39

Caro educando e cara educanda,

Chegamos à Parte 4 do Módulo II do nosso curso. Ao finalizarmos este estudo, esperamos que vocês tenham domínio de conceitos básicos sobre as comunidades rurais e tradicionais e percebam que elas representam um conjunto diversificado de populações com hábitos e culturas diferentes e que ocupam territórios heterogêneos.

Muitos dos elementos que vamos tratar aqui já foram apresentados nas três primeiras partes deste módulo. Portanto, vamos retomá-los, buscando fazer uma síntese de tudo que já vimos. Mas, ainda assim, queremos enfatizar um tema novo: a participação social.

Nosso curso é sobre saneamento e saúde ambiental em comunidades rurais e tradicionais. Conhecer estas comunidades e como elas se organizam, interagem e estabelecem estratégias para enfrentar seus desafios comunitários ajuda a definir as tecnologias e ações adequadas para melhoria do saneamento e saúde nas áreas rurais. 

Vamos retomar nosso estudo??

Foto: Sara Duarte, 2016.

O território das comunidades rurais e tradicionais.

Vamos retomar alguns aspectos já estudados. Você já percebeu que as comunidades rurais e tradicionais conquistaram seu território por meio de muita luta social. Esta “luta” foi possível em função da organização social destas populações em grupos coletivos, identitários, movimentos sociais e sindicais.

Muitas lideranças já foram ameaçadas e assassinadas ao defenderem os direitos básicos das comunidades rurais e tradicionais. Podemos citar o caso de Chico Mendes, assassinado em 1988, em Xapuri – Acre, ao defender o direito dos povos seringueiros na Amazônia. A luta de Chico Mendes foi importante para dar visibilidade à problemática ambiental enfrentada na Amazônia, bem como ao direito dos povos das florestas pelos seus territórios e seu trabalho.

Outro exemplo marcante foi o assassinato da irmã Dorothy, em Anapu-Pará, 2005. A religiosa defendia os direitos dos trabalhadores rurais na região do Xingu e, com a Comissão Pastoral da Terra, era uma defensora da reforma agrária, além de atuar como mediadora ou facilitadora na busca de resolução de conflitos fundiários. 

Na região centro-oeste, particularmente em Goiás, também tivemos muitas lideranças populares e religiosas que atuaram em favor dos pobres do campo. Dom Tomas Balduíno, falecido em 2014, deixou imenso legado de orientações e ações em favor dos camponeses, assim como a herança histórica e ainda atuante de Dom Pedro Casaldáliga, que desde sua ordenação atuou na criação das comunidades eclesiais de base.

Essas lideranças, por meio dos seus exemplos e de suas organizações, contribuíram para a construção e consolidação de muitas comunidades rurais e tradicionais. Estas comunidades, durante décadas de luta, se reconheceram como sujeitos de direito e se afirmaram em suas múltiplas identidades, seja de camponeses, agricultores e agricultoras familiares, assentados e assentadas de reforma agrária, povos indígenas, populações tradicionais, quilombolas, ribeirinhos etc.

A história dessas comunidades rurais e tradicionais traduz a história do seu território. Este se expressa muito mais do que a terra de trabalho; ele representa uma estrutura social e organizativa, um arranjo cultural e uma forma de produzir. São modos de vida que se expressam num lugar e numa identidade que resiste a inúmeras pressões.

40

Essa luta social, a busca por direitos e a afirmação das suas identidades e dos seus territórios levaram estas populações e organizações sociais a estabelecerem laços de solidariedade e ações conjuntas pautadas na contestação social ao modelo de desenvolvimento predatório e ao gigantismo industrial, inspiradas nos princípios do movimento ambientalista que emergia a partir da década de 1960.

Enquanto isso, o Brasil vivia o que Porto-Gonçalves (2016) identifica como o processo de expansão da fronteira geográfica do capitalismo, marcado pelas estratégias do modelo desenvolvimentista implementado durante a ditadura militar e seus respectivos impactos sociais e ambientais, especialmente com iniciativas voltadas para a ocupação e integração da Amazônia desde 1960 e a implantação do Programa Grande Carajás em 1970.

Como resultado, as décadas de 1970 e 1980 marcaram a ebulição dos movimentos sociais e ambientalistas no país, que tiveram como palco principal a região amazônica. Nesse contexto, a integração de diversos atores sociais na Aliança dos Povos da Floresta e os seringueiros, representados pela liderança de Chico Mendes, tiveram um papel de destaque a partir da década de 1980, quando integraram questões sociais às questões ambientais no centro dos debates internacionais, no que ficou conhecido mais tarde como ecologismo popular (MARTINEZ-ALIER, 2007).

O lançamento do Relatório de Brundtland em 1987, marcou a configuração de uma nova vertente, com a apresentação do conceito que ficou conhecido como desenvolvimento sustentável. Nessa nova vertente, acredita-se em um modelo de desenvolvimento que considere questões ambientais, sociais e econômicas de forma integrada.

Nesse processo, em termos de fortalecimento das redes de organizações podemos mencionar experiências como: Via Campesina; Marcha das Margaridas; Articulação Nacional de Agroecologia; Movimento Unitário, entre outros. Todas estas organizações, quando mencionadas em conjunto, passaram a se assumir como povos do campo, das florestas e das águas.

Na década de 1990, ganhou notoriedade a expressão e os estudos sobre a agricultura familiar. Esta denominação seria empregada às diferentes populações rurais que vivem do trabalho familiar por meio de atividades, eminentemente, rurais. Trata-se de um conceito difuso e, por certo, amplo. Mas, em 2006, o termo ganhou status de norma por meio da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, denominada Lei da Agricultura Familiar. O artigo 3º da lei passou a denominar agricultor familiar e empreendedor familiar rural o indivíduo que pratica atividades no meio rural e atende, simultaneamente, os seguintes requisitos:

I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;

II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;

III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo;

IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

(LEI nº 12.512, de 2011)

Aplicando-se os critérios desta lei, no Brasil tínhamos mais de 4,1 milhões de estabelecimentos da agricultura familiar, com base no Censo Agropecuário de 2006/2007.

Os povos e as populações tradicionais também foram beneficiados por meio desta lei e reconhecidos como tais (agricultores familiares) para fins de acesso às políticas públicas.

Atividade

Agora vamos refletir sobre isto e fazer um debate? (FÓRUM)

Quais movimentos sociais e sindicais de luta pela terra existem no seu município?

Qual é a história deles?

41

Nossa sociedade se organiza por meio de regras e princípios que garantem direitos e deveres a todos e todas. Estas regras e princípios, sob a forma de leis, estão dispostos de forma hierárquica, tendo como lei maior a Constituição Federal.

O direito aos territórios indígenas (artigos 231 e 232) e quilombolas (artigo 68, parágrafo 5º do artigo 216) por estas populações está assegurado na Constituição Federal. Além disto, a Carta Magna apresenta um capítulo sobre a reforma agrária (artigos 184 a 191).

Para efetivar estes direitos, outras normas foram necessárias (já mencionamos no início deste módulo o Estatuto da Terra e o Decreto nº 6.040, por exemplo), bem como a definição de órgãos que fizessem a gestão deste tema no sistema de governo. No caso brasileiro, a questão indígena está sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai). A questão da reforma agrária e regularização dos territórios quilombolas estão sob gestão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Para as terras quilombolas, o processo de certificação e reconhecimento deve ser instruído pela Fundação Palmares.

Esses órgãos passaram por muitas mudanças desde sua criação. Portanto, em termos de execução de política pública, é sempre pertinente verificar as competências de cada um relativas ao tema que se pretende atuar.

Quando falamos de saúde e saneamento, por exemplo, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Ministério da Saúde são órgãos que possuem unidades específicas para tratar deste tema junto a estas comunidades. Quando o tema é educação, tanto o Incra quanto o Ministério da Educação possuem políticas específicas para estas comunidades.

Integrar as ações dos ministérios em prol dessas comunidades é um arranjo complexo e necessário. Considerando o sistema de governo brasileiro, ainda se faz necessário articular as esferas estaduais e municipais para garantir que as ações desejadas sejam efetivadas nos territórios rurais.

Esse é mais um desafio para as organizações e os movimentos sociais. Por isto, a articulação em redes e as mobilizações sociais são muito importantes. Além disto, a participação social e a representação destas comunidades nos espaços de definição da política pública são fundamentais para a efetividade dos direitos destas comunidades rurais e tradicionais.

Para saber mais:

Ano Assunto Lei Fonte
2006 Agricultura Familiar Lei n nº 11.326, de julho de 2006 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11326.htm
1964 Estatuto da Terra (Reforma Agrária) Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4504.htm
1981 Meio Ambiente Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm
1990 Criação do Sistema Único de Saúde Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm
1993 Reforma Agrária Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8629.htm
1997 Recursos Hídricos Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9433.htm
1998 Crimes Ambientais Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9605.htm
1999 Educação ambiental Lei no 9.795, de 27 de abril de 1999. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9795.htm
2003 Regularização Fundiária de remanescente de comunidades quilombolas Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm
2006 Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Lei nº 11.346, de setembro de 2006 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm
2007 Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e comunidades Tradicionais Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm
2007 Saneamento Básico Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11445.htm
2010 Estatuto da Igualdade Racial Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm
2012 Código Florestal 2012 Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 http://www.planalto.gov.br/cciviL_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12651.htm
2012 Política de Agroecologia Decreto nº 7.794, de 20 de agosto de 2012 http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2012/decreto-7794-20-agosto-2012-774041-retificacao-137452-pe.html

Conselhos

Conselhos Nacionais Regulamentação
CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente Decreto 99.274/90.
CNRH - Conselho Nacional de Recursos Hídricos Decreto nº 4.613, de 11 de março de 2003.
CONDRAF - Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável Decreto nº 9.186, DE 1º de novembro de 2017
CNPCT - Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007.
CONSEA - Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Decreto nº 6.272, de 23 de novembro de 2007.
CNPIR - Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial Decreto nº 4.885, de 20 de novembro de 2003
CNAPO - Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica Decreto nº 7.794, de 20 de agosto de 2012
42

Atividade

Refletindo sobre o que vimos até aqui, vamos olhar para o nosso município e buscar identificar quais são as ações (ou políticas) e os órgãos da administração pública municipal que atuam diretamente com as comunidades rurais e tradicionais?
(FÓRUM)

Unidade administrativa municipal Tipo de ação ou política pública Tipo de comunidade rural ou tradicional atendida

Considerando as ações e políticas que você conseguiu registrar, quais são os resultados obtidos e quais são as principais dificuldades encontradas para sua execução?

Ação ou política pública Resultados obtidos Dificuldades encontradas para sua execução

Participação e controle social nas políticas públicas

A desconfiança sobre os serviços do Estado e a burocracia levou à criação de mecanismos e instrumentos de controle e supervisão na administração pública, com maior impacto a partir dos anos de 1990 (MILANI, 2008). Para Milani (2008, p. 554), “Fazer participar os cidadãos e as organizações da sociedade civil (OSC) no processo de formulação de políticas públicas foi transformado em modelo da gestão pública local contemporânea”.

O tema da participação social teve um grande impulso no Brasil durante as décadas de 1970 e 1980, com o processo de abertura democrática e a atuação dos movimentos sociais pela transparência nas políticas públicas. Fruto deste processo, a Constituição Federal de 1988 (art. 204) legitima “a participação da população por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. Assim, a participação social ficou instituída, no âmbito das políticas públicas, como eixo fundamental na gestão e no controle das ações do governo.

A obrigatoriedade da participação social nos processos de elaboração e gestão de política pública foi sacramentada na Constituição Federal de 1988. O parágrafo 3º do artigo 37, com a nova redação atribuída pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998, apresenta que “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta”. Em vários artigos da Carta Magna está mencionada a participação social, que deve ocorrer na forma de plebiscito, consulta popular ou audiências públicas (PASSOS, 2011). Outros mecanismos de participação social também se confundem com o de controle social, como é o caso da representação em conselhos de políticas públicas, tais como: Conselho de Educação, Conselho de Saúde, Conselho de Meio Ambiente etc. Segundo Souza (2012, p. 14.), na institucionalização da participação, destaca-se a descentralização administrativa com gestão participativa, em particular na seguridade social (artigo 194), na saúde (artigo 198), na assistência social (artigo 203) e na educação (artigo 206).

43

Para Cordioli (2001), participar significa tomar parte no processo, acompanhar de forma qualificada as atividades geradas por meio de decisões coletivas e partilhar dos resultados. Neste sentido, o processo participativo é um caminho para o fortalecimento da cidadania, quando os indivíduos passam a ser sujeitos ativos na realidade em que vivem.

A prática da cidadania passa pela organização coletiva em espaços de discussão, definição de prioridades, elaboração de estratégias de ação e estabelecimento de canais de diálogo com o poder público. Entretanto, a realização de reuniões e consultas às comunidades não garante que as decisões sejam resultantes de processos verdadeiramente participativos, servindo muitas vezes apenas para referendar as soluções trazidas pelos técnicos ou os interesses dos dirigentes políticos (GOMES et al., 2015; DUALIBI et al., 2005).

Arnstein (1969) identifica que o ponto fundamental da participação social está na redistribuição do poder, de forma que, sem ela, a participação se torna uma retórica frustrada, conveniente aos detentores do poder, mantendo o status quo. Deste modo, o autor apresenta uma percepção sobre oito graus de participação social identificados em espaços públicos de tomada de decisão, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1 - Oito degraus em uma escala de participação social
Fonte: ARNSTEIN, 1969.
8 Controle do cidadão Graus de poder do cidadão
7 Poder delegado
6 Parceria
5 Apaziguamento Graus de tokenismo
4 Consulta
3 Informação
2 Terapia Graus de não participação
1 Manipulação

Na classificação proposta por Arnstein (1969), o autor identifica três situações fundamentais de participação social: a não participação, o tokenismo e o poder do cidadão. Nos graus inferiores da escala, são identificadas a manipulação (1) e a terapia (2), que descrevem os graus da não participação, cujo objetivo real não é permitir que as pessoas participem, e sim que os detentores do poder “eduquem” ou “curem” os participantes.

Os próximos graus, identificados como informação (3), consulta (4) e apaziguamento (5), descrevem o que o autor identifica como tokenismo, no qual o cidadão ouve e é ouvido, se posicionando em relação a uma situação. Entretanto, nesse nível não existe um acompanhamento que garanta a mudança de um status quo.

Os últimos graus refletem o nível de poder do cidadão, com graus crescentes de influência decisória, identificados como parceria (6), poder delegado (7) e poder do cidadão (8). Neste nível, o autor propõe que o grau de parceria (6) permita a participação e negociação com os detentores de poder em situações de tomada de decisão, enquanto nos graus de delegado (7) e controle do cidadão (8), os cidadãos representam a maioria ou total dos assentos em uma situação de tomada de decisão

Em se tratando de construção de política pública, a participação social pode ser compreendida como um mecanismo de negociação para geração de consensos ou tentativa de consensos. As conferências participativas, recorrentes nas últimas décadas no Brasil, buscaram, por esta perspectiva, a construção de planos e a definição de políticas públicas e sua priorização.

44

Porém, a participação social não é a mesma coisa que a busca de consenso. A participação implica não só a presença representativa dos indivíduos e coletivos, mas sobretudo a possibilidade de assumir compromissos com o que se está debatendo, discutindo e decidindo. Podemos falar, neste caso, de uma participação vinculada a uma cidadania substantiva (CASTRO, 2016). 

O termo participação social é polissêmico e pode ser interpretado sob diferentes modelos e visões de mundo (AGUIAR; MELO, 2016) . Aguiar e Melo (2016) defendem uma ideia de participação social como ação comunicativa, indicando que,

Um modelo de gestão participativa pressupõe um processo democrático de cooperação e de caráter pedagógico, como um processo de aprendizado estabelecido de forma reflexiva, tal como propõe Habermas (1997, v1. E v2), de modo que a população ao se conscientizar de seu papel política-deliberativo, possa influenciar de forma ativa na sua formulação, execução e avaliação (AGUIAR; MELO, 2016, p. 67).

Para Milani (2008, p. 557), a ótica de reestruturação do estado nos anos de 1990, estimulada pelo Fundo Monetário Internacional, “banalizou-se a afirmação de que a participação social seria um ingrediente fundamental na prestação mais eficiente de bens públicos, inclusive e sobretudo no âmbito local”. O autor desenvolve a ideia de que buscar soluções locais para superar a crise do Estado do Bem-Estar Social tratava-se de uma panaceia para o desenvolvimento ao se considerar um cenário mundial em vias de globalização financeira e com expressos processos de desigualdades econômicas e sociais.

Há outros modelos para se pensar a participação. Porém, em todos eles, faz-se necessário perceber que nem todos participam dos processos de consulta, monitoramento, avaliação e elaboração das políticas públicas da mesma forma. E, quando participam, nem sempre participam em condições de igualdade. Milani (2008, p. 559) apresenta um conjunto de questões que devem ser consideradas para se pensar a participação social, tais como: de que tipo de participação se trata? Participação em quê? Para quê? Como? Além disso, quem participa? Quem são os cidadãos e as organizações autorizados a participar? E em que espaços de decisão ou canais de participação podem participar?

Avritzer (2008), por sua vez, fala de “instituições participativas”, definindo-as como as “formas diferenciadas de incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na deliberação sobre políticas” (AVRITZER, 2008, p. 45). Para o outro, há três formas básicas pelas quais as pessoas participam no processo de tomada de decisão política: o desenho participativo de baixo para cima, a exemplo do orçamento participativo; o desenho institucional baseado na partilha de poder entre atores estatais e sociedade civil (a exemplo dos conselhos de políticas públicas), e a forma de instituição participativa compreendida pela não participação da sociedade civil no processo decisório, mas somente na sua ratificação pública (a exemplo da elaboração dos Planos Diretores Municipais) (CUNHA, 2016).

Sob a ótica das organizações e dos movimentos sociais que se fortaleceram em fins da década de 1990, a participação social é considerada uma possibilidade de fazer chegar a política pública para as populações vulneráveis. Esta perspectiva ficou denotada no conjunto de conferências nacionais realizadas a partir de 2003 (SOUZA, 2012) , das quais as populações rurais tiveram protagonismo na Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (CNDRSS), da Conferência Nacional de Economia Solidária (CNES) e da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, dentre outras. A participação nos espaços de ‘concertação social’ e diálogo é vista como possibilidade de mudanças e busca pela efetividade de direitos pelas organizações sociais. Os documentos da CNDRSS , por exemplo, trazem um conjunto de propostas de políticas que visam a atuar na melhoria da qualidade de vida das populações do campo, das florestas e das águas, reconhecendo sua diversidade cultural e territorial.

45

A participação social foi incorporada na gestão da saúde desde a constituição federal. Mas, em termos da política de saneamento, o marco legal que a incorporou é de 2007 (Lei nº 11.445 de 5 de janeiro de 2007). A Lei de Saneamento Básico define o controle social como o:

conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participação nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados com os serviços públicos de saneamento básico.

É compreendida, portanto, como a participação do cidadão na gestão, fiscalização, no monitoramento e controle da população em relação à administração pública, o que fortalece a cidadania e a previne contra a corrupção.

Porém, articular a participação social das comunidades rurais e tradicionais na política nacional de saúde ou na de saneamento ainda segue sendo um desafio. A participação e o controle social em saneamento ainda são recentes, se comparados a outras áreas (saúde e meio ambiente, por exemplo). Mesmo com a Lei de Saneamento Básico, que institui o controle social como um princípio, deve-se considerar que ela foi concebida entre forças progressistas e conservadoras, sendo que o próprio decreto regulamentador não segue efetivo na questão deliberativa de participação social. Fóruns participativos, a exemplo, são influenciados com a alternância política, e as audiências públicas são influenciadas por governos locais, sendo necessário "repolitizar a gestão", e o marco legal, então, não é suficiente (BRITO, 2016).

 As experiências mais recentes estão no âmbito da elaboração do Plano Nacional de Saneamento Básico, Programa Nacional de Saneamento Rural e nas experiências municipais, ainda que limitadas, dos Planos Municipais de Saneamento Básico. Ações de educação ambiental como ferramentas de transformação e as metodologias interativas são estimuladas como formas de empoderar as comunidades e criar meios facilitadores de comunicação e participação (BRASIL, 2009; KUMER, 2007). A participação social está, também, vinculada a diferentes propósitos. As práticas de educação popular (BRASIL, 2012; 2014; FREIRE, 2002; BRANDÃO, 1983), por exemplo, têm grande influência nas metodologias destinadas a promover processos de emancipação e autonomia para as populações vulneráveis. Isso será discutido nos módulos subsequentes.

Em se tratando de participação social com fins de elaboração de política pública, o acesso facilitado a dados e informações sobre as políticas torna-se fundamental para tomada de decisões. Inúmeros são os mecanismos de difusão de informações delineados pela I Conferência de Transparência e Controle Social, realizada em 2014. Dentre estes, se destaca o Portal da Transparência do governo federal. Ele tem sido utilizado para divulgar dados de gestão pública (http://www.portaltransparencia.gov.br).

46

Exemplos de mecanismos de participação e controle

  • Ouvidorias: contato mais individualizado de participação social, no qual o diálogo dos cidadãos com o Estado viabiliza busca de informações, críticas e avaliações por parte dos cidadãos.
  • Conferências: espaços para debate entre Estado e sociedade, contribuindo com a expansão da participação social.
  • Mesas de diálogo, fóruns, audiências públicas e consultas públicas: promovem parcerias, expandem a participação popular e reúnem movimentos sociais, empresários, trabalhadores etc.
  • Orçamento participativo: consente que a sociedade opine sobre temas ligados a despesas públicas, sendo um exercício de cidadania, permitindo até mesmo que a população eleja obras prioritárias.
  • Conselhos de políticas públicas: espaços institucionais de interação entre sociedade e Estado, onde há representantes da sociedade civil, assim como do poder público, sendo fundamentais para que estados e municípios recebam recursos do governo federal.
  • Associações, sindicatos e ONGs: organizações de sociedade civil sem fins lucrativos, que trabalham em prol da resolução de problemas que atingem a sociedade, sejam estes de esfera econômica, social ou cultural, atuando como fiscais do poder público, estimulando a cooperação social.
  • Mídia e jornalismo: importantes por conseguirem revelar a transparência das ações públicas, fomentando o controle social e permitindo que a população critique a realidade.
  • O ativismo digital ou ciberativismo: praticado por quem tem acesso à internet, pode ser utilizado para divulgar reivindicações da sociedade, possibilitando, também, acesso a fóruns e grupos de discussões virtuais, entre outros instrumentos.

Atividade

Depois de tudo que lemos e estudamos sobre participação e controle social, vamos retomar a última atividade e olhar para o seu município.

Quais conselhos municipais existem? Em quais deles são debatidos os temas de saúde e saneamento? Em quais deles há representação social da sociedade civil? Em quais deles há representação das comunidades rurais e tradicionais?

 (FÓRUM)

Nome do conselho municipal Lei de criação Objetivo do conselho
Nome do conselho municipal Tem representação das organizações da sociedade civil? Sim ou não? Tem representação das comunidades rurais e tradicionais? Sim ou não? Em caso positivo, qual o nome da organização?

Quais planos municipais o seu município possui? Ele foi elaborado quando? Foi elaborado de forma participativa? Há destaque para políticas voltadas para as comunidades rurais e tradicionais?

Tipo de plano Data de elaboração Tem ação específica para as comunidades rurais e tradicionais? Sim ou não?
Plano Diretor Municipal
Plano de Saneamento Básico
Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos
Plano Municipal de Meio Ambiente
Plano Municipal de Saúde
Plano Municipal de Educação
47

Referências

AGUIAR, Marluce Martins de; MELO, Elza Machado. Participação como ação comunicativa. In HELLER, Leo; AGUIAR, M. M. de; REZENDE, Sonaly C. (Orgs.). Participação e controle social em saneamento básico: conceitos, potencialidades e limites. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2016, p. 76-93.

ARNSTEIN, SHERRY R. A ladder of citizen participation. Journal of the American Planning Association. vol. 35, issue 4, p. 216 - 224. 1969.

AVRITZER, L. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, v. 14, n. 1, p. 43-46, 2008.

BRANDÃO, C. R.. O que é educação popular. Mimeo. 1983.

BRASIL. Caderno Metodológico para ações de educação ambiental e mobilização social em saneamento. Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Programa de Educação Ambiental e Mobilização Social em Saneamento. Brasília, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI. Educação do Campo: marcos normativos. Brasília: SECADI, 2012.

BRASIL. Secretaria Geral da Presidência da República. Marco De Referência Da Educação Popular Para As Políticas Públicas. Brasília, 2014.

BRITTO, Ana Lucia. Controle Social e participação no saneamento: experiências internacionais e os impasses na realidade brasileira. In: HELLER, Leo; AGUIAR, M. M. de; REZENDE, Sonaly C. (Orgs.). Participação e controle social em saneamento básico: conceitos, potencialidades e limites. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2016, p. 134-160.

CASTRO, Jose´Esteban. A dimensão teórica da participação e do controle social. In: HELLER, Leo; AGUIAR, M. M. de; REZENDE, Sonaly C. (Orgs.). Participação e controle social em saneamento básico: conceitos, potencialidades e limites. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2016, p. 30-49.

CORDIOLI, SÉRGIO. Enfoque participativo: um processo de mudança. Conceitos, instrumentos e aplicação prática. Porto Alegre: Genesis, 2001.

CUNHA, Fabio Simão. I Conferência nacional sobre transparência e controle social: limites e potencialidades na utilização de um desenho institucional participativo. Dissertação (Mestrado) ‒. Viçosa-MG, 2016.

DUAILIBI, Miriam; PERKINS, Ellie; MASSAMBANI, Oswaldo. Manual de metodologias participativas para o desenvolvimento comunitário. Projeto Bacias Irmãs. York University. Instituto ECOAR para a cidadania. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

FREIRE, P. Extensão ou Comunicação. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

GOMES, Marcos Affonso Ortiz; SOARES, Neluce; BRONZATTO, Luiz Augusto. Metodologias Participativas, elaboração e gestão de projetos. SOMA Desenvolvimento e meio ambiente. World Wildlife. Fund. Brasília, 2015.

KUMMER, LYDIA. Metodologia participativa no meio rural: uma visão interdisciplinar. conceitos, ferramentas e vivências. Projeto Prorenda Desenvolvimento Local Sustentável - Bahia. Agência Alemã de Cooperação Técnica. Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola.  Salvador, 2007.

MARTINEZ-ALIER, Joan. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. Tradução de Mauricio Waldman. Contexto, 379p. São Paulo, 2007.

MILANI, Carlos R. S. O princípio da participação social na gestão de políticas públicas locais: uma análise de experiências latino-americanas e europeias. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, n. 42, v. 3, p. 551-579, maio/jun. 2008.

PASSOS, Celia. Construção de Consenso e Participação Social: um caminho para a Cidadania Plena. Revista Controle, v. IX, n. 1, p. 155-169, jan./jun. 2011.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. O difícil espelho: a originalidade teórico política do movimento dos seringueiros e a confluência perversa no campo ambiental no Acre. In: Carlos Walter Porto-Gonçalves; Luis Daniel Hocsman (Org.). Despojos y resistencias en América Latina. Estudios Sociológicos Editora, v. 1, p. 107-140. Buenos Aires, 2016.

SOUZA, Clóvis Henrique Leite de. A que vieram as conferências nacionais? Uma análise dos objetivos dos processos realizados entre 2003 e 2010. Texto para Discussão 1718. Brasília: Ipea, 2012.

Marcado pela repercussão da Primavera Silenciosa, publicado em 1962, e do Limites do crescimento, publicado em 1972 na ocasião do Clube de Roma.

Para saber mais sobre esse processo de formação histórico: file:///C:/Users/sacho/Downloads/20041-63851-1-PB.pdf

Você pode ler um pouco mais sobre isto no verbete: Participação Social, organizado por Eduardo Navarro Stotz, apresentado no Dicionário de Educação Profissional em Saúde da Fiocruz. Disponível em: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/parsoc.html.

Entre 2003 e 2010 foram realizadas 74 conferências nacionais (SOUZA, 2012).

Os documentos sobre as Conferências de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário estão disponíveis em: http://www.ipea.gov.br/participacao/conferencias-2/563-1-conferencia-nacional-de-desenvolvimento-rural-sustentavel-e-solidario