“Esse caderno é a vida, são as veias, enquanto mais anos mais veias.
No final acaba tudo nas veias”(Dona Maria Ferreira, 2015)
O que é patrimônio para você? Este tem sido um mote provocativo que a professora artista Lilian Amaral tem feito constantemente quando trata sobre questões patrimoniais alargando perspectivas que passam do institucional para a valorização de subjetividades quando investiga como se dá a relação das pessoas e da cidade com o seu patrimônio cultural. Através do conceito de “Cartografias Culturais” e noções de “Cartografia Social”, a autora se propõe pensar as realidades locais como um “museu” que aproxima passado e futuro, memória e experimentação, por meio “da criatividade social, ação coletiva e práticas artísticas”.
Saímos de uma noção de patrimônio como algo encerrado no passado para uma concepção mais perto de nós que possa mobilizar as experiências vividas de cada sujeito ou de cada comunidade. No caso deste texto, apresentamos uma experiência de produção de poéticas compartilhadas na qual este conjunto de saberes e fazeres tem aspectos de pedagógicos, estéticos e culturais que podem ser considerados como importantes componentes no repertório das artes visuais. Sem dúvida, passam por esse conjunto concepções já sistematizadas de patrimônio material, imaterial, intangível e demais outros conceitos. Ricardo Huerta tem trabalhado com uma noção de patrimônio mais ampla e que não se fixa em determinadas características ou a determinados contextos. Para Huerta
El significado de patrimonio evoluciona y se adapta a las diferentes realidades. Las constantes modificaciones que detectamos en el tratamiento de los bienes patrimoniales son invadidas por presencias y ausencias que van marcando sus características y sus funciones. Aspectos clave del patrimonio como la identidad, lo aprendido, la posesión, lo heredado, lo protegido y atendido, se unen a todo aquello qye fluye y puede pertenecernos en un momento determinado, incluso siendo únicamente el disfrute de lo vivido la parte adquirida. Por tanto, lo virtual como lo perecedero, si es compartido, también se intuye como patrimonio. (HUERTA, 2012)
Este trabalho surgiu do desejo de modificar a relação da vivência artística do individual para o coletivo, mediante propostas de criação compartilhadas, um trabalho onde artistas se colocam como propositores, como provocadores da ação, ou seja, se abrem para que a criação não fique apenas voltada para seus próprios questionamentos, percepções e reflexões sobre um determinado assunto. Essa maneira de trabalhar busca a participação do outro e o processo de criação procura desenvolver aspectos conviviais, uma arte considerada por Borriaud (2009) como relacional: “Conjunto de práticas que toma como ponto de partida teórico e prático o grupo das relações humanas e seu contexto social, em vez de um espaço autônomo e privativo. ” BORRIAUD (2009, p.151).
Arte, cotidiano e cultura: uma visão expandida
Vivemos momentos onde a arte desceu as escadas da glória modernista e de novo se movimenta ao encontro da vida, do cotidiano, alargando repertórios estéticos e práticas artísticas. Este movimento atinge a educação da arte em seus princípios epistemológicos e metodológicos empreendendo novas jornadas em busca de horizontes educativos mais sedutores e significativos. Assim, entendemos sedução como processos de mediação necessários a esses novos tempos, como nos aponta Coutinho (2010) sobre a expansão deste conceito quando sai de circuito fechado “das iniciativas que privilegiam a essencialidade da própria arte como finalidade da experiência...”. A autora indica que:
76Outras iniciativas tomam a arte como meio para possibilitar experiências de ordens diversas, como experiências de construção ou reconstrução de identidades, ou experiências com ênfase em processos de subjetivação, ou ainda as experiências que exploram os sentidos de coletividade ou que estimulam princípios de cidadania. (COUTINHO,2010, pp. 4-5)
Acreditamos em ações arte educativas que tenham o potencial para esse conjunto de aspectos citados por Coutinho. Para tanto, o próprio conceito de modernista de arte onde o artista é o principal sujeito precisa ser revisto. Para Efland (2008, pp.189-190) “arte é uma forma de produção cultural”, que abarca diferentes tempos e sujeitos , deixando seu isolamento como “objeto esteticamente único”.
A compreensão de artes visuais como campo expandido e a relação colaborativa entre o ambiente construído da cidade e escolas está no centro da nossa visão de práticas de educação transformadora para a formação de profissionais das artes visuais com outras perspectivas. Muitos são os projetos que investem em ações propositivas de criatividade social, práticas artísticas e ações coletivas. No Brasil temos vários grupos atuantes neste sentido, utilizamos como referência para esse trabalho as ações desenvolvidas pelos coletivos: Poro (Belo Horizonte), GIA (Salvador), Coletivo Pi (São Paulo), grupos que participaram do VII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual em 2014. Estes grupos trabalham com modos de fazer e pensar a arte na contemporaneidade, interagindo com o mundo e relacionando-se com a cidade e seus diversos contextos: o social, a política, a cultura, a educação entre tantos outros.
Laddaga (2012, p.28) comentou em sua obra Estética da Emergência sobre articulações de artistas e escritores que: “renunciam à produção de obras de arte ou ao tipo de repúdio que se materializava nas realizações mais comuns das últimas vanguardas, para iniciar ou intensificar processos abertos de conversação (de improvisação) que envolvam não artistas (...).” Foi desse modo que nos posicionamos para o desenvolvimento do Projeto.
Situando o projeto e seus atores
Para dar corpo e voz às autoras desse artigo, é importante situar o contexto da nossa atuação. Somos professoras da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás atuando nos cursos de licenciatura e bacharelado e desde 2005 temos procurado desenvolver projetos que ultrapassem os muros da universidade, considerando a diversidade de saberes e produções artísticas e culturais que pudessem servir como fonte para novas aprendizagens dos nossos estudantes.
Considerando as experiências já vivenciadas e com desejo de desenvolver uma prática artística que transforma e constrói a vida cotidiana, fomos ao encontro de um grupo extra universidade com o qual pudéssemos desenvolver processos de criação colaborativas a partir de práticas cotidianas (saberes especiais) na relação com o lugar.
77Em 2014, fomos contemplados com o auxílio do Fundo de Cultura do Estado de Goiás, o que possibilitou a realização do Projeto “Por uma poética compartilhada” no Bairro Itatiaia, vizinho da Universidade Federal de Goiás, do qual, já tínhamos o desejo de nos aproximar como professoras de artes visuais da UFG. A proposta englobou a imersão no bairro, o contato com os moradores e a oferta de oficinas de capacitação com o intuito de estimular nos participantes percepções no campo da arte e reflexões sobre seus lugares de vivência e morada. Com essas ações, aproximamo-nos de um grupo de senhoras entre 60 e 80 anos, moradoras do bairro e adjacências que se reúnem na Paróquia Nossa Senhora Assunção todas as sextas-feiras há alguns anos. Entre elas, estavam: Sônia, coordenadora do grupo, muito ativa e preocupada com a participação delas nas atividades a serem desenvolvidas; Josefa, uma das moradoras mais antigas do bairro, acompanhou o início da implantação do Bairro Itatiaia e da Universidade Federal de Goiás, muito alegre e sempre animada no que lhe era solicitado; Maria Divina, que considerava o grupo uma família e estima muito a amizade das colegas; Dona Leonina, aos 82 anos de idade, adorava seus vizinhos e demonstrava ser o ombro amigo do grupo, carismática, muitos a chamavam de mãe por conta de sua presença em momentos de aflição (faleceu este ano); Solange, sua filha, a acompanhava nos encontros, ao primeiro momento se apresentou tímida, mas aos poucos, fomos descobrindo uma pessoa bem humorada; Maria das Graças era a mais extrovertida do grupo, animando os encontros com suas peripécias; Adelina veio de Rondônia e mora em Goiânia acerca de 8 anos anos, reside no bairro chamado Alice Barbosa, próximo ao Itatiaia, por se sentir em um ambiente desconhecido procurou a igreja para se socializar com a comunidade e Maria de Lourdes e Maria Inês, irmãs que revezavam a participação nos dias de encontros, pois cuidavam da mãe. Cada uma com sua história de vida que se entremeia com a história do bairro.
Nessa empreitada, além de nós duas professoras, autoras desse texto, também estiveram como propositores das atividades: Carolina Figueroa, Kelen Susan, Jhony Robson e Gil Santiago, estudantes da Faculdade de Artes Visuais, e Don Gomes pós-graduando em Arte e Cultura Visual.
O projeto transitou entre educação formal e não formal, uma vez que de um lado, tivemos professoras e estudantes de artes visuais de uma Universidade Federal e de outro, tivemos as senhoras (e por extensão algumas participantes mais jovens como filhas ou netas). Ao longo de cinco meses de vivências, buscamos proximidades entre a arte, como lugar de interações e relações intersociais, e a comunidade. Levantamos histórias de vida, hábitos e práticas culturais das participantes. Tivemos vários encontros, durante os quais desenhamos e contamos histórias, visitamos exposições de arte e falamos sobre arte contemporânea. As oficinas se desenvolveram a partir de instigações sobre as histórias, contextos e vivências das participantes sobre seus bairros, entre eles, Itatiaia, Morada do Sol, São Judas, bairros que ficam no entorno da Universidade Federal de Goiás. Tivemos como intuito a aproximação da comunidade com as questões artísticas atuais, provocando reflexões sobre arte contemporânea a partir de seus próprios saberes.
78Oficinas: espaços para se fazer arte e conversar sobre arte.
Foram realizadas atividades de oficinas e de visita a espaços expositivos. Nas oficinas trabalhamos com desenho e gravura. Começamos conversando sobre as chegadas/mudanças no Bairro. Desenharam sobre suas vidas e ruas onde moram, contaram desde o momento em que chegaram, suas percepções de como era o Bairro antes e como está atualmente, falaram também de questões pessoais, externando alegrias e tristezas. Percebemos em suas falas diversos pontos que uniam uma história à outra, a chegada ao bairro, o encontro com o grupo, a construção de amizades. Assim, os relatos tocaram em um assunto que nos levara até ali, o compartilhar e em vários encontros trabalhamos com as mulheres questões relacionadas a está temática rua/bairro/vida/práticas cotidianas.
Ao pensar sobre o local de moradia, as participantes aos poucos foram compartilhando conosco narrativas sobre o lugar que residem, as relações, os aspectos físicos, entre outras observações sobre como é “viver ali”, naquele lugar. Desenhavam e depois falavam sobre o que haviam feito. Mostraram suas casas, as conversas e amizades com os vizinhos, as árvores da rua, os buracos no asfalto, o lixo que ultimamente tem acumulado pelas ruas, entre outros assuntos. Percebemos que havia um grande interesse pelas árvores de suas ruas e as plantas que cultivavam em casa, daí começamos a pensar que esse cuidado era importante e nos atentamos para trazer essas questões no trabalho poético com elas.
Outra atividade realizada foi a visita a duas exposições no Museu de Arte de Goiânia (MAG) : “A Página e o Livro de Artista” exposição de gravuras e “Antologia do Múltiplo”. com livros de artistas. A maioria do grupo comentou nunca ter ido a um museu, principalmente com aquele tipo de trabalho, arte contemporânea. Houve um certo estranhamento a primeira vista, mas depois aproximações, pelo que ouvimos em seus depoimentos (veja descrição a seguir). Pedimos para que cada uma selecionasse um trabalho que mais se identificasse e tivemos surpresas e fomos surpeendidas com suas escolhas e falas:
- Dona Maria Ferreira: “Esse caderno é a vida, são as veias, enquanto mais anos mais veias. No final acaba tudo nas veias. (caderno atravessado por linhas)
- Dona Leonina: Este caderno me lembra dos desenhos das crianças, dos netos. Me lembram as flores da minha casa antiga. Tudo lembra ao passado, é tudo lembrança. (caderno com colagens de flores)
- Dona Josefa: Eu não entendo muito, mas me tocou. Me lembrou da Bahia, quando eu morava lá, na Bahia. É praia, sertão. Eu me vejo em tudo isso aí. Ai está a caatinga! (caderno de parede "o que ela vê pela janela", tons cinzas)
- Sônia: No começo não entendi, mas agora já sei, há alguém deitado, mas não dá para ver o rosto. Parece que vai acabar, mas dá a volta e nunca acaba, não termina.
Apesar dos depoimentos serem instigantes em relação à maneira como dialogaram com as obras, a alegada dificuldade em compreender certos trabalhos contemporâneos, fez com que elas nos perguntassem sobre o que aqueles trabalhos representavam, o que queriam dizer? Disseram que viram coisas que nunca imaginavam, que para elas era muito difícil fazer um trabalho de arte. Tentamos contextualizar de forma resumida as modificações pelas quais a arte passou entre os séculos XIX e XX. Entre o que falávamos e o que ouvíamos de volta, parecia que as articulações sobre o fazer artístico começavam a se engendrar de forma menos pré-determinada a exemplo do que temos no espaço formal das aulas na universidade.
A visita às exposições fez com que elas percebessem que a arte não é apenas uma representação de um rosto, de uma flor ou qualquer outra coisa. Podemos observar em suas falas uma abertura para as possibilidades artísticas, que arte vai além de um desenho, uma pintura, que há outros meios e modos de expressão, diferentes do que elas conheciam como arte.
Todo esse processo de interação nos permitiu ir conhecendo as participantes e que elas também fossem nos conhecendo, entendemos a necessidade de sermos maleáveis na condução do projeto, modificando o planejamento das oficinas de acordo com as necessidades que iam surgindo. Um projeto desta natureza trabalha com a imprevisibilidade, e quanta surpresa ocorria a cada encontro desalojando didáticas pré estabelecidas. E o que se apresentava em cada encontro como caminhos e possibilidades, a equipe (professores e alunos) buscava compreender os acontecimentos para dar continuidade ao trabalho. Essas reuniões foram momentos complexos de indefinições, indecisões, mas ao mesmo tempo enriquecedores de nossa pesquisa. Kinceler (2008, p.1790) comentou sobre a arte colaborativa “como processos de convívio complexos onde o tempo da experiência é sentido como a realização de mundos possíveis...” As experienciações nos levou à reflexões mais concatenadas com as realidades do grupo que estávamos trabalhando. Vivência que também gerou acolhimento e integração. Para Dewey (1974, p. 253): “A experiência constitui-se de um material cheio de incertezas, movendo-se em direção a sua consumação através de uma série de variados incidentes.”
Aos poucos fomos nos integrando ao grupo e sentindo-nos acolhidos por elas, por meio dos sorrisos, das boas conversas e também dos lanches que nos ofereciam. O acolhimento é parte fundamental nesse processo do trabalho com um determinado grupo. Nunca deixaremos de ser “estrangeiros”, “as pessoas da universidade”, marca que delimita posições de pertencimento a um determinado contexto. No entanto, é por meio do acolhimento que recebemos uma permissão para que as trocas pretendidas pudessem ser estabelecidas.
Por meio dessa imersão fomos conhecendo as práticas cotidianas dessas mulheres, gradativamente a cada encontro e em camadas de experiências de vida: problemas pessoais e familiares, percepções sobre as mudanças no bairro, identificação de locais mais representativos, amizades construídas, chegadas e partidas.
A certa altura, já com uma familiaridade estabelecida, as mulheres demonstraram preocupação para desenvolver as atividades propostas, pois diziam ter dificuldade de compreender o que queríamos delas. Essa revelação denota como trabalhos com a comunidade podem ter um caráter diretivo onde essas pessoas são facilmente alvo de ações que não lhes dizem respeito. Isso fez com que refletissemos até e como o nosso projeto poderiam de fato sustentar um caráter relacional. As dificuldades de ambas as partes foram sendo trabalhadas coletivamente e tentamos deixar claro que o que dava sentido ao projeto era a relação que estava acontecendo entre todos, mediada pelo fazer, pensar, experienciar e discutir arte. Ressaltamos, ainda, que tudo era importante para o processo, tais como as histórias de vida delas, a do bairro e a experiência do processo como um todo.
80Em um projeto que propõe o compartilhar, lidar com as incertezas faz parte do processo de criação, pois as dúvidas que apareceram nos fizeram refletir sobre a intencionalidade de nossas ações. O lidar com incertezas foi algo que vivenciamos a cada encontro, sabíamos que a construção da proposta era coletiva, entre nós da equipe e as mulheres participantes, apenas sabíamos que buscávamos desenvolver algo que estivesse relacionado ao universo delas, ao seus cotidianos. Assim, a cada encontro o processo desenvolvido entre conversas e fazeres foi nos mostrando que não era tão relevante nos focar no que seria o produto final, pois “a obra de arte contemporânea não se coloca com término do “processo criativo” (um produto acabado pronto para ser contemplado), mas como um local de manobras , um portal um gerador de atividade. Bricolam-se os produtos, navega-se em redes de signos, inserem-se suas formas em linhas existentes” (BORRIAUD, 2009b, p.16). A partir desta compreensão que há um planejamento, mas que também há vivências, e assim se torna necessário o “tempo da espera” para que as relações que se estruturem, pois em um processo de arte e de ensino que se pretende colaborativo, todos participantes do trabalho devem estar cientes do seu fazer.
O processo de criação foi sendo conduzido por nós e por elas, pois a arte “é um tal fazer, que enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer (...). Nela concebe-se executando, projeta-se fazendo, encontra-se a regra operando” (PAREYSON, 2001, p. 26). E assim em um processo de “formatividade” fomos trabalhando, buscando que as questões importantes para o grupo, tornassem presentes, evidentes, não só para nós, mas para elas também.
Intervenções no Bairro- um duplo sentido de ocupação
Partindo das oficinas que se relacionaram as histórias e ao cotidiano delas, desenvolvemos uma oficina de postais com o grupo e o tema proposto foi "Ocupações do Bairro", ou seja, expressarem as atividades rotineiras e comuns que elas vivenciavam e percebiam ali. Iniciaram desenhando, mas houve abertura para outras técnicas (pintura, crochê, bordado, tricô, etc), pois manifestaram o incômodo e a dificuldade em que tinham em desenhar, e assim fomos trabalhando, buscando uma imagem que fosse ao encontro não só do lugar onde elas moram, mas também relacionando com suas práticas cotidianas.
Passamos a compreender as questões que eram importantes para o grupo que estávamos trabalhando e nos questionamos como equipe. O que realmente queríamos como resultado desta experiência? As vivências e as reflexões da equipe foram aos poucos direcionando caminhos. Percebemos a importância do universo da intimidade e da casa para essas mulheres e decidimos pensar o "íntimo" como perspectiva para o desdobramento das proposições, compreendemos também que é desses íntimos que elas apresentam uma percepção do Bairro."
81O cuidar e o tricotar: plantas e crochê
A frase de Solange (participante do grupo): "No bairro há muita árvore, às vezes os mesmos moradores cuidam delas, outras vezes não, as árvores precisam de muito cuidado”, e o depoimento de Dona Luzia: “Na minha porta tem uma árvore, ela fica tão florida que nem dá para ver a rua. Meus vizinhos são ótimos, embora não frequento suas casas. Eu amo minha rua e minha casa”, além dos depoimentos das outras participantes quando falavam de seus universos, de suas histórias, levou-nos a atentar sobre a importância das plantas para elas, percebemos a afetividade presente nessa relação quando falam das árvores de suas ruas, de seus canteiros e vasos. Nas visitas às casas, a maioria nos mostrou e com orgulho suas plantas, de como foram concebendo aqueles espaços que para elas estavam impressos sentimentos, afetos. Além destas plantas que cuidam dentro de suas casas, há uma vegetação presente em todo o Bairro, este é todo atravessado por uma praça, apenas em 2 ou 3 trechos ela é cortada por rua, percebe-se o verde presente. As plantas, quer no vaso dentro de casa, quer na árvore na rua, demandam um cuidado constante cheio de afetividades, que eram demonstradas nessa ação do cuidar.
Aos poucos fomos observando também que a maioria delas eram fazedoras de crochê, sempre nos encontros mostravam os trabalhos que produziam, bicos de pano de prato, de toalhas, tapetes, capa para cabide entre outros artefatos. A prática do crochê, seja como uma terapia ocupacional, passatempo, hobby, seja para fins comerciais, gera uma relação de prazer, dá sentido ao tempo e ao espaço que as cercam.
Resolvemos associar essas práticas para desenvolvermos as proposições artísticas coletivas e de intervenção no bairro. As percepções sobre o cultivo de plantas e a “fazeção” de crochê levou-nos a estimulá-las a fazer as plantas em crochê, falamos para elas sobre essas nossas percepções, perguntamos o que achavam? Imediatamente se animaram a produzir. Levamos linhas e agulhas e a produção tomou um envolvimento surpreendente.
Essa atividade foi aceita com entusiasmo, pois estavam sendo solicitadas a produzir algo que lhes era próximo, assim disse uma delas: “Vocês podiam ter falado que era para a gente fazer o crochê, daí já tínhamos feito bastante”. Explicamos o porquê de todo o percurso e que para chegar até aquele ponto precisávamos desse convívio gerador de conhecimentos e de familiaridade com seus fazeres e práticas cotidianas. É o que Vesta Daniel (2005, p.125) discorre sobre o prestígio do conhecimento que os participantes trazem consigo, derivado do contexto de sua experiência.
Desse modo, o nosso propósito inicial efetivou-se ao desenvolvermos de interações no território das artes, interligando à realidade que nos foi apresentada, para Ardenne (2006) uma arte contextualizada.
A partir deste momento a produção foi a todo vapor, levaram linha para casa e fizeram mais peças de crochê, na sequência montamos uma grande peça com tudo o que foi feito, como uma colcha de crochê ou de retalhos e a colocamos entre as árvores da praça da Igreja, o entusiasmo delas ao ver seu trabalho ali exposto foi surpreendente e para nós da equipe muito satisfatório ao perceber que conseguimos em pouco tempo conhecer os mundos dessas pessoas e dialogar artisticamente. Partindo desta produção de crochê, a equipe chegou em duas matrizes para a reprodução de padrões que nos levaram a intervenções no bairro com lambe-lambe, cartaz artístico colado em espaços públicos, que tiveram o intuito de despertar nos moradores reflexões e relações com o seu bairro.
Durante os encontros, sempre procurávamos falar e mostrar trabalhos de arte contemporânea. Apresentamos trabalhos de alguns participantes do grupo, para criar uma proximidade delas com a arte contemporânea, falamos das questões que interessam atualmente um artista e como ele/ela a desenvolve. Também foram apresentados artistas que utilizam trabalhos manuais em suas propostas: Rosangela Ricalde, por suas cartografias imaginárias, Carolina Ponte, Magda Sayeg, Agata Olek, Cristal Gregory, pelos trabalhos artísticos com a técnica do crochê.
No momento que chegamos às casas das participantes para a ação com lambe, o projeto chegou a um momento de “êxtase”, ali percebemos a dimensão das relações que estávamos criando com aquelas mulheres, e agora com seus vizinhos também que chegavam para ver o que estava acontecendo e também compreender o porquê daquilo, uma rede de conexões passou a existir.
Considerações finais
Interagindo com a produção dessas mulheres, por um lado e por outro com a interação delas em nossas questões do pensar arte e ensino de arte na contemporaneidade, deflagrou a proposição de uma ação artística a partir da relação dos saberes e afetos daquelas mulheres no contexto de sua comunidade. Uma “articulação constante com a cultura, percepção atenta, diálogo permanente, produção de acontecimento e acompanhamento integral.” (KINCELER, 2008, p.1796). Ao mesmo tempo, pensamos que este bairro é também comunidade universitária, onde se encontram vários restaurantes, onde professores e estudantes almoçam, bares onde estudantes se reúnem, que em alguns casos, são também moradores do bairro. Se esta vizinhança foi o nosso ponto de partida para buscar trânsitos de experiências artísticas podemos dizer que os pontos de “chegada”, são também pontos de partida para outros compartilhamentos que não necessariamente serão deflagrados por nós da universidade. As primeiras possibilidades já pudemos ver na reunião de vizinhos curiosos com a aplicação dos lambe em postes e fachadas de casa. Como a dona de cada casa ia explicando a natureza do que estava acontecendo. É possível vislumbrar outras ocasiões como por exemplo, quando as mulheres que participaram do projeto mostrarem o livro a seus familiares e amigos, serão questionadas sobre o que significa tudo aquilo.
83Como foi apontado ao longo do texto, duas atividades marcaram os saberes e afetos daquelas mulheres, o amor e cuidado pelas plantas e a feitura do crochê. Visivelmente, um patrimônio daquelas mulheres, do bairro e das relações de vizinhança. Estas duas ações podem ser entendidas no contexto da cultura contemporânea (e na arte também) como fundamentais para repensarmos arte e educação e as concepções de patrimônio cultural de forma mais expandida. Concepções de ecologia dos conhecimentos e dos afetos podem ser trabalhados como “táticas” que constroem pequenas sustentações para evitar ou resistir à depessoalizações da vida contemporânea.
Assim concluímos um projeto que buscou o compartilhamento com a comunidade, tendo a arte (no seu sentido ampliado) como potência de interconexões entre práticas estéticas e práticas cotidianas, gerando experiências significativas para todos os envolvidos no processo.
Referências
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HUERTA, Ricard (org.) Educación artística: revista de investigación (EARI), Nº. 4, 2013 (Ejemplar dedicado a: Patrimonios migrantes).
KINCELER, J. L. “As noções de descontinuidade, empoderamento e encantamento no processo criativo de “Vinho Saber – Arte Relacional em sua forma complexa”. In: Anais do 17 Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais, Florianópolis, 2008. Pp-1790-1800. Disponível em http://anpap.org.br/anais/2008/artigos/162.pdf
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PORO. Intervalo, respiro e pequenos deslocamentos. [e-book]. 2011. Disponível em: www.poro.redezero.org/publicacoes/ebook
Sobre as exposições:
- A Página e o Livro de Artista, organizada pela Profa. Lucia Fonseca (UNICAMP), exposição coletiva que apresenta livros de artista, investigações sobre o desenho e diversas possibilidades bi e tridimensionais.
- Antologia do Múltiplo, exposição que são exibidas gravuras e estampas criadas por doze artistas que frequentaram nos últimos anos o ateliê de gravura da Faculdade de Artes Visuais da UFG, coordenado pelo Prof. ZéCésar.