PATRIMÔNIOSPOSSÍVEIS

Arte, Rede e Narrativas da Memória em Contexto Iberoamericano

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Arte, Narrativas e Memória

Arte como Alimento, Ritual e Oferenda: um Olhar Artístico sobre a Vida Cotidiana e a Nutrição através da Arte

O artigo apresenta alguns resultados do projeto Arte como Alimento, Ritual e Oferenda, realizado no Brasil e na Índia. Pretende-se discutir a arte como um fazer cotidiano e compartilhado, no qual são estabelecidas interelações com o ato alimentar em dimensões materiais e simbólicas. A partir de pesquisas e observações pelas ruas, templos e comunidades rurais nos dois países, teve-se como referência uma construção coletiva de território de arte. O projeto propiciou a integração de artistas de diferentes nacionalidades, instalações e montagem de painéis coletivos em meio à natureza, entre outras vivências e registros que potencializam a manifestação de um fazer artístico cotidiano que se apresenta de forma ritualística e na forma de oferenda na vida das pessoas.

Palavras-chave: Arte Compartilhada; Fazer Artístico; Território Cultural.

The article presents some results of the project Art as Food, Ritual and Offering, realized in Brazil and in India. It is intended to discuss art as a daily and shared doing, in which interactions are established with the food act in material and symbolic dimensions. Based on research and observations on the streets, temples and rural communities in both countries, a collective construction of territory of art was taken as a reference. The project allowed the integration of artists from different nationalities, installations and assembly of collective panels in the midst of nature, among other experiences and records that potentiate the manifestation of a daily artistic work that presents in a ritualistic way and in the form of an offering in the life of people.

Keywords: Shared Art; Make Artistic; Cultural Territory.

Autoria

Regina Carmona

Artista Plástica, mestre em Poéticas Visuais (USP), Coordenadora do projeto Arte como Alimento, Ritual e Oferenda (Financiado pelo Edital de Intercâmbio nº 1/2015 do Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac/MinC). Além dos autores deste artigo, o grupo de arte e pesquisa é formado pelas fotografas Júlia Carmona e Paula Mello.

Henrique Carmona Duval

Sociólogo, doutor em Ciências Sociais (Unicamp), Professor Adjunto do Centro de Ciências da Natureza (UFSCar).


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Introdução

O presente artigo apresenta resultados de um projeto de vivência artística voltado ao culto e ao cultivo de ações que visam promover a arte como alimento, ritual e oferenda. Trata-se do projeto de artes integradas Arte como Alimento, Ritual e Oferenda, uma experiência de viagem, pesquisa e vivência artística e cultural no Brasil e na Índia, com visitas a lugares sagrados, contato com pessoas e instituições ligadas ao meio artístico e à preservação ambiental por parte de comunidades rurais. O objetivo foi o de qualificar as relações das pessoas em seus cotidianos – um fazer artístico – que literalmente as nutre em termos materiais e simbólicos.

A proposta do projeto caracteriza-se por construir territórios de arte, por meio de atividades artísticas e de pesquisa, tais como técnicas de observação direta, registros em diários de campo e fotográficos, instalações, arte de rua e criação de espaços para a reflexão em meio à natureza. Na Índia, foi possível realizar atividades de arte e exposições com apoio da Fundação Sanskriti; interagir nas ruas de Delhi e demais cidades de nosso roteiro de viagem, nas quais foram feitas pesquisas de observação e registro em templos e festivais religiosos, eventos de doação de alimentos a pessoas carentes e as comidas de rua.

Imagem 1 – Festival Religioso Kumbh Mela, Haridwar.
Fonte: Paula Mello, 2016.
Imagem 2 – Ritual de cremação, Rio Ganges, Varanasi.
Fonte: Julia Carmona, 2016
Imagem 3 – Distribuição de alimentos no templo Gurudwara, Delhi.
Fonte: Regina Carmona, 2016.
Figura 4 – Distribuição de alimentos em festival religioso Sikh, Delhi.
Fonte: Henrique Carmona Duval, 2016.
Imagem 5.1 – Painel com fotos da visitação de estudantes universitários na exposição Arte como Alimento, Ritual e Oferenda, Fundação Sanskriti, Delhi.
Fonte: Paula Mello, Regina Carmona e Mrinmoy Das, 2016..
Imagem 5.2 – Painel com fotos da visitação de estudantes universitários na exposição Arte como Alimento, Ritual e Oferenda, Fundação Sanskriti, Delhi.
Fonte: Paula Mello, Regina Carmona e Mrinmoy Das, 2016..
Imagem 5.3 – Painel com fotos da visitação de estudantes universitários na exposição Arte como Alimento, Ritual e Oferenda, Fundação Sanskriti, Delhi.
Fonte: Paula Mello, Regina Carmona e Mrinmoy Das, 2016..
Imagem 5.4 – Painel com fotos da visitação de estudantes universitários na exposição Arte como Alimento, Ritual e Oferenda, Fundação Sanskriti, Delhi.
Fonte: Paula Mello, Regina Carmona e Mrinmoy Das, 2016..

No Brasil, outras atividades foram realizadas em comunidades rurais e na capital do estado de São Paulo. Destacamos a interação com os estudantes de primeiro grau da escola municipal Maria de Lourdes da Silva Prado, localizada no assentamento rural Monte Alegre, Araraquara/SP, com a apresentação do projeto e a vivência na Índia, a criação de um mural no refeitório e a instalação coletiva da palavra “AMA” na horta da escola. Outra ação coletiva se deu no Espaço Tyba de estudos alternativos em Echaporã/SP, onde preparamos o alimento compartilhado num grande almoço e criamos uma instalação na natureza, um espaço para assistir o pôr do sol. Em São Paulo, na Gravura Brasileira realizamos uma ação coletiva para criação da fachada da galeria.

Imagem 6 – Montagem de painel na escola do assentamento, Araraquara.
Fonte: Paula Mello, 2016.
Imagem 7 – Instalação na natureza, Tybá, Echaporã.
Fonte: Regina Carmona, 2016.
Imagem 8 – Montagem de painel na galeria Gravura Brasileira, São Paulo.
Fonte: Júlia Carmona, 2016.
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Nessas vivências foram realizadas pesquisas em comunidades que vinculam o trabalho cotidiano ao artístico, que desenvolvem seus ofícios em estrita relação e afeto com a natureza e seus elementos, conhecimento de plantas alimentícias e medicinais, de rezas e benzeduras, cura e rituais de devoção espiritual, o que vem a fortalecer a proposta e o campo de pesquisa de forma simples e natural, relacionando arte e artistas, obra e os meios de criação, a vida e a nutrição através da arte.

Conforme Tagore:

A primeira lição importante deveria ser a improvisação – devidamente afastado do “já feito” – a fim de dar continuamente a cada um o meio de se descobrir através das surpresas trazidas pela pesquisa. Isso seria uma lição de vida simples, mas de vida criadora. Minha escola não é uma gaiola fechada onde espíritos vivos são artificialmente nutridos, mas uma casa aberta onde professores e alunos são uma coisa só. Juntos, eles vivem uma vida completa, dominada por um mesmo ideal de verdade e a necessidade de repartir as maravilhas do conhecimento (TAGORE, 2006, pg108;109).

Imagem 9 – Interação na natureza, Rishkesh.
Fonte: Paula Mello, 2016.

As ações artísticas foram realizadas de forma interligada por linguagens mistas e múltiplas, tais como performance, vídeo, fotografia, instalação, estampas e murais. Como resultado, destacam-se as instalações e interações no meio ambiente, a arte levada para a rua e para o campo, bem como a constituição de um acervo de imagens e vídeos que fortaleceram a difusão cultural.

Imagem 10 – Interação na natureza, Rishkesh.
Fonte: Paula Mello, 2016.
Imagem 11 – Área natural, floresta em Gurgaon, Delhi.
Fonte: Júlia Carmona, 2016
Imagem 12 – Instalação de arte em área natural, interação com convidados e artistas residentes em Sanskriti Kendra. Floresta em Gurgaon, Delhi.
Fonte: Regina Carmona, 2017.

Salientamos, neste projeto, a importância da inserção de outros projetos compartilhados de artistas de várias nacionalidades, de propostas interativas com a participação do público com o apoio e estímulo de profissionais, pesquisadores e colaboradores dos mais diferentes campos sociais. Conforme Ólafur Eliasson (ELIASSON et al., 2015), são essas relações que contribuem para abarcarmos diferentes formas de ver e entender o mundo. Portanto, a inserção de outros projetos e artistas é relevante para a construção de espaços para se contatar com o mundo, nos quais podemos acolher e ser acolhidos, contemplar o primordial e a intemporalidade desses momentos. Cerca de 80 artistas de arte urbana do projeto Cola Aqui Stick Here, contribuíram para ressaltar a importância de expor a diversidade dos meios de criação engajadas através dos murais e da arte de rua que realizamos como forma de uma oferenda contemporânea, para circular ideias livremente e incentivar a mudança de atitudes. Um movimento artístico que atualmente pode ser visto em grandes cidades brasileiras, com o evidente crescimento de uma arte que abraça a tudo e todos, pode-se dizer, até de forma afetiva, uma vez que dilata vias na sociedade com a inserção e respeito ao "diferente", abrindo portas à compreensão de grupos extremamente produtivos e atuantes.

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Nesse caminhar registramos cotidianos repletos de devoção, observamos como homens e mulheres se religam ao espiritual, ao sagrado, por rituais onde a arte se faz alimento e, muitas vezes, vem do próprio alimento, da terra, da cultura local. A compreensão dessas pequenas ações cotidianas é igualmente essencial e fortalecedora de suas capacidades, de forma plena e verdadeira. Assim, destaca-se a importância das atividades, dos artistas e de todos aqueles integrados no mesmo propósito de alimentar a arte e fazer dela o seu alimento.

O tema que unifica o alimento, o ritual e a oferenda, por meio da arte, possui vários vieses interpretativos e diferentes perspectivas artísticas. O ato de se alimentar é um deles, desde uma ideia de alimentação do corpo físico, por meio da comida, como daquilo que comemos fazer parte de um arcabouço cultural de complexa significação que envolve a transformação de alimentos em comidas, o conhecimento de questões como as estações climáticas, a ecologia local, a semeadura, a colheita e todas as fases e métodos do trato cultural. Há também os conhecimentos sobre as formas de preparo e de consumo da comida, os gostos e as preferências do paladar, as formas de servir e com quem se junta à mesa no ato de compartilhar a comida.

Imagem 13.1 - Painel com fotos de oferendas e comidas de rua, Índia.
onte: Paula Mello, Regina Carmona e Henrique Carmona Duval, 2016.
Imagem 13.2 - Painel com fotos de oferendas e comidas de rua, Índia.
onte: Paula Mello, Regina Carmona e Henrique Carmona Duval, 2016.
Imagem 13.3 - Painel com fotos de oferendas e comidas de rua, Índia.
onte: Paula Mello, Regina Carmona e Henrique Carmona Duval, 2016.
Imagem 13.4 - Painel com fotos de oferendas e comidas de rua, Índia.
onte: Paula Mello, Regina Carmona e Henrique Carmona Duval, 2016.
Imagem 14 – O prato de comida, Fundação Sanskriti, Delhi.
Fonte: Henrique Carmona Duval, 2016.

As vivências proporcionadas pelo projeto evidenciaram que o alimento da nossa matéria é físico e tem efeitos imediatos na transformação do corpo e da saúde. Por outro lado, em torno do alimento há uma simbologia, afinal, a alimentação não é somente o ato de nutrir o corpo, mas o alimento em si que carrega forte significação cultural: o alimento que me dá identidade, que alimenta o corpo e a alma. Tudo isso denota fortes ligações ao fazer artístico que tem a ver com a alimentação integral do ser, do ato envolto por aspectos ritualísticos e pela oferenda.

A partir dessas considerações sobre o ato alimentar e o paralelo entre arte e alimento, observado no percurso do projeto, vincula-se o ato criativo ao cotidiano, aos grupos sociais e seus modos de vida, a homens e mulheres detentores de conhecimentos diversos da natureza, da responsabilidade de criar e alimentar suas famílias e manter toda a base física e espiritual que lhe dá suporte. Por isso, o projeto possui um claro recorte no ser holístico e na sua capacidade de transmissão e transformação.

No entanto, essa transmissão cultural não se dá em rios tranquilos, pois a alimentação moderna invade a cultura, muda hábitos e escolhas. De certo, vivemos um impasse frente às sementes transgênicas que invadem os campos, alterando os modos de produção dos alimentos (SHIVA, 2003). Um impasse e também uma disputa, que por meio da alimentação expõe não apenas este aspecto da cultura, mas modos de vida como um todo, que contrapõe o que é sagrado com aquilo que pode ser profanado, como a terra e as sementes da alimentação cotidiana. Além de resgate da tradição, a alimentação integral do ser é um aspecto em transformação na modernidade (NAVDANYA, 2010).

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Os resultados do projeto apontam que há grande relevância nas trocas estabelecidas, nas pesquisas e vivências coletivas em cenários diversos de arte, seja nas cidades, nos campos, vilas e comunidades, expressos nos potentes territórios para criação e manifestação de arte, coleta de material e conhecimentos, experiências individuais transmutadas junto às demais experiências em grupo. Experiências que só vieram a ampliar e enriquecer os propósitos para, ao final, serem escoadas no desdobramento das atividades relacionadas.

Ressalta-se a importância da integração, da diversidade, da criação engajada e compartilhada, convite à construção de territórios culturais contemporâneos e coletivos, espaços para a reflexão sobre um quase invisível grão - sua significação e dimensão na reprodução social.

Tomando por princípio a poética, a criação e o fazer artístico no ato de se alimentar, continuamos dependentes de alimentos. A reprodução social depende daquilo que é consumido, das ideias e sentimentos que nutrimos em nossos seres, aquilo que deliberadamente damos continuidade, os projetos e utopias daquilo que perseguimos. Esse conjunto de coisas deu forma ao projeto Alimento Ritual e Oferenda, propiciando a criação de um território cultural sob a perspectiva da observação da vida cotidiana, das intencionalidades e dos espaços que são comuns.

O projeto permanece na busca por integrar um trabalho que, em diferentes perspectivas, sugere uma pesquisa do movimento e dos passos que damos e que, por alguma razão, nos conduzem a algum lugar, a uma transformação dialética do ser. Um território cultural que engloba a arte e a expressão, o ritual cotidiano, a forma de ser e de se expor, as interconexões abertas à complementaridade entre alimento, corpo e espírito, a energia coletiva produzida, transformada e ofertada à manutenção da vida.

Referências

ELIASSON, Olafur; ABRAMOVIC, Marina; GRAHAM, Dan (Orgs.) AKADEMIE X: Lessons in Art + Life. Studio Rags Media Colletive: Phaidon Press, 2015.

NAVDANYA. Bhoole Bisre Anaj. Forgotten Foods. New Delhi, Índia, 2010.

SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectiva da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Gala, 2003.

TAGORE, Rabindranah. Gitanjali. São Paulo: Martin Claret, 2006.

Link para o vídeo do projeto: https://vimeo.com/178894786