Introdução
O vídeo DRA(P)EAU, apresentado no contexto do encontro internacional Jornadas Abertas “Patrimônios Possíveis”, MediaLab UFG, 2016, é um dos desdobramentos de minha pesquisa de mestrado intitulada ornamento aventura errante, concluída em fevereiro de 2016 no programa Arte e Pensamento da Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará, sob orientação da professora Deisimer Gorczevski. O vídeo foi realizado a partir de imagens feitas com um prédio inconcluso e abandonado que avisto da janela de minha cozinha, e que, durante o mestrado, foi se tornando espaço|pesquisa que passamos a ocupar com diversas atividades, incluindo as próprias orientações e a defesa da dissertação.
O título do trabalho afirma que o ornamento é uma aventura, o que sugere deslocamento no espaço, e emoção. O ornamento é uma aventura em sua própria forma, em sua própria constituição plástica, e uma aventura ao redor, uma aventura que se constitui com o mundo. Nesse constituir-se com o mundo situa-se a potência política do ornamento.
Sempre existiram as toalhas de crochê da avó, os tecidos floridos dos vestidos de menina, a estampa psicodélica da camisa com a qual o pai noivou, o cobertor xadrez, a renda do vestido, um canto de muro úmido de musgo no fundo do quintal, os cobogós da escola, o azulejo do banheiro — essa poesia das coisas que passam quase despercebidas por serem tão ordinárias, compõe a plasticidade de nossa memória, ambientam nossas lembranças, atualizam sensações, constituem a aventura sensorial do vivido e, portanto, nos constituem numa relação com o mundo.
O sentido que o ornamento comunica é sensação. Apesar de ser sempre em abundância e repetição, o ornamento, ao não representar nada, esvazia de sentido ao preencher de forma (à maneira barroca), cria vacúolos de silêncio, expressão criada por Gilles Deleuze (1992), espaços para sensações, de maneira análoga às pinturas abstratas.
A dimensão humana da arte não está, portanto, confinada à imagem do ser humano. O homem também se mostra na relação com aquilo que o rodeia, nos seus artefatos e no caráter expressivo de todos os signos e marcas que produz. Esses podem ser nobres ou ignóbeis, alegres ou trágicos, passionais ou serenos. Podem suscitar estados de espírito inomináveis, e mesmo assim, portadores de uma enorme força (SCHAPIRO,1993, p. 7).
O trabalho “Caminhando”, de Lygia Clark (1963), também pode sugerir uma visualidade para a compreensão dessa pesquisa. A ação consiste em caminhar com uma tesoura, cortando uma fita de Moebius de papel, de modo que, ao criar desvios dos caminhos já percorridos, a fita transforma-se numa espécie de novelo de espaço|tempo. A fita retorcida faz com que a face interna e a face externa se tornem indissociáveis. Suely Rolnik, estudiosa da obra de Lygia Clark, em sua palestra “Micropolíticas del Pensamiento”, proferida na ocasião da conferência “Descolonizar el museo” (2014) , interpreta as duas faces da fita da seguinte forma: uma face são “as formas do mundo” — classe, gênero, identidade, tudo que nos é familiar, a outra, “as forças do mundo”, que nos possibilita criar significados ao constituirmo-nos com o mundo.
Imagino que o ornamento possa ser compreendido como o percurso com a fita de Moebius: uma face é o que pode ser visualizado, suas formas e cores, os lugares onde ele se manifesta, a invenção, seus modos de fazer, suas tradições etc.; a outra, o modo como ele nos afeta, as sensações que nos causa, e que não há que se nomear. A relação entre uma e outra face é paradoxal, ou seja, ela nunca será resolvida, o que acontece nesse meio é um tensionamento, uma fricção, ou desestabilização que pode nos levar à apatia ou à ação. Se essa tensão nos leva à apatia, Suely Rolnik denomina “micropolítica reativa”, pois ela age de modo a neutralizar tudo que seja incerto, e que não possa ser imediatamente apreendido. Formas de neutralização das instabilidades podem ser desde a indústria farmacológica às religiões, ou seja, são formas profiláticas que tem como objetivo resolver esse tensionamento, anulando-o, e impedindo que essa estranheza possa vir a ser outras coisas — como a arte, por exemplo. Se essa tensão nos leva à ação, Suely Rolnik denomina “micropolítica ativa”, aquela que irá dar lugar aos possíveis desdobramentos decorrentes da sensação de mal-estar proporcionada pela dúvida, pela incerteza, pelo que não se consegue denominar.
O processo dessa pesquisa dá visibilidade a um modo fluido entre formas e forças, fluxo de visualidades e de sensações, de criação e partilha, de proposição e expectativa, de pensamento|escrita|ação, de experimentação, de modo a constituir-se o trabalho aos poucos como um sistema aberto, cheio de fios soltos do experimental (HO). O ornamento funciona como um dispositivo que aciono, e coisas acontecem entorno desse gesto, em mim e no mundo. Sigo a aventura, não há objetivo no jogo, o objetivo é jogar.
O único sentido dessa experiência reside no ato de fazê-la. A obra é seu ato. À medida que se corta na faixa ela se afina e se desdobra em entrelaçamentos. No fim, o caminho é tão estreito que não se pode mais abri-lo. É o fim do atalho (CLARK apud CARNEIRO, 2004, p. 88).
O trabalho pode ser compreendido como o tensionamento entre as duas faces da fita de Moebius, considerando que uma jamais existirá sem a outra. Tomando o ornamento como elemento que corta a fita, o emaranhado de espaço|tempo na qual ela se transforma pode ser interpretado nessa pesquisa como os desdobramentos que dela se depreendem: imagens (fotografias), textos (a própria dissertação com escritas e imagens), vivências, performances, leituras, gestos, e o que mais ela pode vir a ser, compreendendo todo esse processo como um trabalho sem fim, ou endlesswork — conceito criado para conferir visualidade à ideia de que a arte é um meio e não um fim em si mesma.
Ao relacionar a pesquisa com a experiência “Caminhando”, proposta por Lygia, interessa-me o fato de que a partir dessa experiência, o trabalho da artista dará um salto e caminhará determinadamente na direção da participação ativa do público, compreendendo suas “obras” como proposições. É o caminho que a levará autodenominar-se não artista, e a construir uma experiência terapêutica da vivência estética ou sensorial.
178Lygia trabalhará no interior de cada sentido: tomando como exemplo o olhar, a questão aqui é de como ela vai de um olhar “objetivo” a um olhar “subjetivo”. Não é novo dizê-lo, mas hoje se têm muitos suportes na pesquisa em neurofisiologia que explicam bem estas duas formas de olhar, pois que existem dois analisadores no cérebro. Poderíamos qualificar o primeiro olhar subcortical. É um olhar através do qual a pessoa se funde no contexto, não há mais um sujeito e um objeto, mas uma participação no contexto geral. Então esse olhar não é interpretado, não é carregado de sentido (GODARD APUD ROLNIK, 2004, p. 53).
Proponho pensar o ornamento como elemento a ser captado por esse olhar subcortical que, ainda como diz Hubert Godard, é um olhar mais primeiro ou menos manchado de linguagem, possibilitando que brechas e imperfeições participem ao constituirmo-nos com o mundo, como diria HO, vivendo em constante estado de invenção — estado esse que nos possibilita pensar com o percurso que faz a tesoura sob a fita de Moebius, e não apenas ora caminhar por uma face ora por outra, mas considerando e valorizando o que é instável, incerto e impreciso, como matéria bruta capaz de inserir na cartografia do presente a aventura de outros possíveis.
Considerando as características instáveis dessa pesquisa, outro modo de compreendê-la é colocá-la à luz do pensamento de Gilles Deleuze, com seu “Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra”. À ciência régia, que podemos compreender como aquela que busca respostas, Deleuze contrapõe a ciência nômade, aquela que propõe questionamentos — herdeira de tribos nômades, de Gengis Khan, e da tradição medieval dos artesãos, que trabalhavam em guildas ou oficinas, e que criavam e administravam seus modos de produção, como sapateiros, ferreiros, costureiras. Esse modo de organização social do trabalho tornava os artesãos mais autônomos e menos suscetíveis a hierarquias, fazendo-os mais livres para inventar seus modos de vida. Os produtos que fabricavam traziam a marca do gesto e do pensamento, propondo outrolhar para a relação entre formas e forças, entre forma e função, negando a visão tradicionalmente “hilemórfica” dessa relação.
179A ciência régia é inseparável de um modelo "hilemórfico", que implica ao mesmo tempo uma forma organizadora para a matéria, e uma matéria preparada para a forma; com frequência mostrou-se como esse esquema derivava menos da técnica ou da vida que de uma sociedade dividida em governantes-governados, depois em intelectuais-manuais. O que o caracteriza é que toda a matéria é colocada do lado do conteúdo, enquanto toda forma passa para o lado da expressão. Parece que a ciência nômade é imediatamente mais sensível à conexão do conteúdo e da expressão por si mesmos, cada um desses dois termos tendo forma e matéria. É assim que para a ciência nômade a matéria nunca é uma matéria preparada, portanto homogeneizada, mas é essencialmente portadora de singularidades (que constituem uma forma de conteúdo). E a expressão tampouco é formal, mas inseparável de traços pertinentes (que constituem uma matéria de expressão). É um esquema inteiramente outro, nós o veremos. Já podemos fazer uma ideia dessa situação se pensarmos no caráter mais geral da arte nômade, onde a conexão dinâmica do suporte e do ornamento substitui a dialética matéria-forma. Assim, do ponto de vista dessa ciência que se apresenta tanto como arte quanto como técnica, a divisão do trabalho existe plenamente, mas não adota a dualidade forma-matéria (mesmo com correspondências biunívocas). Ela antes segue as conexões entre singularidades de matéria e traços de expressão, e se estabelece no nível dessas conexões, naturais ou forçadas. É uma outra organização do trabalho, e do campo social através do trabalho (DELEUZE, 1997, p. 72).
A (in)conclusão da pesquisa se apresenta em quatro percursos que correspondem a quatro ornamentos: miçangas, estêncil, tecido e as coisas mesmas. O vídeo DRA(P)EAU é um desdobramento do percurso cujo ornamento é o tecido, cada percurso é apresentado por um texto que antecede as imagens e os vídeos, e assim se apresenta em minha pesquisa:
Percurso – DRA(P)EAU
Matéria: tecido
O ornamento nesse percurso é tecido.Tecido já tecido, urdido, matéria têxtil, do latim textum, como esse que agora alinhavo, com letras e palavras que são ornamentos de página, como de muro.Tecido que não teci, mas com o qual teço relações com o espaço. Pesa com a água, voa com o vento, veste, reveste, cobre, envolve, vela, desvela, esconde, mostra, modela, amarra, embala o pensamento na forma|movimento como um parangolé. Não são “objetos” relacionais, são matéria relacional, como a miçanga, por isso ornamento. Não é sólido, líquido ou gasoso, é outra a disposição das moléculas. Drap em francês - lençol, peau – pele, eau – água. Ser pele-ser lençol, um tecido sobreconcreto, o concreto subtecido, um desejo de acalentar a gigante cidade, fazer-lhe torniquetes nas sangrias desatadas, compressas, suturas, nós - nó é muita energia concentrada em um ponto só - nó cego, menino teimoso, nó cego, que não desata, memórias incrustadas no concreto. A cidade, como um gigante machucado que todos temem, que justamente por estar machucado, como um bicho, reage selvagem, ferindo muitas vezes quem dela quer cuidar. Quasímodo, Edward Mãos de Tesoura, gigante personagem, que não quer fazer mal, mas que fatalmente machuca. Assim pode ser um pouco a cidade um ser mitológico, meio homem meio selva de pedra, com andrajos sujos de piche, emendada com cordas e tecidos e nós. Para se aproximar é preciso estar determinado. Dedicar tempo à cidade, plantar árvores e ciclofaixas, regar memórias, ocupar imóveis desocupados, nadar no mar, fazer hortas comunitárias, fechar ruas do bairro para (cre)lazer, promover a balneabilidade livre - festinhas à beira mar, projeção de filmes ao ar livre. Ao cuidar da cidade inventamos outra possibilidade de política, potente, viável, prêt- à- pôrter.
Cor: estampa
Espaço: cor , multitude, multidão, apropriação da grande quantidade, do muito, da repetição, infinito contido no espaço, estampa. Como disse um pouco acima, texto é tecido, um tecido estampado é carregado de sentido têxtil, textual abstrato, não menos político que um sistema representativo, a abstração revela a dimensão humana da arte ao tornar visível o que nem existe. O tecido estampado traz um texto que o diga. As cores, os motivos infantis, corações, a escolha da inocência na estampa para os elementos relacionais, revelam intenções sobre o gesto de colocá-los, pendurá-los, amarrá-los, aqui ou acolá. Devem contrastar, compor, conversar com as superfícies. Estão os tecidos comigo, aqui e ali pelo bairro, mas ultrapasso ocasionalmente a zona da residência, levando-os comigo a criar um território nômade e volátil pela cidade, infinito enquanto dura. No decorrer das imagens as ideias tornam-se expressão, é desejo de que linguagem surja das proposições, desdobrando a experiência ao infinito. A ideia seminal dessa pesquisa partiu de questionamentos acerca da propriedade, “a propriedade privada é um roubo”, definiu Thoreau. Ao financiar um imóvel, estaria eu apenas erguendo minha própria cerca? Ou posso fazer dessa cerca membrana? Tão habituados estamos ao sistema em que vivemos, imersos nas “águas geladas do cálculo egoísta” desde há muito, membros enrijecidos, desejos enrijecidos, sonhos enrijecidos, seguimos sem sair do lugar, como presos a um grande bloco de gelo deslocado das calotas polares. Qualquer esforço feito no sentido de questionar essa condição é válido, a arte é um esforço de questionar já inventando outro modo. Quando estendo um tecido crio um território que apesar de ser delimitado, não é uma propriedade, como se o território coubesse todo na extensão de sua bandeira, espécie de non-site. Levo, coloco ali, recolho coloco acolá, mapasmoventes, cartografia nômade. A matéria compõe com o espaço situações, no decorrer das imagens anseia-se pela máxima, que elas digam mais que mil palavras.
180Referências Bibliográficas:
CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo: Imaginário:FAPESP, 2004.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs.Capitalismo e esquizofrenia, v.5. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997
ROLNIK, S; DISERENS, C. “LYGIA CLARK da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro." Catálogo publicado pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006.
SCHAPIRO, Meyer. Mondrian: a dimensão humana da pintura abstrata. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Doutrina que afirma a matéria e a forma como os dois princípios básicos e complementares do universo."hilemorfismo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/hilemorfismo [consultado em 30-01-2016].
Nesse percurso tudo que é dito sobre cor pode ser dito sobre espaço, entendendo o tecido como um parangolé, um elemento total.