Introdução
No Brasil, a constituição do campo do patrimônio foi estabelecida oficialmente a partir de medidas e políticas adotadas durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas, o Estado Novo. A Lei nº 378 de 13 de janeiro de 1937, que organiza o Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), cria o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), na “Sessão III – dos serviços à educação”, com a “finalidade de promover, em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional (IPHAN, 1937). Ao longo de oito décadas de atuação, hoje, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), atravessou diferentes contextos políticos, sociais e econômicos do país, muitas revisões conceituais e mudanças na atuação institucional, ampliando os debates sobre as práticas preservacionistas no Brasil.
Atualmente, a noção de patrimônio foi ampliada de modo a contemplar as referências culturais, materiais ou imateriais, representativas da diversidade sócio cultural brasileira. Este entendimento está embasado pelo texto da Constituição Federal de 1988, que no Artigo 216, apresenta e institui uma definição ampla de Patrimônio Cultural como “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. A Constituição Federal também instituiu, conforme apontado por Ulpiano Bezerra de Meneses (2012, p.33), um “deslocamento de matriz” no que diz respeito ao papel da preservação do patrimônio cultural brasileiro. Se anteriormente cabia ao Estado identificar e proteger, agora cabe ao Estado, em colaboração com a sociedade civil, o papel de agente na preservação compartilhada destes bens, conforme apontado no parágrafo primeiro do referido artigo:
§1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação (BRASIL, 1988).
Sob esta ótica, no âmbito das políticas voltadas à preservação do patrimônio, a Educação Patrimonial tem ganhado destaque nas últimas décadas por promover a interação entre os campos da Educação e do Patrimônio Cultural. Reconhecida atualmente como um campo autônomo de atuação, as atividades educativas voltadas ao campo do patrimônio, concebidas enquanto um processo transversal nas práticas preservacionistas institucionais, podem tornar-se um instrumento de reconhecimento e valorização de referências culturais, de forma coletiva e democrática.
A concepção de educação para a preservação do patrimônio, assim como a própria noção de patrimônio cultural, também passou por diversas mudanças e revisões ao longo do tempo sendo que, atualmente, a Coordenação de Educação Patrimonial do IPHAN (Ceduc), por meio de diversos encontros e debates realizados com diversos profissionais da área, instituiu este conceito:
52(...) a Educação Patrimonial constitui-se de todos os processos educativos formais e não formais que têm como foco o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera ainda que os processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais, onde convivem diversas noções de Patrimônio Cultural (IPHAN, 2014, p.19).
Constitui-se, portanto, uma estratégia essencial e prioritária no campo de atuação do patrimônio cultural, fomentar e reconhecer a Educação Patrimonial como um processo permanente para a obtenção de uma abordagem dialógica e de construção coletiva das políticas de identificação, proteção, apropriação e valorização do patrimônio cultural, partindo-se do princípio de que a efetividade de uma política pública em um Estado democrático relaciona-se, diretamente, à capacidade de a sociedade participar, decidir e avaliar suas ações.
Educação Patrimonial como instrumento de preservação
Em 2014, o Iphan lançou a publicação Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos, com a finalidade de estabelecer um marco institucional que referencie as ações e experiências no âmbito da Educação Patrimonial, de forma a articular de maneira participativa as unidades do Iphan, outras instâncias governamentais e a sociedade civil como agentes de uma política com abrangência nacional . Esta publicação é fruto de diversos debates e reflexões realizadas por profissionais do campo da preservação na última década e, consolida o conceito de Educação Patrimonial atualmente defendido pelo Iphan, assim como estipula diretrizes norteadoras para a realização de atividades educativas voltadas à valorização e preservação do patrimônio cultural.
É preciso atentar para o fato de que o entendimento de Educação Patrimonial pelo Iphan está embasado no conceito constitucional de Patrimônio Cultural que destaca o conceito de referências culturais e considera as diferentes noções de patrimônio, que ao mesmo tempo se confrontam e se complementam, construindo e reconstruindo significados.
Para muito além da divulgação, promoção e difusão do patrimônio cultural e dos conhecimentos institucionais acumulados no campo técnico da preservação, a Educação Patrimonial se mostra como possibilidade de construção de relações efetivas com as comunidades detentoras do patrimônio cultural. Neste sentido, por meio de mecanismos de escuta e observação que permitam acolher e integrar as singularidades, identidades e diversidades locais, a educação se apresenta como uma ação político social, exercendo papel decisivo na aproximação da sociedade civil com os órgãos públicos responsáveis pela política do patrimônio cultural.
Sob esta ótica, a Educação Patrimonial não seria apenas uma metodologia de “conscientização” da população por meio do patrimônio cultural, mas, sim, um campo ou uma arena de atuação interdisciplinar que visa o patrimônio enquanto um instrumento/recurso de reconhecimento e afirmação das referências culturais numa perspectiva social.
Educação Patrimonial deve ser, portanto, um instrumento para o reconhecimento e valorização das referências culturais pelas próprias comunidades detentoras, integrando as pessoas e as comunidades locais na gestão do patrimônio coletivo, num processo democrático de autoconhecimento, responsabilização e articulação local. Segundo o museólogo Mário Chagas, “para além da educação patrimonial, interessa compreender a educação como prática social aberta à criação e ao novo, à eclosão de valores que podem nos habilitar para a alegria e a emoção de lidar com as diferenças” (CHAGAS, 2004, p.145). Nesta perspectiva, as práticas preservacionistas seriam mais efetivas se apresentassem a Educação Patrimonial como um componente essencial de todo o processo de identificação do patrimônio, o que, como demonstrou Simone Scifoni, significaria “incorporá-la como atividade pari passu e integrada às pesquisas de tombamento e/ou de inventário do patrimônio imaterial, fomentando, desde muito cedo, uma relação próxima e dialógica com as comunidades do lugar em que se vai atuar” (SCIFONI, 2015, p.197). Assim, as ações de Educação Patrimonial poderiam proporcionar os meios necessários para que as pessoas, detentoras dos bens culturais, interajam, com voz ativa e postura problematizadora , em todo o processo de estudo, identificação e proteção, compartilhando, assim, as responsabilidades da preservação do patrimônio cultural com o Estado (BIONDO, 2016).
53Sob esta ótica, faz-se mister pontuar que o Iphan estabeleceu, em 2016, um importante marco legal que fortaleceu o campo da Educação Patrimonial: a Portaria Iphan nº 137 de 2016. Esta estabelece o conceito e diretrizes de Educação Patrimonial no âmbito do Iphan e tem como objetivo instituir um conjunto de marcos referenciais para o campo enquanto prática transversal aos processos institucionais de preservação e valorização do patrimônio cultural. Portanto, desde a identificação do patrimônio, ações educativas que promovam a mobilização social em torno das referências culturais da comunidade são fundamentais para incentivar a participação social na formulação, implementação e execução das ações educativas, de modo a estimular o protagonismo dos diferentes grupos sociais.
A referida portaria também traz como importantes diretrizes: integrar as práticas educativas ao cotidiano, associando os bens culturais aos espaços de vida das pessoas; valorizar o território como espaço educativo, passível de leituras e interpretações por meio de múltiplas estratégias educacionais e favorecer as relações de afetividade e estima inerentes à valorização e preservação do patrimônio cultural.
Nesse caminho de valorização das múltiplas narrativas sobre o patrimônio cultural é que a Coordenação de Educação Patrimonial, do Departamento de Articulação e Fomento (DAF), do IPHAN, propôs a publicação Educação Patrimonial: inventários participativos (IPHAN, 2016). É uma ferramenta de Educação Patrimonial com o objetivo principal de promover a mobilização social das comunidades em torno de suas referências culturais, estimulando a busca pela identificação e valorização de seu patrimônio.
Nessa perspectiva, considera a comunidade como protagonista para inventariar, descrever, classificar e definir o que lhe discerne e afeta como patrimônio numa construção dialógica do conhecimento acerca de seu patrimônio cultural. Alinha, ainda, o tema da preservação do patrimônio cultural ao entendimento de elementos como território, convívio e cidade como possibilidades de constante aprendizado e formação, associando valores como cidadania, participação social e melhoria de qualidade de vida.
Com base em metodologias de ferramentas já existentes no Iphan, como, principalmente, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) , foi desenvolvido e disponibilizado, em 2012, o Inventário Pedagógico, fruto da participação do Iphan na atividade de Educação Patrimonial do Programa Mais Educação, da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC). Decidiu-se, à época, que em função da diversidade de contextos culturais e faixas etárias atendidas pelo Programa, seria necessário pensar uma atividade que abarcasse tais diferenças culturais, geracionais e territoriais, criando uma aproximação inicial com o tema patrimônio cultural. Além disso, a partir do trabalho inicial de reconhecimento proposto pelo material, esperava-se incentivar a criatividade e inventividade em cada escola para desenvolver seus próprios produtos e ações.
Em razão de solicitações de técnicos das unidades do Iphan e de outros setores do Ministério da Cultura, bem como por sugestões e demandas de organizações da sociedade civil, decidiu-se adaptar o material para aproveitamento em iniciativas e atividades para além do Programa Mais Educação. Assim, foram feitos ajustes textuais, redefinindo seus potenciais usos e objetivos. A partir dessa reformulação, o alvo primordial dos “inventários participativos” passou a ser a mobilização e sensibilização da comunidade para a importância de seu patrimônio cultural, por meio de uma atividade formativa que envolve produção de conhecimento e participação.
54O Inventário Participativo como ferramenta de Educação Patrimonial
O entendimento de que a cultura e o patrimônio devem ser um dos eixos de desenvolvimento local e, como tal, não deve ser tratado apenas como assunto acadêmico, é outra diretriz importante para a Educação Patrimonial. É um campo de aprendizagem e construção coletiva que reúne os desejos de modelo de sociedade almejado. Sobretudo, o desenvolvimento local é um assunto para os atores locais.
Nessa percepção, Hugues de Varine (2012) utiliza-se de uma metáfora em que o patrimônio, sob suas diferentes formas, forneceria o húmus, a terra fértil necessária ao desenvolvimento local. Para o autor:
O desenvolvimento não se faz ‘fora do solo’. Suas raízes devem se nutrir dos numerosos materiais que, na sua maioria, estão presentes no patrimônio: o solo, a paisagem, a memória e os modos de vida dos habitantes, as construções, a produção de bens e de serviços adaptados às demandas e às necessidades das pessoas, etc (VARINE, 2012, p. 44).
Portanto, o patrimônio constituiria as raízes visíveis das comunidades em seu território, assim, ninguém melhor que os próprios habitantes desses territórios, para assumir a tarefa de sua identificação e preservação. Para os habitantes do território, essa tarefa não é, necessariamente, imprescindível, pois o patrimônio tem uma significação inerente aos espaços da vida dessas pessoas. É tão natural e espontâneo que o vocabulário técnico utilizado pelos profissionais e militantes desse campo, quase sempre, não faria nenhum sentido.
No entanto, segundo o autor, para aqueles que trabalham a favor do desenvolvimento local e consideram o patrimônio como um eixo desse desenvolvimento, o inventário é indispensável. Seria, antes de mais nada, uma ferramenta de sensibilização em torno das referências culturais das comunidades. Porém, uma característica fundamental dessa ferramenta deve ser o seu caráter pedagógico, sua capacidade de ser efetivo enquanto instrumento de mobilização social em torno do patrimônio cultural. Nas palavras de Varine,
Inventário compartilhado é ao mesmo tempo um objetivo e um meio: trata-se, com certeza, de chegar a um produto, utilizando todos os meios de coleta, de registro e difusão; mas é também, e talvez principalmente, uma pedagogia que visa a fazer nascer no território a imagem complexa e viva de um patrimônio comum, de múltiplos componentes e facetas, que se tornará o húmus do desenvolvimento futuro, e que será igualmente compartilhado por todos. (VARINE, 2012, p. 59, grifos nossos).
É sob essa perspectiva que a proposta dos inventários participativos surge na área de Educação Patrimonial do Iphan, como uma ferramenta didática, educativa, com o objetivo de estimular a participação social dos habitantes do território. Primeiramente, voltada ao público escolar, por meio da parceria com o Programa Mais Educação do MEC e, posteriormente, aberta a todos os grupos e comunidades, através da publicação Educação Patrimonial: inventários participativos.
A iniciativa visa propiciar às comunidades o contato com princípios de uma pesquisa de campo, técnicas básicas de levantamento documental, sistematização e interpretação de dados e difusão de informações. Também pretende divulgar alguns preceitos éticos de pesquisa, como o emprego responsável e autorizado de imagens, depoimentos e conhecimentos coletados ao longo do levantamento. O ato de inventariar é concebido como um modo de pesquisar, coletar e organizar informações sobre algo que se quer conhecer melhor. Nessa atividade, é necessário um olhar voltado aos espaços da vida, buscando identificar as referências culturais que formam o patrimônio do local (IPHAN, 2016).
55Também é importante enfatizar que esta iniciativa não tem a pretensão de servir de instrumento de identificação e reconhecimento oficial de patrimônio, nem substituir as atuais ferramentas utilizadas nos processos de proteção dos órgãos de preservação do patrimônio de qualquer esfera de governo. Apresenta-se, de preferência, como um exercício de cidadania e participação social, onde os seus resultados possam contribuir para o aprimoramento do papel do Estado na preservação e valorização das referências culturais brasileiras, assim como servir de fonte de estudos e experiências no contínuo processo de aprendizado.
O inventário participativo é, portanto, primordialmente uma atividade de Educação Patrimonial cujo objetivo é construir conhecimentos a partir de um amplo diálogo entre as pessoas, as instituições e as comunidades que detém as referências culturais a serem inventariadas. Um de seus objetivos é fazer com que diferentes grupos e diferentes gerações se conheçam e compreendam melhor uns aos outros, promovendo o respeito pela diferença e o reconhecimento da importância da pluralidade.
A Publicação “Educação patrimonial: inventários participativos”
Todo inventário necessita de critérios, que são escolhas de quem se propõe a sistematizá-los. Como a gênese do inventário participativo proposto pelo Iphan foi o ambiente da educação formal, esse universo foi o cenário inicial para o qual as categorias dos inventários foram planejadas. Além disso, a experiência do INRC, metodologia institucional para a identificação do patrimônio imaterial, também foi referência fundamental para o objetivo dessa ferramenta.
Outro ponto importante de destaque é o de que as categorias propostas não são, necessariamente únicas e imutáveis. O fato de o inventário ser um instrumento de livre uso, permite que modificações sejam feitas visando a sua adaptação aos objetivos das comunidades que irão utilizá-lo, inclusive na supressão ou inclusão de novas categorias.
Assim, o Inventário Participativo propões fichas para auxiliar na sistematização do conhecimento sobre o patrimônio local indicado e a ser identificado pelas pessoas que vivem nos territórios. Para a organização do trabalho, são propostas as Fichas Estruturantes:
- Ficha do Projeto que será preenchida ao longo de todo o trabalho de inventário e tem a função de organizar as informações coletadas.
- Ficha do Território que visa reunir informações (referências de localização, denominações, história, dados socioeconômicos, entre outras) sobre o espaço delimitado pelos grupos de pessoas que irá produzir o inventário.
- Ficha das Fontes Pesquisadas que têm o objetivo identificar de onde vieram as informações que irão compor o inventário (de livros, de documentos, de pessoas entrevistadas entre outras).
- Ficha do Relatório de Imagens que reunirão toda a iconografia utilizada no trabalho (fotografias, pinturas, gravuras, desenhos etc.).
- Ficha do Roteiro de Entrevistas que serve para organizar, para a realização das entrevistas, os assuntos que o grupo considera importantes para a caracterização da referência cultural que está sendo inventariada.
Além das fichas estruturantes, o inventário também apresenta as Fichas das Categorias, inspiradas no INRC, compostas por Lugares; Objetos; Celebrações; Formas de Expressão e Saberes. Cada ficha possibilita aos grupos identificarem diversos aspectos e elementos referentes aos bens culturais do território, ampliando o conhecimento local e as possibilidades de interação entre os grupos sociais. Além disso, a publicação também apresenta um detalhamento da utilização de cada Ficha, com explicações dos elementos encontrados e sugestões de usos. Cabe, portanto, detalhar, mesmo que brevemente, as características incorporadas por cada categoria apresentada:
- Lugares. Alguns territórios, ou parte deles, podem ter significados especiais. Esses significados costumam estar associados à forma como o território é utilizado ou valorizado por certo grupo; são as experiências dessas pessoas que dão sentido especial ao lugar. Exemplos: uma feira, uma casa, uma praça, um bosque, um sítio arqueológico, um rio, uma ruína de construção antiga, ou mesmo um conjunto desses elementos (uma paisagem inteira!).
- Objetos. Objetos produzidos e utilizados que se relacionam fortemente com a memória e a experiência das pessoas, por estarem associados a fatos significativos de sua história, tornando-se assim uma referência cultural para elas. Por exemplo, em casa pode haver um ferro de passar que já não funciona mais, mas que pertenceu à bisavó, ou um brinquedo preferido da infância, guardado pelos pais como lembrança. Pode ser um instrumento musical antigo e que ninguém mais sabe tocar, mas é importante por ter sido de um artista conhecido e admirado. Pode ser um vaso de cerâmica quebrado, encontrado em alguma escavação arqueológica e que foi produzido e utilizado pelos povos indígenas do local há centenas ou milhares de anos.
- Celebrações. Todo grupo promove celebrações, por motivos diversos: religiosos, de lazer, de festejar as datas especiais para o local, para a cidade, o estado, o país. As celebrações, por terem vários elementos, envolvem várias pessoas e grupos na sua preparação. Por exemplo: as festas dos santos padroeiros das cidades ou as festividades de religiões de matriz africana, como candomblé, umbanda e jurema; podem ser de caráter cívico, como as comemorações das datas importantes da nação ou da cidade; ou relacionadas aos ciclos produtivos, como as festas “do milho”, “da uva”, “do peixe”, marcando momentos especiais da vida de uma pessoa na comunidade – como acontece nos rituais de passagem para a vida adulta de alguns povos indígenas ou nas festas de casamento.
- Formas de Expressão. Nas formas de expressão estão presentes valores e significados da cultura de um grupo. São muitas as maneiras pelas quais uma comunidade expressa e comunica sua cultura: pintura, escultura, fotografia, cinema, artesanato; atividade corporal ou encenação, como a dança, o teatro, um espetáculo, um corso, uma procissão etc. Há as formas de expressão literárias, que podem ser escritas ou orais: provérbios, lendas, mitos, contos, cânticos, ditados, rimas, trovas, adivinhações, orações, ladainhas, expressões regionais, gírias e muitas outras formas.
- Saberes. A realização de um produto ou serviço envolve técnicas e conhecimentos próprios que podem se constituir em referências culturais para o grupo, como a receita de uma comida, ou uma técnica especial empregada para tocar ou produzir um instrumento musical. São saberes que podem ter sentido prático ou ritual e que, às vezes, até reúnem as duas dimensões. É o caso dos métodos
Cabe enfatizar que a decisão de utilizar os Inventários Participativos para identificar as referências culturais de determinado território deve acompanhar outras estratégias, como escolha das metodologias, escolha das fichas a serem utilizadas, definição das categorias que se enquadram na realidade local etc. É imprescindível, também, que o maior número de pessoas possível seja envolvido nas tomadas de decisões, garantindo um processo de inventariação dialógico e educativo. Também cabe ressaltar as potencialidades de estabelecer parcerias locais, com as entidades da sociedade civil, instituições de ensino, poderes públicos, instituições privadas e demais atores sociais que possam, coletivamente, cooperar com este processo, por meio de recursos humanos e financeiros, saberes e olhares diferenciados.
Considerações Finais
A elaboração deste artigo parte do princípio de que o patrimônio cultural se forma a partir de referências culturais que estão muito presentes na história de um grupo e que foram transmitidas entre várias gerações. São elementos tão importantes para o grupo que adquirem o valor de um bem - um bem cultural - e é por meio deles que o grupo se vê e quer ser reconhecido pelos outros.
Toda ação educativa deve assegurar a participação da comunidade na formulação, implementação e execução das atividades propostas. O que se almeja é a construção coletiva do conhecimento, identificando a comunidade como produtora de saberes que reconhece suas referências culturais inseridas em contextos de significados associados à memória social do local; uma ação transformadora dos sujeitos no mundo e não uma educação somente reprodutora de informações, como via de mão única e que identifique os educandos como meros consumidores de informações.
Qualquer que seja a ação implementada ou o projeto proposto, sua execução supõe o empenho em identificar e fortalecer os vínculos das comunidades com o seu patrimônio cultural, incentivando a participação social em todas as etapas da preservação dos bens culturais.
Além disso, é fundamental conceber as práticas educativas em sua dimensão política, a partir da percepção de que tanto a memória como o esquecimento são produtos sociais. Desse ponto de vista, as instituições com foco no patrimônio cultural devem assumir funções de mediação, e, mais do que propriamente determinar valores a priori, devem criar espaços de aprendizagem e interação que facilitem a mobilização e reflexão dos grupos sociais em relação ao seu próprio patrimônio.
É sob esta perspectiva que a Educação Patrimonial pode ser um campo de fomento ao diálogo e à construção coletiva de práticas de valorização e preservação do patrimônio cultural de forma inclusiva e cidadã. Os inventários participativos podem ser, portanto, instrumentos em potencial para fomentar estas práticas.
58Referências
BIONDO, Fernanda. Desafios da educação no campo do patrimônio cultural: Casas do Patrimônio e redes de ações educativas. Dissertação (Mestrado) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro, 2016.
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CHAGAS, Mário. Diabruras do Saci: museus, memória, educação e patrimônio. MUSAS – Revista Brasileira de Museus e Museologia/IPHAN, Departamento de Museus e Centros Culturais, Rio de Janeiro: Iphan, vol. 1, nº 1, 2004
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______. Portaria 137, de 28 de abril de 2016. Estabelece diretrizes de Educação Patrimonial no âmbito do Iphan e das Casas do Patrimônio. Diário Oficial da União, Poder Executivo, 29 abr.2016, sec. 1, n.81, p. 06.
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______. Manual de Aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2000.
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MENESES, Ulpiano B. de – “O campo do patrimônio: uma revisão de premissas” in I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural : Sistema Nacional de Patrimônio Cultural : desafios, estratégias e experiências para uma nova gestão, Ouro Preto/MG, 2009 - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, DF : Iphan, 2012.
SCIFONI, Simone. Para repensar a Educação Patrimonial. In: PINHEIRO, Anderson (org.). Cadernos do Patrimônio Cultural: Educação Patrimonial. Fortaleza: Secultfor: Iphan, 2015.
VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local, Editora Medianiz, 2012.
Para mais informações sobre a trajetória da educação no campo da preservação do patrimônio cultural, ver: IPHAN, 2014; BIONDO, 2016.
Desde a publicação do Guia Básico de Educação Patrimonial (1999), primeira publicação sobre a temática, o Iphan não teria se manifestado oficialmente sobre o entendimento e a concepção deste campo.
Segundo Paulo Freire, a educação problematizadora é um esforço permanente no qual os homens, sujeitos do processo, vão se percebendo criticamente no mundo, pensam em si próprios e em sua condição frente à realidade.
“O INRC instrumentaliza o estabelecido no art. 8º do Decreto nº 3.551/2000, que institui: ‘[...] no âmbito do Ministério da Cultura, o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, visando a implementação de política especifica de inventário, referenciamento, e valorização desse patrimônio”.