1. Introdução
Este trabalho incide sobre os colares de vidro de San Pedro Quiatoni, uma povoação situada no Estado de Oaxaca, na região dos Vales Centrais, habitada por indígenas zapotecas. Ela encontra-se relativamente isolada dos principais centros urbanos da região, separada da cidade de Oaxaca por aproximadamente cinco horas de ônibus através de estradas rudimentares. Nessas circunstâncias, a forma mediante a qual a maioria dos mexicanos percebe essas pessoas e os seus corpos é através de elementos da sua cultura material, colecionados e expostos em museus de todo o país.
Numa região onde as artes têxteis se têm exaltado como um dos aspectos mais marcantes da identidade local, fruto da existência de diferentes "tradições" e da execução de peças de grande qualidade, em Quiatoni os objetos que mais geraram interesse estão também relacionados com as práticas de vestuário e o trabalho femininos. Os colares com contas e pingentes alargados de vidro, montados e usados pelas mulheres zapotecas dessa comunidade, são frequentemente percebidos por "outros" como objetos curiosos. Eles têm suscitado diversas narrativas produzidas desde os vários âmbitos da sociedade, nomeadamente pela museologia e a antropologia, sobre as quais incidirá esta análise.
O objetivo é destacar o carácter agentivo dos colares sobre pessoas alheias à comunidade, evidenciando como as expectativas e preconceitos histórico-sociais relativamente a este tipo de material têm interferido nas percepções da sociedade mexicana ou inclusive dos estrangeiros. Nos referimos àquelas ideias que propagando-se ao longo de gerações, se entranharam tão profundamente até expressar-se em frases populares como "não vale uma conta de vidro". Ela remete essencialmente a uma interpretação histórica acerca das primeiras trocas entre conquistadores espanhóis e autóctones, julgando-as como desiguais e injustas na medida em que pressupunham o intercambio de produtos sem qualquer valor pelo ouro americano.
Este tipo de conclusões são bastante questionáveis uma vez que se baseiam numa avaliação anacrônica. Elas não ponderam a coexistência de dois sistemas monetários distintos durante essa primeira fase de encontro entre as culturas americanas, que valorizaram a novidade do vidro artificial, e as europeias, que tinham como referente o ouro e outros metais considerados preciosos. No entanto, a nossa intenção não é desconstruir estas ideias mas apenas perceber o seu impacto.
As construções assinaladas estão tão arreigadas no subconsciente da população mexicana que resulta praticamente impossível trabalhar sobre os colares de vidro de Quiatoni sem tê-las presente. Por isso se refletirá como lançaram seus tentáculos mais além do inconsciente operativo da linguagem quotidiana e se perpetuaram no discurso da academia.
Assim no museu como na literatura antropológica, essas ideias têm atuado como uma espécie de "pré-conceito", conduzindo à formulação de interpretações que não guardam qualquer conexão com os sujeitos que idealizaram, criaram e usaram essas peças. Ao ignorar tais aspectos se expropriaram os colares da comunidade, apagando as suas memórias nas novas histórias contadas pelos museólogos aos visitantes da exposição ou pelos antropólogos aos leitores de seus textos. Assim se vem subtraindo todo o valor desses materiais como expressões artísticas e culturais de um grupo zapoteco, tornando-os manifestações de algo completamente diferente.
25Ante estas dinâmicas, se descontextualizam os colares e se recontextualizam de novo para ilustrar aquilo que o autor é capaz de reconhecer nessas peças quando as percebe, associando-as normalmente ao mito fundacional da Nação. A consequência mais imediata é que, tanto o museu como o antropólogo, terminam por mostram a comunidade de maneira indireta, através dos seus colares, mas sem contemplá-la nos seus discursos e sem que muitas vezes o público seja consciente da sua existência. Ainda quando se estabelece uma conexão com Quiatoni, os processos de construção da narrativa não incluem a voz da população, mostrando-a sem que ela nunca se tenha dado verdadeiramente a conhecer.
2. As contas de vidro nos museus e as suas narrativas
O trabalho de campo realizado no México entre 2010 e 2014 permitiu localizar os colares de vidro de San Pedro Quiatoni em vários museus nacionais. Em cada uma dessas instituições, a natureza fundacional e as temáticas eleitas para orientar os percursos expositivos, condicionaram os relatos propostos pelos seus autores. No Museo del Vidro, em Monterrey, eles serviram para ilustrar a introdução do vidro artificial em contexto americano e o "intercâmbio desigual" que praticavam os espanhóis com os indígenas. A legenda que o acompanha afirma que as contas são uma produção veneziana do séc. XVI e que o colar foi montado por uma mulher, sem que nada se diga acerca dela, da sua história, ou da sua filiação étnica. No Museo Regional Cuauhnáhuac, em Cuernavaca, os referidos colares associaram-se à história do Estado de Morelos e servem para mostrar as mudanças que ocorreram na cultura material durante o período da administração espanhola daquela região, ainda que aparentemente eles jamais tenham sido usados aí nessa época.
Em Oaxaca, as peças são apresentadas no Museo Belber Jiménez, criado por um casal de colecionadores num edifício cedido pelas autoridades locais . Nele se legitima o ato colecionista, exibindo exemplares expropriados da comunidade e vendendo originais na sua loja. No Museo de las Culturas dessa cidade, eles encontram-se numa sala dedicada ao engenho e destreza dos povos indígenas da região, sobretudo da sua joalharia. No entanto, foi no Museo Textil onde por primeira vez se associaram os colares à comunidade de Quiatoni e por isso cabe deter a atenção neste caso particular.
Ao contrário dos outros exemplos citados, em que os colares incorporaram o percurso expositivo permanente, nesta ocasião eles foram o centro de uma exposição temporal que, seguindo a lógica da criação deste museu, mostrava a diversidade étnica de Oaxaca e as aliava à pluralidade das suas expressões têxteis. Ela foi montada em 2013 sob o nome de “Plata, Vidrio y Algodón. Reflejos de la Ciudad en los atuendos indígenas de Oaxaca” e contou com a curadoria do investigador Alejandro de Ávila Blomberg, especialista em pigmentos naturais aplicados no sector têxtil .
A iniciativa constituiu uma importante tentativa de aproximação entre os materiais e as pessoas que os produziram e usaram. Por primeira vez vincularam-se as peças à região e à comunidade, fornecendo dados de cariz etnográfico e conjugando-as com outros elementos de vestuário para fornecer uma visão mais ampla acerca do seu contexto de uso. Outra novidade importante diz respeito à forma de exposição, que intercala mesas de vitrine fechada com a colocação das peças sobre manequins. Finalmente os colares são literalmente vestidos e se dá um corpo às mulheres de Quiatoni. Não obstante, a imagem concedida é ainda idealizada, assim na narrativa textual como visual.
26No que concerne ao plano textual, ela traduz a experiência e o discurso do curador. Além das inscrições introdutórias à exposição, executaram-se fichas explicativas que acompanhavam os objetos e orientavam as percepções dos visitantes. Numa delas, colocada junto a um dos colares de Quiatoni, podia ler-se o seguinte:
“Os colares (...) têm contas de vidro venezianas de distintos tipos, combinadas em alguns casos com contas pequenas de coral. (...) As anciãs que entrevistamos em 4 localidades desse município em 1985 recordavam que eram os comerciantes zapotecos de Mitla que os vendiam em Quiatoni. Sabia-se que adquiriam os corais na zona do Istmo de Tehuantepec enquanto que as contas de vidro se surtiam provavelmente na cidade de Oaxaca. Recordavam também que as mulheres de Quiatoni iam comprando os pingentes em lotes pequenos, conforme podiam paga-los, para armar os seus colares. Chegavam a colocar-se até 3 colares juntos quando eram as festas. Supostamente os colares com pingentes pequenos eram para as meninas pequenas. Estes colares exemplificam a utilização de materiais importados através do comercio urbano para criar uma joia distintiva, que diferenciava a comunidade das vizinhas. (...)”.
Nessa legenda é bastante visível a marca indelével da interpretação histórica mencionada ao início deste texto. Ela reflete-se, numa primeira instancia, na atribuição das contas a uma origem veneziana, sem que aparentemente tenham sido realizados estudos à composição do vidro que permitam esclarecer essa questão.
Se se assume que os colares são de época contemporânea e que por isso as anciãs entrevistadas em 1985 pelo curador ainda se recordavam que as contas de vidro eram adquiridas na cidade de Oaxaca, haveria que perceber quem eram os fornecedores desses comerciantes. Hoje em dia, ao caminhar pelas ruas do centro da capital do Estado, se podem visitar inúmeros estabelecimentos especializados na venda destes materiais. Nessas lojas, os exemplares de vidro estão normalmente divididos entre "checos", famosos pela sua transparência, ou "chineses", bastante mais baratos. Os últimos apresentam modelos diversos, nomeadamente do tipo "milefiori" cuja produção começou em Itália e durante o séc. XVII e XVIII se estendeu a outras regiões da Europa.
Em nenhum dos comércios visitados se detectou alguma secção de contas italianas que levasse a acreditar que há 30 anos atrás se pudessem distribuir na cidade importações de Veneza. Já por então, a alta estima que haviam alcançado entre os colecionadores levara ao desenvolvimento de uma produção artesanal local de grande qualidade, mais direcionada a nichos de mercado exclusivistas e com características muito distintas àquelas que perseguem, e eventualmente perseguiam, as lojas de Oaxaca. Por esse motivo, e porque os processos industriais conduziram a uma produção massiva dessas contas em praticamente todo o mundo, se acredita não haver qualquer evidência sobre a origem italiana dos exemplares de Quiatoni.
Outra possibilidade, que justificaria a atribuição das contas a uma origem veneziana, é que o autor tenha considerado que esses adornos foram transmitidos ao longo de gerações, de mães para filhas, e que os mais antigos teriam sido executados ainda em período colonial, quando a produção estava mais centralizada. De facto, na sua nota introdutória à exposição, Alejandro de Ávila remete precisamente a essas continuidades relacionadas com as formas de vestir desde pelo menos o séc. XVIII:
27"As mesmas fontes mencionam o uso de contas de vidro e pingentes de prata nas povoações do interior da província. A Relação [Geográfica] de Santa María Jalapa del Marqués (no distrito de Tehuantepec) fala detalhadamente dos colares que usavam as mulheres em 1777: "... se penduram ao pescoço a suas gargantilhas de contas de vidro e de coral com alguns animaizinhos como pombas, águias, chilchotillos ou chilitos, escorpiõezinhos feitos de coral, concha ou prata; destes se agrega que se adornam com alguns relicarios de prata, alguns limpa-dentes y moedinhas..." Sabemos que os prateiros da cidade forjavam muitas dessas joias, enquanto que as contas de vidro eram importadas de Veneza e certamente passavam pelas mãos dos comerciantes citadinos antes de chegar ao pescoço das suas destinatárias."
É certo que em nenhum momento o autor refere Quiatoni. No entanto, ao ler toda a documentação referente a essas relações geográficas feitas em Oaxaca no ano de 1777, o vicário responsável por essa paróquia (Joseph Joachim Angulo) nada informa sobre tais:
"De los trajes modernos que en el día usan los indios de este lugar son cotones y calzones de gerguetilla y mantas de lana; y las mujeres se visten de nagua de manta de lana de varios colores envuelta y por camisa guepiles así mismo de lana de azul y blan- co, y también de hilo blanco de algodón con rebozo de lo mismo; el adorno de la cabeza son unos rodetes de su propio pelo envueltos en unos cordones que llaman tlacoyales de lana negro" .
Atendendo ao exposto, a classificação das contas como coloniais (que neste caso parece ter-se deixado em aberto) e italianas só se justifica porque existe uma espécie de consenso que atribui aquelas que eram usadas no vice-reino a uma produção de Veneza e Murano. Isso, apesar de que estudos mais recentes demonstrassem que as missangas importadas vinham também de outros países europeus ou de Ásia, e que os vidreiros novo-hispanos chegaram mesmo a produzi-las .
Independentemente do período cronológico a que o autor tenha atribuído a execução ou reelaboração dos colares, não faz qualquer sentido uma associação das suas contas com Itália. Ela advêm precisamente do enraizamento dessas memórias e narrativas elaboradas depois da independência do México e que continuam a surgir como a resposta mais imediata para as perguntas acadêmicas.
Outra marca da narrativa histórica tradicional está patente no própria intenção que norteia toda a exposição. O autor assume que os colares de Quiatoni são um exemplo da confluência entre materiais importados e a capacidade das pessoas da região em lhes reconhecer outras utilidades, ou de lhes dar novas formas. Ao conceder um carácter original a essas expressões, ele pressupõe uma oposição entre colares "indígenas" e "não indígenas" separados respetivamente pelo inclusão ou ausência de contas de vidro ou plástico, que com o tempo substituíram as primeiras.
Tudo isso implica assumir esses elementos como próprios das populações indígenas e das suas expressões artísticas. De facto, tal ideia encontra-se respaldada nas políticas nacionais de incentivo às artes e, particularmente, na seleção de "artesanato indígena" colocado à venda nas lojas da FONART, onde não faltam missangas. Percebidas pelos "turistas" e "hippitecas" como "tipicamente indígenas", o crescimento exponencial do seu consumo durante as últimas décadas motivou também o aumento da produção, tornando-a numa atividade importante para certas comunidades. Foram essencialmente as lógicas de mercado que tornaram essas obras numa verdadeira expressão artísticas própria de certos grupos étnicos.
28Na prática, a divisão sugerida pelo autor não acontece hoje em dia, onde se assiste à vulgarização dessas peças, nem aconteceu no passado. As coleções de vários museus nacionais demonstram que esses adornos foram altamente estimados pelas elites novo-hispanas para compor joias ou realizar bordados sobre as mais diversas roupas . Na atualidade, eles continuam a misturar-se com medalhas e crucifixos feitos em metais nobres para executar autenticas joias que podem alcançar preços bastante elevados. Isso por não mencionar as peças totalmente bordadas ou cobertas de missangas cujo consumo se trasladou desde o mercado ambulante até às melhores galerias de arte . Foi a operabilidade do discurso que entende esses materiais como "bugigangas" que conduziu à sua associação com as classes mais pobres da população, geralmente concentradas nos meios rurais e nas povoações indígenas.
No que respeita à narrativa visual da exposição, resulta evidente a associação dos colares de Quiatoni com uma percepção acerca da identidade de gênero dentro da comunidade. Na legenda informa-se o visitante que aqueles colares se montaram por mulheres, expressando o seu gosto e inquietudes. Foram elas que selecionam os vários elementos de vidro ou coral e escolheram a melhor forma de os conjugar. Para o efeito tiveram que acudir a produtos que lhes chegavam desde diferentes regiões do Estado de Oaxaca e compravam-nos em pequenos lotes, à medida que as suas possibilidades econômicas permitiam o investimento. Ainda que para reunir todas as peças tivessem que esperar algum tempo, o colar se terminava como resultado de um processo criativo exclusivamente feminino e dirigido unicamente a esse público.
Por isso, nos manequins os colares são expostos também sobre corpos de mulher, conjugados com roupas de manta. Mas, quando se visita Quiatoni e se passeiam pelas suas ruas, é impossível encontrar alguém vestido assim. O retrato criado não se assemelha ao da mulher atual e talvez ele nunca tenha existido realmente. Em suma, o manequim que o visitante observa na exposição simula apenas uma idealização do seu corpo, da sua fisionomia magra e das suas roupas.
Aparentemente ela baseia-se em recortes produzidos sobre imagens de vestuário que se captaram ao longo do tempo. Esses vultos de mulher são o resultado de uma visão periscópica do curador sobre as práticas de adornar o corpo em diversos momentos da história da comunidade. O resultado é um quadro onde se condensam todos os elementos que alguma vez pertenceram ao vestuário de alguma mulher de Quiatoni. Nesse sentido, ele inclui roupas que obedecem a modelos mais generalizados, mas também peças singulares que poderão resultar de adaptações e invenções particulares. Ante a falta de registos textuais, fotográficos ou pinturas que possam guiar a avaliação destes aspectos da vida quotidiana, resulta impossível ponderar até que ponto essas roupas são representativas de uma suposta identidade local que se trata de transmitir.
29De facto, os modelos expostos no Museo Textil tampouco se correspondem aos que usaram os zapotecos dos Vales Centrais para representar a região durante as festas do "IV centenário da exaltação de Oaxaca à categoria de cidade" e que inaugurarou a celebração anual da Guelaguetza. Era então abril de 1932, pouco mais de 50 anos antes que Alejandro de Ávila realizasse as entrevistas às mulheres mais velhas da região e que lhe permitiram compilar toda a informação sobre os colares. No decorrer dessas celebrações publicou-se um "Album Comemorativo" onde consta uma foto da comitiva na qual "el traje autoctono del Valle luce en esta embajada toda su fuerza racial". Não se sabe se entre essas mulheres estaria alguma de Quiatoni mas as suas roupas assemelham-se às expostas no manequim. Apesar disso as suas blusas são bastante mais modestas e nenhuma pessoa usa o colar de pingentes alargados que agora aparece sobre os seus corpos no museu . Se os guardavam para ocasiões especiais esse seria o momento idóneo para o fazer mas a falta de aspetos "espetaculares" resultou no descaso do compilador do álbum fotográfico que não incluiu uma imagem individualizada de nenhuma mulher da comitiva, tal como procedeu para as demais.
Mais além destas diferenças, a exposição do Museo Textil cria uma imagem da mulher de Quiatoni que se situa numa espécie de tempo mítico, na medida em que foi criado pelo próprio curador e não corresponde a um momento concreto no passado ou no presente . Ainda assim, essas figuras lançam a sua agencia sobre o futuro, sobretudo num contexto de exaltação dos "trajes populares" para a afirmação de identidades locais. A cada ano essas dinâmicas se veem reforçadas na festa da Guelaguetza, onde se reúnem todos os povos indígenas de Oaxaca para se mostrarem com as roupas com que pretende ser associados e distinguidos dos demais. É bem possível que, em relativamente pouco tempo, os processos dialógicos gerados entre o museu, as espectativas do "outro" e a comunidade, conduzam à literal encarnação do "traje" exposto .
Na nossa opinião, o tempo mítico a que se aludiu é interessante para pensar sobre os processos de construção da alteridade e as visões do "outro". Não obstante, quando essa realidade se invisibiliza por detrás de um discurso acadêmico, confunde-se com uma legitimação da autenticidade dessas imagens. Nesses casos, torna-se operativo o entendimento das sociedades indígenas como culturas estanques, sem processos artísticos e sem evolução das suas opções de vestuário. No caso de Quiatoni basta visitar o pequeno núcleo urbano, olhar verdadeiramente para aquelas pessoas e conhecê-las um pouco para perceber tal deslisura.
O panorama desenhado permite afirmar que uma grande parte dos museus mexicanos que expõem os colares de Quiatoni adoptam uma lógica expositiva tradicional. Na maioria as peças servem apenas para ilustrar uma história que o curador quis contar, mas raramente ela se relaciona com a comunidade zapoteca em questão ou com episódios que envolveram esses colares. É possível que esta tendência seja resultado da própria história dos museus mexicanos e da evolução das técnicas de registo desenvolvidas pelas disciplina. Agravando esta situação, ao longo do tempo algumas instituições foram extintas e criadas muitas novas. As suas coleções se desagregaram então em lotes para incorporar o acervo de outros museus. Nesses processos, se perdeu a documentação que ajudaria hoje a contextualizar os colares e dar voz a algumas das suas histórias.
30Quando o curador vê essas peças no depósito institucional e as seleciona para a exposição que pretende levar a cabo, nem sempre sabe quem as doou e pouco conhece sobre elas mais além do que contam os livros de arte e o que aprendeu com a sua pesquisa. Esses vazios, permitem maior liberdade para sentir intensamente as peças e a sua agencia, como propõe Alfred Gell . No entanto, não existe agencia sem interlocutores e esses vácuos dão também espaço à expressão dos preconceitos culturais mais enraizados e inconscientes que foram sendo naturalizados.
São disso exemplo o entendimento das contas como bugigangas sem valor, usadas pelos espanhóis para enganar os autóctones dessas terras. Disso advém a sua associação com os grupos populacionais mais pobres. Para muitos mexicanos, eles confundem-se com as comunidades indígenas já que uma grande parte continua mantendo-se à margem das políticas sociais e a sua renda é bastante baixa, ou simplesmente porque não apresentam os símbolos de distinção social de contextos urbanos mais globalizados. Por isso, quando ambos se cruzam na cidade ou no museu, são incapazes de reconhecer os elementos de status próprios da comunidade.
De maneira geral, o desconhecimento do "outro" permite que ainda vigorem ideias sobre a arte indígena que já há muito tempo condenadas na academia, mas que terminam por emergir das formas mais singulares. Neste caso, elas encapsulam as expressões materiais de Quiatoni num tempo mítico e negam-lhe um processo histórico, seja ele lineal tal como é entendido no mundo dito ocidental, ou circular como o continuam percebendo muitos indígenas mexicanos.
3. A visão antropológica
À semelhança do que acontece no museu, a pesquisa antropológica adopta recortes para entender os seus objetos de estudo, expressando as expectativas individuais. Por outro lado, embora ele possua algumas ferramentas que o ajudam a distanciar-se do "outro", o antropólogo percebe-o através das suas próprias limitações epistemológicas e às vezes vê-se tentado a preencher os vazios mediante construções. Dessa maneira tratam de unir pontos que se lhe apresentam inconexos para dar coerência à sua narrativa.
Tome-se como exemplo a primeira notícia conhecida sobre os colares de Quiatoni em análises de índole antropológica. A partir de 1941 o matrimônio norte-americano Donald e Dorothy Cordry efetuou algumas viagens pelo Estado de Oaxaca e, durante esse trabalho de campo, interessou-se pelo estudo do vestuário das comunidades indígenas da região. As suas reflexões foram publicadas em 1968 mas, nessa ocasião mostra-se apenas a foto de uma "moça de Quiatoni vestindo um huipil de festa com um antigo bordado, e um colar de contas de vidro antigas" . Nada se diz acerca dessa mulher, em que contexto foi tirada a foto ou quão antigas lhe tinham dito que eram esses bordados e contas.
Já em 1975 Donald Cordry escreveu sozinho um pequeno artigo sobre os pingentes de Quiatoni, explicando fora informado de que os colares provinham de uma pequena comunidade zapoteca . Aparentemente ele nunca visitou Quiatoni a as informações foram-lhe transmitidas de maneira indireta ou por alguma pessoa de lá. Mais afirma, que essas peças lhe pareciam ser do séc. XVII ou XVIII mas não indica os argumentos que lhe permitem suster tal suspeita. Certamente elas se fundariam nas mesmas bases que serviram aos diferentes curadores para atribuir uma origem italiana e colonial aos colares de Quiatoni, mas desconhece-se se tal ideia lhe foi transmitida pelos mesmos informantes que lhe contaram sobre a origem dos colares.
31Segundo as palavras do autor, entre 1950-60 esses exemplares vendiam-se junto às ruinas de Mitla e provavelmente terá sido nessa ocasião que ele os comprou a um desses "vendedores de curiosidades". Tal expressão comummente se utiliza para referir-se aos indivíduos que viviam do saqueio arqueológico para oferecer aos turistas peças antigas. Isso poderá justificar porque Donald Cordry suspeitou que as contas fossem antigas e que tivessem sido resgatas em contextos de época colonial.
Ilustrando o texto aparece outra foto da mesma mulher, feita praticamente desde a mesma perspectiva. Em conversas por email com a linguista de zapoteca Valerie Martínez, soubemos que essa jovem era efetivamente de Quiatoni e que estando de visita em Mitla "chegaram uns americanos, lhe emprestaram a roupa, o colar, e os brincos (...), tiraram-lhe a foto e foram-se embora.” . Essa imagem construída pelos Cordry é a mesma que se reproduz no Museo Textil e nos livros de Arte . Sem saber como adquiriram cada uma das roupas e adornos que aparecem naquela foto, é possível avançar que foi o antropólogo o responsável pela imagem periscópica do "traje de Quiatoni" que se vem propagando desde então.
4. Conclusões
No museu os colares de Quiatoni aparecem como "coisas", por usar a expressão de Bruno Latour, que simplesmente ilustram narrativas concebidas sem qualquer diálogo com as peças ou com os seus produtores/utilizadores . Assim, o colectivo híbrido de "coisas-pessoas" referido pelo antropólogo, está composto pelos colares, os curadores e os visitantes, mas muito pouco pelos criadores desses adornos.
O público nacional que acede a essas exposições não inclui as pessoas de Quiatoni, que só raramente têm notícia desses museus e conhecem as suas coleções. Normalmente, os visitantes cresceram com as mesmas narrativas que conduziram à seleção e contextualização dos colares no percurso expositivo. Portanto, o museu ratifica esses discursos e a agencia dos colares é essencialmente a de lhes dar maior consistência e veracidade.
Para o público estrangeiro os colares servem de gérmen para criar uma ideia acerca do "outro", do indígena que viveu no passado e ainda subsiste no presente. Mas as suas percepções são indiretas, tendo como mediador o curador e a voz popular.
A narrativa antropológica não é muito distinta, completando os vazios que o trabalho de campo não conseguiu preencher com ideias pré-concebidas que, por força de as repetir, se têm tornado realidades operativas. O colectivo híbrido de "coisas-pessoas" postulado por Bruno Latour está formado, no caso analisado, pelos colares, pelo antropólogo e seus interlocutores (pessoas que entrevistou), e pelas pessoas que consomem suas obras. Por isso a foto dos Cordry vem alimentando a imaginação de historiadores, arqueólogos ou antropólogos que se inspiram nela para se expressarem acerca dos colares de Quiatoni .
Tudo isto demonstra como os processos de patrimonialização se vinculam a construções fictícias sobre a identidade de um grupo. Que eles estão fortemente influenciados por objetivos políticos, econômicos ou por preconceitos inconscientes que continuam a dar resposta a perguntas que nunca foram respondidas pelos sujeitos sobre os quais incide o trabalho antropológico e museológico. Eles resultam de um processo dialógico constante que inclui correlações entre todo o tipo e áreas do conhecimento e têm a capacidade de atuar sobre a comunidade, transformando-a para a tornar autêntica.
Sobre este museu TALAVERA BENÍTEZ, Luis Fernando, 2011, Oaxaca Patrimonio Cultural de México, Vol. 1. México: Conaulta.
Uma das suas obras mais conhecidas é DE ÁVILA, Alejandro e G. J. MARTIN, 1990, "Estudios etnobotánicos en Oaxaca", en Enrique Leff, Julia Carabias e Ana Batis (eds.), Recursos Naturales, Técnica y Cultura. Estudios y experiencias para un desarrollo alternativo. México: Unam, 147-166. Veja-se também o catálogo da exposição: DE ÁVILA, Alejandro, 2013, Plata, vidrio y algodón: reflejos de la ciudad en los atuendos indígenas de Oaxaca, folheto da exposição. Oaxaca: Museo Textil de Oaxaca.
Biblioteca Nacional de España, secção manuscritos, Relaciones topográficas de pueblos de México, hechas por los curas de los mismos conforme al cuestionario enviado al Obispo de Antequera por D. Antonio Bucareli y Ursúa en 14 de mayo de 1777, vol. 2, Ms, 2450, (Nº 90), f. 160-163.
Como se conhecia o México durante a época colonial. Sobre este tema consulte-se: CAGNO S., DE RAEDT I., T. JEFFRIES, JANSSENS K., 2012, "Composition of Façon de Venise glass from early 17th century London in comparison with luxury glass of the same age", en Wendy Meulebroeck, Karin Nys, Dirk Vanclooster e Hugo Thienpont (eds.) Proceedings of SPIE, vol. 8422 - Integrated Approaches to the Study of Historical Glass. Sem Cidade, SPIE, 1-12. PERALTA RODRÍGUEZ, José Roberto, 2013, "Vidrieros de la ciudad de México en el siglo XVIII. Sitios de producción y comercialización", Procesos Históricos. Revista de historia y ciencias sociales, 23 (12), 2-25.
Expressão mexicana utilizada para designar o grupo vinculado aos movimentos hippy que incorporaram interpretações de práticas pré-hispânicas, normalmente vinculadas aos aztecas (hippy+azteca=hippiteca).
Veja-se por exemplo a excelente coleção de vestuário dos Museo Nacional de História, Castillo de Chapultepec, ou do Museo Soumaya. Para joias confecionadas com missangas é especialmente rico o acervo do Museo Franz Mayer.
Um dos casos que maior exito teve no mercado de consumo de objetos de arte foram as peças huicholes (Nayarit). A título de exemplo mencione-se o fusca totalmente decorado com contas que se expôs primeiro no Museo de Arte Popular, na Cidade do México, e depois no American Indian Museum, nos Estados Unidos, em 2012.
De facto, na descrição dessa cena não existe qualquer referência a Quiatoni: "Aparece la rica región del Valle. Como descubierta desfila el cuadro animado de la Guelaguetza, pintado por Canseco Feraud con todos sus pintorescos símbolos y atributos raciales: vistosos zarapes de Teotitlán del Valle, cántaros y juguetes de Coyotepec y Azompa; jarrones multicolores de loza oaxaqueña, panoplias con espadas, machetes, cuchillos de Aragón de Ejutla, muchas flores, canastos con pan de Tlacolula, nueces, quesos frescos...". VEGA, Agustin, 1938, Oaxaca en el IV centenario de su exaltacion a la categoria de Ciudad. Album Comemorativo: historia, gobierno, sociedad, artes, agricultura, insustria, comercio y profesiones. México D.F.: Formado y publicado por Agustin Vega, s.p.
Paula López reflexiona sobre a questão da autenticidade do legado histórico indígena no presente e conclui que esse "passado" se apresenta frequentemente como uma figuração reitificada, exposta "magicamente" como uma imagem original e, portanto, autentica. Nesse sentido ela se opõe ao que a autora define como "legado", ou seja, as mediações desse passado no presente, considerando que a estratégia seguida pela "história nacional" omite a experiência colonial. (LÓPEZ CABALLERO, Paula, 2008, "Wich heritage for wich heirs? The pre-columbian past and the colonial legacy in the National History of Mexico", Social Antropology, 16 (1), 329-345 [330-331]). Neste caso, embora se trate de tornar visível o legado desse período, a imagem continua dissociada da realidade.
Tal como adverte a investigadora Rita Segato, a "consciencia práctica" de ser sujeto de identidad es substituida por una consciencia obligatoriamente "discursiva" e instrumentalizadora de la propia identidad", como uma "autoclasificación mecánica" (Segato, Rita, 2002, "Identidades políticas y alteridades históricas. Una crítica a las certezas del pluralismo global", Runa archivo para las ciencias del hombre, 23 (1), 239-275 [266]).
GELL, Alfred, 1998, Art and agency. Oxford: Clarendon.
CORDRY, Donald e Dorothy CORDRY, 1968, Mexican Indian Costumes. Austin, Texas University.
CORDRY, Donald, 1975, “Pendant glass beads from San Pedro Quiatoni, Oaxaca, Mexico”, Bead Journal, 1 (4): 10-12.
Citação de email trocado com Valerie Martínez a 18 de Abril de 2013.
DALTON PALOMO, Margarita e Verónica LOERA Y CHÁVEZ, 1997, Historia del Arte de Oaxaxa. Vol. III- Arte Contemporáneo. Oaxaca: Instituto Oaxaqueño de las Culturas, 203-204.
LATOUR, Bruno, 1991, Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro, Editora 34.
Vejam-se por exemplo SMITH, Marvin e Mary GOOD, 1982, Early sixteenth century glass beads in the Spanish colonial trade. Greenwood, Cottonlandia Museum. DUBIN, Lois Sherr, 1987, The History of Beads: from 30 000 b.C. to the present. Nova York, Adams. NUÑEZ MATADAMAS, Ana, 2011, Los habitantes del territorio encantado: construcción y apropiación del espacio entre los zapotecos del Valle de Oaxaca. México, ENAH.