Capítulo 4: Sistemas agroalimentares tradicionais: alguns conceitos

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SOBRE A AUTORA

Katia Karam Toralles possui bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (1988), especialização em comunicação pela Universidade de Brasília (1994), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (2017). Atuou como profissional na área de Sociologia Rural, trabalhando principalmente com desenvolvimento sustentável, educação para saúde, agricultura orgânica, antropologia da alimentação e economia solidária (1993-2009). Trabalhou como docente na Universidade Estadual de Goiás (2009-2016). Atua como pesquisadora da UFG, na área de Antropologia da Alimentação.

O tema deste capítulo requer que falemos sobre produção e consumo de alimentos e formas tradicionais de uso comum dos recursos naturais. Nele veremos, com base na antropologia da alimentação e alguns conceitos por ela utilizados, o que são sistemas agroalimentares tradicionais. Falaremos das formas de produção de alimentos popularizadas pela tradição e analisaremos as mudanças que eles têm vivenciado.

Comer é tão trivial que não percebemos quão rico é este ato e que há tanta coisa por trás dele. Para que ele aconteça, várias pessoas, saberes e tecnologias foram necessários. Quem cultiva? Como cultiva? Que relações sociais se dão na produção de alimentos?

Tampouco costumamos refletir sobre como nos alimentamos. Questões sobre nosso comportamento como consumidores de alimentos não são tão usuais no nosso cotidiano. No entanto, veremos como temos um papel importante dentro dos sistemas agroalimentares.

Sistemas agroalimentares

Ao longo da sua existência, a humanidade, para suprir suas necessidades alimentares, de medicamentos, de moradia e energéticas, produziu padrões de produção e consumo, assim como de convivência humana e com os demais seres vivos A este conjunto de elementos, que define a existência humana, a antropologia dá o nome de cultura. Este é um conceito bastante importante para esta disciplina, norteando todo seu embasamento teórico metodológico. Sobre ele você terá maiores referências no módulo Antropologia, Alimentação e Saúde.

Esta trajetória começa com o surgimento da agricultura, que produziu impactos de uma revolução social e cultural sobre a humanidade, pois, segundo Juliana Santilli (2009), ela contribuiu para um aumento de dez vezes da população humana (que passou de 5 para 50 milhões de pessoas no período de dez mil a cinco anos atrás), já que permitia alimentar um número maior de pessoas do que a caça e a coleta.

A agricultura evoluiu ao longo de séculos e passou por transformações sucessivas, associadas a mudanças ambientais, sociais, econômicas e culturais, que afetaram as sociedades humanas em tempos e lugares distintos, configurando diversos sistemas agroalimentares.

Diferentes formas de convivência com a natureza, de manejo da terra, de cultivo e obtenção dos recursos naturais moldam sistemas agroalimentares tradicionais ao redor do mundo desenvolvidos por atores diversos: agricultores familiares, extrativistas, ribeirinhos etc.

São formas desenvolvidas pela espécie humana para obtenção de seus alimentos, mas que dizem respeito não só a comida. Comer é um ato social condicionado culturalmente que envolve hábitos, costumes e referências simbólicas. Enquanto o alimento é universal, pois todos os seres vivos usam seus sentidos para alimentar-se, os processos de busca, seleção, preparo, consumo e descarte realizados pelo homem transformando o alimento em comida, todas estas ações são desenvolvidas seguindo especificidades culturais. Neste sentido a comida é entendida como prática de alimentação, dado que envolve particularidades, escolhas, vivências de sistemas alimentares diversos as quais são atribuídos múltiplos significados, dependendo do grupo ou sociedade que a pratique. (FISCHLER, 1995)

Anthony Giddens (2003) diz que tradição e costume foram a essência da vida da maioria das pessoas durante a maior parte da história humana. No entanto, ele argumenta que nenhuma sociedade é inteiramente tradicional, e, afirma contundentemente, “todas as tradições são inventadas”. Para este autor, tradições e costumes, embora sejam associados a um passado longínquo ou difícil de precisar origem, são sempre inventados.

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Sistemas agroalimentares tradicionais são, pois, formas antigas de manejo da terra e convivência com os recursos naturais que são a base de formas produtivas e de organização vividas por muitas pessoas no mundo todo, no campo e nas cidades.Veremos nos vídeos de apoio como os quintais domésticos são umas das formas mais antigas de manejo da terra que, quase sempre, expressam conhecimentos tradicionais de pessoas que migram do meio rural para as cidades, levando consigo um aprendizado que começou ainda na infância revelando a importância destes sistemas para a sustentabilidade da unidade doméstica.

Eles envolvem padrões de convivência humana e modelos de produção e consumo que têm sido fortemente abalados pelo movimento de globalização da economia.

Produção e consumo de alimentos na atualidade

Hoje há uma tendência a homogeneização das práticas produtivas e uma extrema artificialização dos ecossistemas agrícolas, configurando também um empobrecimento dos padrões alimentares e perda da agrobiodiversidade, processos geridos por uma macroengrenagem político-econômica, como salientam Triches e Schneider (2015):

Não há como negar que com o advento do capitalismo e da transformação dos alimentos em mercadorias, o ato corriqueiro e vital de alimentar-se se converteu em uma questão política e econômica nem sempre ética e equitativa (TRICHES; SCHNEIDER, 2015, p. 58).

Segundo Paula Almeida (2004), “estima-se que ao longo do século XX cerca de três quartos da diversidade genética dos cultivos agrícolas foram extinto. De 6.300 raças animais, 1.350 estão sob risco de extinção ou quase extintas”. A modernização da agricultura, as mudanças nos padrões de alimentação e o crescimento da população são apontados pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) como as causas desta conjuntura.

Vandana Shiva (2013) destaca que há duas causas principais para a destruição em larga escala da biodiversidade, a construção de grandes projetos como represas e rodovias, financiados com capital internacional e a tendência tecnológica e econômica de substituição dos policultivos pela monocultura.

Tanto a diversidade de modos de produção de alimentos, em especial aqueles desenvolvidos por populações tradicionais, estão sendo atingidos por esta grande engrenagem, quanto os hábitos alimentares da grande maioria da população mundial.

Além da perda da diversidade, que sempre foi uma característica dos diversos modelos agrícolas existentes no mundo desde as origens da agricultura, esta hegemonia do sistema agroalimentar global tem produzido o distanciamento entre quem produz e quem consome com drásticas consequências para ambos. Nossa alimentação é cada vez mais pobre, no entanto, poucas pessoas se dão conta das conexões entre os modelos agrícolas hegemônicos e o padrão alimentar que nos é imposto e de suas consequências socioambientais:

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Cultura, Alimentação e biodiversidade

Se por um lado a globalização provocou uma homogeneização dos alimentos em função da prevalência de modelos de produção e consumo baseados em valores como produtividade e eficiência, por outro, este mesmo movimento de expansão de padrões cria condições para o surgimento de arranjos que reorganizam elementos da tradição num diálogo com uma nova ordem e demanda.

Muitos autores têm destacado a relação entre a globalização e a homogeneização de alimentos com a valorização de alimentos tradicionais e locais, mostrando como estes dois movimentos podem estar mesclados. Podemos entender isto ao vermos em vários lugares do país um crescimento de empreendimentos de revalorização do “local”: restaurantes de comidas típicas, produtos artesanais transformados em souvenirs, modos de fazer tradicionais sendo tema de cursos em festivais de gastronomia etc.

Os prejuízos socioambientais da industrialização e massificação do consumo listados acima têm também servido como motivação para o surgimento de muitos movimentos que propõe alternativas aos modelos de produção e consumo vigentes, como os relacionados ao bem-estar animal, ao comércio justo (fair trade), movimento Slow Food, circuitos curtos de comercialização, entre outros.

Diversas experiências bem-sucedidas de manejo e conservação da biodiversidade desenvolvidas por populações tradicionais mostram como as graves questões da fome, da pobreza e da desnutrição podem ser solucionadas com recursos simples. Conhecer estas experiências, resgatá-las e valorizá-las tem sido o papel de muitas organizações a de algumas instituições e governos.

Do mesmo modo, o consumo tem sido visto como um elemento que pode extrapolar a massificação para ser vetor na transformação de práticas e políticas, onde as pessoas começam a perceber que, modificando-o, podem provocar mudanças tanto individuais como estruturais. O aumento das redes de consumidores tem ilustrado isto.

Por serem expoentes da preservação da biodiversidade, os sistemas agroalimentares tradicionais apresentam-se como contraponto importante nesta virada, mas também porque carregam consigo formas de sociabilidade que representam valores que rebatem a lógica do sistema capitalista vigente.

Ao tratar de Sistemas Agroalimentares Tradicionais, destacamos a dimensão cultural e social da biodiversidade, pois estes sistemas representam o trabalho e o conhecimento de grupos sociais sobre a diversidade natural. A perda da biodiversidade dos sistemas agroalimentares, portanto, ultrapassa a conservação dos recursos fitogenéticos. Ela “deve ser tratada em termos de uma reflexão sobre o futuro de um patrimônio cujo suporte é biológico, mas cuja existência é resultado de uma construção humana” (EMPERAIRE, 2005).

Mostraremos nos vídeos de apoio experiências que revelam um rico e vasto patrimônio de conhecimentos e produtos tão presentes no nosso cotidiano alimentar, variedades agrícolas, receitas, preparos, modos de fazer arraigados na nossa cultura.

Veremos como estes sistemas têm vivido transformações, as dificuldades que enfrentam para sobreviver na modernidade e como eles se recompõem preservando não só a diversidade agrícola, mas uma riqueza de saberes e sabores que são fortes referências culturais para nossa sociedade.

Estas experiências revelam arranjos produtivos únicos e mostram a criatividade e resiliência de grupos sociais na preservação de Sistemas Agroalimentares Tradicionais.

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Acima de tudo precisamos destacar a importância destes sistemas para segurança alimentar e nutricional tanto para as comunidades que deles fazem parte como para a sociedade brasileira como um todo, dado que cerca de 70% dos alimentos que consumimos são produzidos por agricultores familiares e extrativistas em sistemas agroflorestais. Eles são responsáveis por 82,8% mandioca, 59% suínos, 58,9% feijão, 55,4% leite, 47,9% aves, 43,1% milho, 41,3% arroz que chegam na mesa da população brasileira.

As experiências mostradas retratam também o sério trabalho desenvolvido por organizações da sociedade civil em apoio às comunidades tradicionais e em defesa do meio ambiente. Estas instituições entendem que os conhecimentos, inovações, práticas de manejo e técnicas agrícolas desenvolvidos por estas comunidades são um componente-chave da agrobiodiversidade, e foram responsáveis pela enorme diversidade de plantas cultivadas e dos agroecossistemas por elas desenvolvidos.

É esta diversidade que permite que as espécies, variedades e agroecossistemas se adaptem às mudanças ambientais, sendo, neste sentido, elementos importantes para defesa da vida, em especial se considerarmos os problemas ambientais que temos observado no mundo inteiro em decorrência dos padrões de produção e consumo adotados por grande parte da população mundo afora.

A série Cerratinga listada no nosso material de apoio retrata a produção comunitária a partir de produtos da Sociobiodiversidade. Desde a coleta ao processamento, extrativistas contam sua relação com os frutos e com o bioma onde vivem.

A série Começo de Prosa traz depoimentos de agricultores e agricultoras familiares, povos e comunidades tradicionais e parceiros contando suas experiências, vivências e histórias.

Vocês também encontrarão no nosso material receitas que podem ser desenvolvidas com produtos da biodiversidade cultivada por comunidades tradicionais.

Esperamos com este material ajudá-los a compreender a importância dos Sistemas Agroalimentares Tradicionais e a encontrar formas de apoiá-los.

Referências

ALMEIDA, Paula. Revalorizando a Agrobiodiversidade. Revista Agriculturas, v.1, n.1. 2004.

FISCHLER C. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Anagrama; 1995. 421 p.

GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

SANTILLI, J.Agrobiodiversidade e Direitos dos Agricultores. São Paulo: Peirópolis, 2009.

SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução Daniela de Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia, 2013.

TRICHES, R.; SCHNEIDER, S. Alimentação, sistema agroalimentar e os consumidores: novas conexões para o desenvolvimento rural. Cuadernos de Desarrollo Rural, p. 55-75, 2015.

EMPERAIRE, L. A Biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira: recurso e patrimônio. Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 32: 31-43. 2005.