, 2016), o que se pretende com as reformas é “[...] tornar o centro atrativo para o mercado imobiliá-rio e a sociedade, ao mesmo tempo apoiando a proteção e a restauração dos ele-mentos naturais”. O lugar que cabe a um redescoberto riacho Pajeú – qualificado como importante elemento da história e da identidade fortalezense além de patrimô-nio ambiental – é o de configurar, nessa proposta, um eixo de renovação urbanística no Centro da cidade, gerando investimentos imobiliários para a construção de edifí-cios de comércio e habitação, para a atração de um público “da Aldeota e de bairros mais ricos” e a promoção de um turismo “mais qualificado” .

Nesse estudo, o Pajeú foi seletivamente desenterrado e, seguindo um zoneamento ambiental executado em 2008 , apareceu inexplicavelmente representado a dezenas de metros a leste de sua foz original, correndo dentro da comunidade do Poço da Draga, em discordância de séculos de documentação cartográfica, segundo um re-gime de produção da verdade como o verdadeiro que respalda os novos interesses dessa parceria público-privada, enquanto que em outros trechos é simplesmente ignorado. Também de acordo com essa nova representação do espaço, foi demar-cada uma “Zona de Preservação Ambiental 1” passando por dentro dessa comuni-dade, o que habilitaria a remoção dessa população, higienizando o espaço para a produção do novo cartão-postal: um seafront renovado e contíguo ao novo grande ex-atrativo turístico do futuro, o Acquario Ceará, ainda em obras e já uma ruína.

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Problema: o apagamento

Através da etapa Mergulho, percebemos alguns mecanismos que atuaram e conti-nuam atuando no apagamento do riacho Pajeú e de outros elementos da paisagem de Fortaleza. Entendemos o apagamento como uma violência que se faz à memória de forma ativa e programada, diferenciando-se do esquecimento pela intencionali-dade do ato, bem como pela destruição dos rastros que permitem rememorar.

O apagamento físico se realiza pela alteração dos espaços e das relações possíveis com estes. A privatização das margens do Pajeú, iniciada na foz, logo nos primeiros anos do século XX, e seguida pela porção mais à montante do riacho, vedou o acesso ao corpo d’água para abastecimento, pesca e lazer. Com as várias doações e privatizações para usos industriais e militares, bem como a posterior expansão da malha urbana à leste, criando o atual bairro Aldeota, o riacho deixa de ser uma ex-periência corporal vivida. Quando suas margens são loteadas e cercadas, em mea-dos do século passado, consequentemente o rio desaparece da paisagem e perde sua importância nas dinâmicas sociais, sumindo aos poucos também do imaginário.

Segundo Jacques Rancière (2009), “A estética e a política são maneiras de organi-zar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligi-bilidade dos acontecimentos”. Se “tornar visível é tornar existente” (Cesar, 2014), dar o direito à imagem é dar o direito à aparição na esfera pública. Ter visibilidade é aparecer na esfera pública. Se existir é aparecer, o desaparecimento ou apagamen-to estético implicam no desaparecimento político.

Sem direito à imagem no espaço público, o rio sumiu gradativamente da esfera pú-blica e tornou-se um pequeno transtorno a ser administrado domesticamente: longe das vistas e sem uma fiscalização efetiva, cada proprietário deu o fim que bem en-tendeu ao pequeno rio, sem consequências para os infratores. Seguiram-se, assim, canalizações, ocupações das margens e do espelho d’água e alterações de percur-so, evidenciando como o apagamento físico se reflete em apagamento simbólico.

O apagamento simbólico é efetuado nos espaços de representação – dimensão do vivido, da apropriação simbólica – bem como nas representações do espaço – do-cumentos, planos etc. Segundo Flávio Villaça (2001), há três mecanismos pelos quais as elites controlam a produção do espaço urbano: o mercado, que tem uma natureza econômica, e em especial o mercado imobiliário; o controle do poder públi-co, de natureza político-ideológica, atuando através da legislação urbanística, que é feita pela e para as elites; e através da ideologia, transformando as suas próprias ideias em ideias dominantes em uma sociedade, em um dado período histórico, apresentadas como verdade. Assim as ideias sobre salubridade permitiram vislum-brar no riacho uma cloaca; e de modernidade resultaram nos esforços de urbaniza-ção dos hábitos que afastaram a população das pescarias e banhos. Essa nova imaginação sobre o espaço acaba por autorizar e justificar os apagamentos físicos.

Outra técnica do apagamento simbólico é a substituição nas narrativas, como a ado-ção do termo “canal” no lugar de “riacho”. Embora equivalentes na geografia, esses termos evocam imagens bem distintas para a população, como também resultam em efeito jurídico diferenciado: o topônimo “canal” é objeto de proteção menos rígida, ou mesmo inexistente, na legislação urbana atual. Outro exemplo de substituição é en-contrado nas matérias dos jornais: as figuras do alagamento e drenagem substituem “riacho”, “cheia”, “inverno” etc., transmutando o rio num problema da engenharia.

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Se o apagamento físico é acompanhado do apagamento simbólico, simetricamente, também o apagamento simbólico está ligado aos suportes físicos. É também pela materialidade de mapas e outros dispositivos de concepção e representação dos espaços que esse apagamento é efetivado.

O apagamento das representações do espaço inclui o esquecimento dos mapas e os esquecimentos nos mapas. Alguns dos mapas levantados são cópias de originais desaparecidos. Liberal de Castro (2005) assume o termo esquecimento como eufe-mismo, pois além de extraviados e perdidos, os planos teriam sido deliberadamente rejeitados. Alguns mapas usados em nossa pesquisa foram encontrados bem longe dos acervos e bibliotecas locais e os documentos textuais são de difícil acesso.

O esquecimento dos mapas (como de outros documentos), seu abandono ou des-truição ativa é fato corrente nos órgãos oficiais que pesquisamos. Mas alguns órgãos têm não só a habilidade de perder informações, mas também a capacidade de reinventar a geografia com novos mapas que reposicionam o riacho Pajeú e outros elementos onde for conveniente, ao sabor de forças que apenas podemos especu-lar. Dentre as técnicas mais interessantes de apagamento do riacho Pajeú, estão o curioso sumiço de sua representação na cartografia (esquecimentos nos mapas); a criação de uma controvérsia sobre seu trajeto, ao menos em órgãos estratégicos para o planejamento da cidade; o inexplicável aparecimento de outros mapas, quan-do da adoção da tecnologia digital, representando o riacho em posição totalmente discordante das cartografias de séculos anteriores, e que, ainda que tecnicamente imperfeitos, passam a ter valor de verdade para a sociedade pela repetição perpe-trada por técnicos, sobretudo das instituições de planejamento e ensino superior; o sumiço nos mapas de seu topônimo, mesmo onde o riacho é visível; ou a alternân-cia, nos trechos onde o Pajeú está no mapa, dos termos riacho e canal, como já apontado, revelando a seletividade das próprias políticas de proteção ambiental.

Aparição e desaparição, como a enunciação dos discursos, passam por uma forte regulação (Foucault, 2008). Assim, o apagamento físico e simbólico nas dimensões do espaço percebido–práticas espaciais, espaço concebido–representações do es-paço, e espaço vivido–espaços de representação e as tentativas atuais de reinven-ção do riacho Pajeú (o apagamento do apagamento) devem ser entendidos como parte do jogo de poderes que disputam a produção da própria cidade. A proposição artística que desenvolvemos tenta também disputar esse jogo.

Obra: Excursão Pajeú

Na concepção de Maria Miranda (2007), trabalhos de locative media, geralmente produtores de mapeamento, suscitariam o neocartesianismo, representando o aban-dono de uma longa crítica à representação cartográfica; Brian Holmes (2006) questiona essas proposições como integradas à infra-estrutura imperial; e Drew Hemment (2010) associa tais práticas ou a um certo entretenimento que palatabiliza uma tec-nologia avançada de controle alinhada à agenda neoconservadora.

Mas, se por um lado, as mídias locativas podem ser utilizadas como mero espetácu-lo irresponsável e irrelevante, voltadas para o consumidor de classe média, por outro lado, têm a potência de gerar engajamento e promover novas formas de participação pública. Inversamente às formas de socialização na WWW e da realidade virtual, ou às experiências de imersão em geral, as experiências com locative media, ao gerar interação social pela articulação entre os meios computacionais móveis e os territó-rios geográficos, colaboram com a apropriação e ressignificação dos lugares e a produção de memórias de “baixo para cima” (Santaella, 2008).

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Igualmente, uma nova consciência da localização e a democratização da produção cartográfica, possibilitada por essas mídias, é um fator de redistribuição do poder. Se o esquecimento dos/nos mapas (e documentos em geral) é uma causa relevante no apagamento do Pajeú, as mídias locativas têm potencial de tensionar esses esque-cimentos, seja pela disponibilização de ferramentas de mapeamento, seja pelo con-fronto entre cartografia e espaço vivido, revelando o mapa como codificação.

Na atualidade, a atração de investimentos e o turismo são fortes motores dos novos apagamentos na cidade de Fortaleza, atendendo a uma agenda externa de necessi-dades e investimentos que cria um estranhamento local ao passo que busca dotar a cidade de atrativos culturais. Enquanto, porém, algumas memórias são cativadas, outras são ativamente esquecidas ou apagadas. Patrimônios cultural, histórico e ambiental formaram um forte tripé para a produção de uma nova imagem para a ci-dade, selecionando entre criar, manter ou apagar o quê ou quem quer que seja con-veniente, seja um riacho ou uma comunidade como a do Poço da Draga.

Buscamos na apropriação das mídias locativas um meio de criar intervenções na conexão entre espaço físico e ciberespaço – reconhecendo o caráter cíbrido do es-paço (Beiguelman, 2004) – disputando a dimensão informacional. Como resultado, a proposição artística Excursão Pajeú consiste numa experimentação com um aplicati-vo que relaciona arquivos a coordenadas geográficas, atuando como uma espécie de áudio-guia de contra-turismo.

Adotamos como estratégia o contraste/contradição e como princípios direcionadores: a) a ideia de excursão que explora o contraste/contradição entre o espaço relatado como de importância histórica nos documentos com o espaço físico atual degrada-do, mas também entre o uso desse dispositivo relacionado ao turismo de massas aplicado a uma imagem da cidade que é o oposto do cartão-postal, entre uma ideia de entretenimento com a experiência talvez irritante ou desapontadora; b) o tensio-namento do efeito especular dos mapas que explora o contraste/contradição, dessa vez, entre espaço vivido e a representação do espaço, considerando o desapareci-mento nos/dos mapas uma das formas de apagamento do riacho Pajeú; c) a escolha pela auralidade, que longe de ser uma estratégia anti-visual, na verdade busca, pelo contraste/contradição entre informação visual e auditiva, convidar a um novo olhar para a cidade, com maior abertura às imagens imaginadas durante a caminhada.

Inicialmente, realizamos um protótipo de Excursão Pajeú utilizando a plataforma So-nicMaps. A versão final do aplicativo Excursão Pajeú foi desenvolvida para o siste-ma operacional Android, em colaboração com os grupos de pesquisa ActLAB - La-boratório de Pesquisa em Arte, Ciência e Tecnologia do PPGArtes e GREAT - Grupo de Redes de Computadores, Engenharia de Software e Sistemas, da Universidade Federal do Ceará, utilizando a plataforma LAGARTO.

Figura 01: Registro da experimentação da proposição Excursão Pajeú.
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A interface de Excursão Pajeú utiliza a base cartográfica do GoogleMaps, onde o riacho Pajeú não é representado. A essa base, sobrepomos 18 marcadores, dispos-tos ao longo do trajeto do riacho reconstituído a partir de várias fontes cartográficas levantadas na etapa mergulho. Esses marcadores carregam arquivos constituídos de pequenos trechos de documentos de épocas variadas e de difícil acesso sobre o riacho Pajeú, que o participante dispara unicamente através da sua localização (GPS), forçando a presença física para completar a obra e incluindo os deslocamen-tos como parte da experiência estética. Quando acionado, o marcador dispara a lei-tura do documento armazenado pela voz sintética do aparelho celular. Os marcado-res também dão acesso às fontes e, em alguns casos, às versões digitalizadas de documentos utilizados nas leituras automáticas.

A localização desses marcadores nos pontos geográficos seguiu critérios de análise da paisagem para proporcionar situações diversas, como contrastes entre abertura e clausura, expectativa e surpresa; foi também guiada pelos próprios documentos que apontavam elementos apagados, existentes ou projetados para lugares específicos ao longo do riacho; e pelo desejo de embate. Os marcadores, posicionados frente à entrada da poderosa INACE e em um terreno declarado área de parque (Fortaleza, 2014) e ainda baldio, procuram dar visibilidade respectivamente para o real trajeto do riacho que vem sendo modificado nos mapas e para o estado de abandono de trechos do riacho que não sevem à lógica das reformas urbanas.

A finalização do aplicativo trouxe a questão de como disponibilizá-lo. Excursão Pajeú está disponível no GooglePlay mas também produzimos um website onde se pode baixar o aplicativo e conhecer mais sobre a pesquisa por meio de textos, fotos e um vídeo , sendo, ao mesmo tempo, forma de comunicação e de registro da proposição artística. Também fazem parte dessa estratégia a disseminação de forma infiltrada em espaços do turismo de material gráfico de divulgação – panfletos e postais – criando uma ponte entre público, site e aplicativo.

Considerações Finais

Os apagamentos nas cidades contemporâneas, e, em particular, em Fortaleza, têm como forte motivação a atração de investimentos e do turismo, sustentada pelo tripé patrimônio cultural, histórico e ambiental. Diante desse contexto propusemos uma experimentação de caminhar como prática estética (Careri, 2013) com uso da mídia locativa, que tensiona apagamento e visibilidade no contexto específico do riacho Pajeú. Exploramos o efeito especular dos mapas e o uso político dessas tecnologi-as. Excursão Pajeú se apropriou de elementos da linguagem do turismo de massas e das potencialidades de ampliação do real. Superpôs e contrapôs as dimensões do percebido, concebido e vivido, gerando, pelo deslocar do participante, um “Parque ampliado do Pajeú”.

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Dentre várias fontes utilizadas na dissertação, podemos destacar matérias de jornal e documentos oficiais: PARTE Official. Gazeta Official. 14 de Fevereiro de 1863, Anno I, Nº 59, pg. 01. Typographia Rua da Boa Vista; FUNDO de Obras Públicas. Ofícios. Dossiê 06, 07 de abril de 1861. Código de referência: BR APEC, OP. CO. ex. 01-06, caixa 08. In: Arquivo Público do Estado do Ceará; PARTE Official. Governo da Província. O Cearense. Fortaleza, 22 fev 1861. Anno XV, Nº1417, pg. 01. Typographia Brazileira de Paiva e Cia; REPARTIÇÃO das Obras Públicas, 1864-1866. Officios da “Presidencia da Provincia”, 03 de Janeiro De 1866, pp. 73, 78, 83,114. Código de Referência: BR APEC., OP. CO., Re. Enc.14-19, Caixa 20. Encadernação 14, Livro 01. In: Arquivo Público do Estado do Ceará.

A falta de manutenção do reservatório de água construído em 1836 nesse manancial e arruinado anos depois foi apontado pelos partidários do ex-Presidente da Província, Senador Alencar como uma tentativa de seus opo-sitores de apagar sua imagem pública, conforme matéria no Correo da Assemblea Provincial (ASSEMBLEA PROVINCIAL. Correio da Assemblea Provincial, Fortaleza, n. 78, 22 de junho de 1839, p. 02).

Dentre várias matérias encontradas ver: ASSEMBLEA Legislativa Provincial (Continuação): Abastecimento de agua potavel. O Cearense. Fortaleza, 11 de Novembro de 1868, N.2749, Ano. XXIII, p.02 e 03.

Constante como anexo no Plano Diretor Participativo de Fortaleza, 2009

Apresentação oral do projeto “Centro urbano renovado”, realizado na sede do CDL em Fortaleza, 2016.