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Uma das faces perversas das construções urbanas para aburguesar o espaço público nas áreas centrais de cidades contemporâneas brasileiras é a implantação de tapumes que escondem a obra.
A imagem acima remete aos mais antigos registros fotográficos de uso da orla do Rio Guaíba enquanto espaço central de Porto Alegre devido a sua relevância social e econômica para a cidade desde os primórdios de sua ocupação. Aqui já como uma doca que concentra a conexão da cidade com outros centros de produção e a partir de onde se distribui víveres para outras localidades. Tal condição de centralidade tanto citadina quanto regional, tanto como ponto de distribuição de víveres para a cidade como de distribuição para outros pontos da rede de cidades ligadas pela bacia hidrográfica fez desde sempre a orla do Rio Guaíba na região central de Porto Alegre um ponto de articulação econômica e social de grupos sociais locais e estrangeiros de diferentes níveis no sul do Brasil. Indissociável, logo, a história da cidade com as atividades do rio, em especial na região central, aliás, bairro que teve alterado sua nomenclatura histórica de Centro para Centro Histórico. História que foi ameaçada, antes de se tornar marca no nome, entre os anos de 1970 e 1980 com a construção de um muro de contenção de enchentes separando o porto, o mesmo lá do nome da cidade. Cidade que teve em seguida a construção do muro pela ditadura militar adicionado junto ao muro uma linha de trem metropolitano reforçando a separação junto ao abandono das áreas centrais como espaço de convívio, desde a articulação entre moradia, serviços, comércio e transporte, reduzindo-a a apenas ponto de conexão de transporte e serviço e comércio, incluindo o abandono de prédios e funções históricas como museu e teatro, até o disparate de estudo para derrubada do histórico mercado central da cidade para implantação de viaduto. Era do império da ideia de progresso fundado no automóvel. Felizmente o mercado público não foi derrubado e sofreu uma intervenção o qualificando para a manutenção de sua função, no início dos anos de 1990. Também tentativas de esvaziar o centro de sua função de conexão dos transportes públicos, que inevitavelmente retiraria grande parte do fluxo da área e seu caráter popular, até agora não foram bem-sucedidas. O afastamento do Centro da cidade do rio foi recuperado em parte através da implantação do Centro Cultural Usina do Gasômetro na ponta da península estruturando a ocupação de seu entorno as margens do rio por jovens e em seguida, com a conquista do fechamento de avenida a beira-rio nos finais de semana, de grande afluxo da população, em particular jovens e populares da periferia da cidade e mesmo da região metropolitana. A centralidade na estruturação urbana da cidade do centro foi sendo, ao longo dos anos de 1990 e início dos anos 2000, aproveitada para uma apropriação popular como espaço de lazer. A recuperação do teatro, a criação de centros culturais, a preservação do mercado público como mercado, a manutenção da articulação do sistema de transporte urbano e metropolitano, a continuidade de áreas do bairro para moradia e a ocupação com atividades públicas de diversão na orla do rio devolveram aquilo que parecia roubado do centro: o encontro dos moradores da cidade e metrópole. Claro, que isto não incluiu a burguesia e os segmentos de classe a esta referenciados como a pequena burguesia e setores da classe média, como já escreveu Jacobs, a respeito de Nova Iorque na virada dos anos de 1950 para 1960 (JACOBS, 2001 [1961]). Todavia, parte dos filhos destas classes e segmentos, inseridos na vida social em atividades criativas e culturais e priorizando a formação intelectual se juntaram aos setores populares da periferia da cidade e da metrópole na ocupação cotidiana do Centro.
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O espaço que parecia salvo, exatamente por sua vivacidade se coloca na segunda década do século XXI como atrativo para os capitais imobiliários em sua associação com o Estado e tem sistematicamente sua ocupação pública ameaçada por projetos urbanos de aburguesamento com paisagismo excludente e funções, que tornarão inacessíveis os espaços públicos agora administrados pelo capital, como shopping-center, edifícios de escritórios, prédio para moradia para alta classe e garagem para milhares de automóveis em plena área portuária.
No caso, um projeto que mobiliza diversos movimentos sociais e coletivos contra a privatização da área do antigo porto, agora renomeado como empreendimento imobiliário de Cais do Porto. Aliás, área que vinha sendo utilizada por atividades artísticas como a Bienal de Artes do Mercosul, Feira do Livro de Porto Alegre, espetáculos teatrais, locação para filmes e séries, festas e shows. O capital imobiliário em sua fase financeirizada, associado diretamente ao Estado, intervém privatizando o espaço e uso público e miscigenado do centro. O mesmo capital que abandonou o centro volta agora para sequestrá-lo a partir da valorização dada pelo uso popular. Retorna para explorar a conquista de sua relevância histórica pelo uso popular e cotidiano. Afinal, na segunda década do século, áreas históricas tem apelo aos ouvidos dos endinheirados seja para exploração econômica seja para moradia, pois muitos agora querem viver junto ao charme e glamour da proximidade de teatros, centros culturais, bares e restaurantes. Os mesmos que desde os anos de 1970 do século XX, até os anos 2000, abandonaram o Centro e defendiam reformas urbanas que o transformasse apenas em centralidade viária de conexão através de avenidas e viadutos. Para usurpar a vivacidade que o Centro manteve e se apoderar deste, tentam, capital imobiliário e Estado de modo associado, apagar a memória coletiva, através de muros e tapumes que afastam o olhar dos populares, além dos corpos, da área do centro urbano.
Área que constituiu um sentido de pertencimento aos corpos e olhares em seus usos cotidianos e comuns e também cujos usos e incidência de corpos e olhares a constituiu. Muros e tapumes para apagar a memória da cidade e inserir usos privados em antigos espaços públicos. A estratégia de apagamento do espaço começa antes da inauguração da própria intervenção urbana. Inicia ao separar a área sob intervenção da visão dos transeuntes e usuários urbanos.
Embora os processos de privatização do espaço público, através de uma concertação cada vez mais sistemática e estrutural entre o Estado e os interesses do capital financeiro-imobiliário, sejam explicitamente invisibilizados e inacessíveis ao escrutínio público, mesmo na cidade que inventou o Orçamento Participativo e que ficou reconhecida internacionalmente por esta good practice em fóruns globais de agencias multilaterais; não pode fugir a análise espacial o emprego físico de obstáculos que impedem o acompanhamento visual das intervenções urbanas que privatizam o espaço público.
1663.
Em Porto Alegre, como em outras cidades do país, a construção de muros separando a cidade de seus portos no período da ditadura militar (1964-1985) escancarou o caráter moralista de tais intervenções urbanas sempre justificadas com subterfúgios argumentativos, no caso de Porto Alegre sendo utilizado o risco de enchentes, cuja maior e de grande incidência no centro da cidade ocorreu em 1941, isto é aproximadamente três (3) décadas antes da construção do muro, período em que várias hidrelétricas foram construídas nos afluentes do estuário permitindo um controle da vazão inexistente na época da grande enchente. Processo de higienização e purificação do centro da cidade que se completou com a criação de um cais ao norte do centro junto a estradas e a antigo bairro industrial. Marinheiros, estrangeiros, estivadores e todo o comércio e práticas comportamentais associadas aos portos, como o contrabando, foram escondidas atrás do muro e em seguida esvaziadas, através da construção do porto de Rio Grande no sul do estado do Rio Grande do Sul, sendo as restantes, como restaurantes e bares populares, hotéis baratos, pensões, prostituição e afins levadas para a antiga zona industrial já abandonada com uso quase restrito a galpões e áreas de transbordo de mercadorias. Todavia, não há espaço para ingenuidades nos tempos presentes, tal afastamento ao mesmo tempo em que higienizaria o centro da cidade tornaria invisível práticas ilegais existentes em portos e controladas por conluios entre organizações criminosas, políticos inescrupulosos e empresas capitalistas, como nos apresenta Roberto Saviano em Gomorra (2008 [2006]) a respeito do porto de Nápoles.
Não falemos aqui das relações entre o grupo político que realizou o impeachment da presidenta Dilma e tomou o poder do Estado brasileiro e o porto de Santos, maior porto do país e que, como todos os demais, tem controle irrisório dos contêineres que entram e saem. Se muros foram construídos antes para afastar e esconder práticas consideradas condenáveis ou ilícitas e assim também cumprindo a função de intervir em espaços da memória, no caso em questão a eficácia de apagamento da memória aparece clara quando se depara com a necessidade de explicar às novas gerações porque Porto Alegre tem porto no nome; os tapumes e demais obstáculos de invisibilidade são sistematicamente encontrados nos canteiros de obras que transformam antigos espaços públicos em espaços privados ou de uso privado.
1674.
A transformação não será vista e o apartamento de parte da cidade do uso público invisibilizado ao longo de meses, quiçá anos, adiantará a dinâmica de apagamento da memória do espaço público enfraquecendo pressupostos na construção de sentido do compromisso com a cidade. Enfraquecendo-se assim a cidadania, enquanto compromisso com um destino comum materializado na cidade que articula gerações através de seus espaços de memória. Agora sistematicamente apagados não apenas pela mudança configuracional e tipológica, mas fundamentalmente de usos, ou melhor, de formas de uso, em especial ao transformar o uso público e popular em privado e aburguesado. O sentido estratégico do apagamento da memória destes espaços de uso público se torna claro quando junto à interdição do uso se soma a interdição do olhar da transformação, afastando de todos os modos o espaço dos usos em seu cotidiano. Sem uso e sem sequer a visão do espaço público em processo de privatização e/ou aburguesamento este se afasta de seus usuários e se apaga da memória. O novo espaço privatizado e aburguesado ocupará depois de concluída a obra não o antigo espaço público, mas um canteiro de obras cuja obra era invisível. Assim à cidade se apresentará o novo espaço enquanto recuperação, mesmo que privada, de um espaço que esteve durante um longo período perdido. A perda do espaço público se torna ganho de um espaço.
A estratégia do apagamento do espaço da memória se completará de modo paradoxal e irônico, com o ganho de um espaço privado. Passantes urbanos e usuários não apenas serão excluídos do uso da área re-novada, re-qualificada, re-estaurada como são durante a obra impedidos de mirar a perda. Antes da perda do espaço a ser transformado pelo capital para o capital perdem a visão da alteração que visa excluir o antigo uso popular.
Transeuntes e usuários são impedido de ver o que se passa e a antiga área é retirada da cidade. Porque a transformação se dá apartada da cidade por tapumes. Há nos tapumes um sentido estratégico de apagamento da memória do lugar sob intervenção da associação inescrupulosa entre Estado e capital privado. Sob intervenção soa preciso porque se trata de uma intervenção dos poderes estratégicos em espaços da memória e uso coletivo, espaços das práticas do lugar diria Certeau (1996 [1980]). Daí a proposta de contra-intervenções que instaurem nos tapumes imagens do espaço escondido. No caso, se fez em Porto Alegre, mas poderia ser em qualquer cidade com tapumes que separam partes da cidade em obras da cidade e de seus usos.
1685.
Uma contra-intervenção inserida em uma atividade de coletivos e artistas brasileiros e sul-americanos com curadoria de Maria Ivone dos Santos. Chamamos a nossa ação do mesmo nome da intervenção geral: Ocupa Tapume. Apropriação do nome combinada com a curadoria. Para misturar-nos mesmo. O conjunto da contra-intervenção Ocupa Tapume esteve marcada pela colagem de série de obras de arte no formato de lambe-lambe nos tapumes. Nosso Ocupa Tapume ficou um pouco de lado, ou melhor, ao lado da Usina do Gasômetro, centro cultural supra citado, onde começa a intervenção urbana e, logo, os tapumes. Ali por uma questão logística: precisávamos para a proposta de ponto de energia elétrica e espaço livre para a ação. Se possível estávamos dispostos a ocupar, além dos tapumes, parte da avenida. Não foi possível. Os tapumes possíveis para nossa contra-intervenção estavam ao fundo do estacionamento da Usina, já desativado. Chegamos de dia, mas a ação só iniciaria depois do cair do sol.
Pôr-do-sol, aliás, que era apreciado pelos usuários da área agora sob intervenção, marca natural da cidade, pois muitas vezes se torna fenômeno particularmente belo de se ver: o lento mergulhar do sol nas águas do Rio Guaíba e sua profusão de cores refletidas no céu. Não mais agora, pois até o pôr-do-sol foi sequestrado pela intervenção urbana. As demais obras do Ocupa Tapume foram coladas em tapume junto a via. Nossa intervenção ficou junto ao prédio da Usina. Longe da avenida, mas visível para os artistas e público que entravam pelas portas laterais do prédio da Usina. Ainda no meio da tarde começamos a instalar os equipamentos: tintas, bancos, projetor, câmeras de vídeo e foto, escada, extensão elétrica (várias para alcançar o ponto de energia mais próximo), pincéis, rolos, latas de tintas, latas de água que aos poucos foram somadas com latas de cerveja e aumento dos participantes. A ação teria perenidade, mais do que imaginamos, mas antes seria uma intervenção artística; não, uma contra-intervenção urbana. Definimos a área dos tapumes, medimos, sim, tínhamos trena e lápis, pintamos a madeira dos tapumes esverdeados de branco. Algumas mãos. Era abril, mas fazia calor. No dia seguinte viria o início do impeachment. Deixávamos mais uma vez de sermos o Grupo de Pesquisa Identidade e Território/CNPq para nos travestirmos de coletivo GPIT, agora de contra-intervenção. A noite chegou, projetores foram trocados, pen-drives com as fotos não funcionaram, mas ao fim, sim. Começamos como o combinado. Pintávamos a linha de tempo na parte superior sendo cada período com a cor a ser usada na pintura da foto. Projetávamos três fotos previamente escolhidas de cada período, iniciando no final do século xix, e escolhíamos uma. Pincéis em mãos, íamos à luta, ou melhor, ao tapume. Seis períodos se passaram. Mais pessoas foram aderindo além das pertencentes ao grupo, melhor, coletivo: amigxs, namoradxs e aqueles que tinham estado durante o dia colando os lambes no tapume na avenida. Entre eles, alguns artistas visuais. Não pintaram. Deixaram a festa aos amadores. Mas compravam cervejas cujas latas serviram para a infra-estrutura, afinal com o passar das fotos os pincéis foram precisando de mais e mais recipientes para serem limpos. As latas foram recicladas imediatamente. Aliás, em algum momento alguém pediu mais latas, em seguida mais cervejas chegavam alegrando a montagem do palimpsesto. Palimpsesto que não foi exatamente concebido, afinal a definição das fotos era feita ali no ato e a sobreposição das pinturas das fotos e mesmo os critérios de composição que aos poucos passaram a surgir tomados ad hoc. Aos poucos o resultado ia se descortinando e espantando ao público e pintores. Um quadro figurativo/abstrato se formou. As cores delineavam figuras com certa clareza, mas no conjunto se montava um quadro abstrato.
169Transformado em tela o tapume sintetizava mais de um século de uso da orla do Rio Guaíba no centro da cidade. Ao mesmo tempo em que surgia como mais um uso. Tela-tapume em função paradoxal ali, pois simultaneamente, era dispositivo material de apagamento e de resgate da memoria do espaço. O mural, pois foi o que ficou, esteve ali por pouco tempo. Cerca de um mês depois os tapumes foram retirados e colocados na frente do estacionamento. Pensamos até em nova intervenção: o resgate da obra. Mas deixamos pra lá, afinal tudo indicava os tapumes teriam sido repintados e usados em outra obra ou mesmo ali. Sabe-se lá. Aqui também um novo movimento não projetado: a perenidade não estaria apenas no caráter de performatividade urbana da ação. Estava também na falta de controle sobre o suporte. Performatividade urbana ad infinitum. Mas isto já permitira outra conversa...
Importa aqui é explicitar como as ações de indivíduos e coletivos artísticos vêm se associando aos movimentos sociais na resistência à privatização do espaço público, em especial através da tática da ocupação independente de sua perenidade.
Referências
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis; Vozes, 1996 [1980].
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo; Martins Fontes, 2001 [1961].
SAVIANO, Roberto. Gomorra. A história oficial de um jornalista infiltrado na violenta máfia italiana. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2008 [2006].