Capítulo 3: Antropologia, Alimentação e Saúde

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SOBRE A AUTORA

Carolina Cadima Fernandes Nazareth é Cientista Social pela UFU, mestre e doutoranda em Antropologia Social pela UFG. Foi professora substituta de Antropologia pela mesma instituição. Atualmente trabalha como professora conteudista e tutora em EAD pela FATRA. Faz parte do Grupo de Estudos de Cultura, Consumo e Alimentação, coordenado pela professora dra. Janine Collaço. Durante sua formação caminhou por diversas temáticas como Antropologia rural e urbana, alimentação e saúde. Atualmente, sua pesquisa abrange as narrativas de saúde e alimentação saudável pelos consumidores das feiras de Goiânia.

Antropologia

Antes de começarmos o nosso módulo, vamos relembrar de maneira breve o que é Antropologia e qual a sua importância para pensar alimentação.

A Antropologia vai se focar no estudo de grupos humanos, como cultura, sociedade, movimentos sociais, entre outros. Para isso, esta ciência se foca em alguns fenômenos e instituições presentes em todos e qualquer tipo de agrupamento de seres humanos, como: alimentação, religiosidade, organização social, família, governo, crenças, rituais, vestimentas, linguagens, entre outros.

Além disso, os antropólogos também estudam o contato entre esses diferentes grupos ou culturas, contatos esses que se davam e se dão através da dominação (colonização), turismo, missões, diásporas, movimentos de refugiados, migração e imigração e, também, através dos novos meios de comunicação, com a ascensão da globalização e, com isso, a redução das noções espaço-temporais entre culturas e povos diferentes.

Muitas dessas questões serão discutidas no decorrer deste módulo, demonstrando a potência da alimentação para pensarmos a cultura e as relações humanas.

Alimentação e Cultura

Observe a imagem a seguir:

Figura 4. Prato Feito. Fotografia de Lucia H. Clark, Agosto de 2012.

Olhando para essa imagem, o que lhe vem à mente? Esta imagem, de alguma forma, lhe conta uma história, lhe é familiar? Você reconhece os elementos colocados dentro do prato? Você consegue deduzir o nome ou a origem do prato retratado?

Se você sentiu fome ou reconheceu o alimento do prato em questão, provavelmente você é brasileiro (a) ou gosta do que chamamos de “comida brasileira”. Mas o que isso significa?

Esta foto retrata o famoso PF (Prato Feito), muito conhecido nas cidades do Brasil. Esse prato traz elementos básicos do que, culturalmente, estamos adaptados a comer, como o arroz e feijão, os elementos básicos da alimentação brasileira, pelo menos em sua grande maioria.

E, o que parece tão familiar para nós, como um PF, soa tão familiar para peruanos, argentinos, canadenses ou russos? Será que comida é tudo igual? Será que os gostos e o que comemos são escolhas inteiramente nossas?

Essas e outras questões serão tratadas nos próximos tópicos.

Alimentação e Cultura

Figura 5. Pizza.
Fotografia de Brett Jordan. Disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/alimento-almoco-borda-calabresa-825661/

Segundo o antropólogo Mintz (2001), poucos elementos da vida humana geram mais debates e curiosidade do que a alimentação. Se de um lado, a comida é elemento de fascínio e desejo, por outro, muitas vezes é elemento de estranheza e distanciamento.

Partindo disso, você já pensou sobre a sua alimentação? Sobre o que você deve ou não deve comer? Sobre o que você gosta e/ou não gosta? Já pensou com quem e quando você come? Já refletiu sobre o que é comida?

Para responder tais questões, este módulo visa discutir como a alimentação é dotada de significado pelos seres humanos, ou seja, dotamos nossos hábitos alimentares de sentido cultural, simbólico e afetivo, criando uma relação com o alimento para além de suas funções nutricionais. Pensando nisso, não estamos negando a importância nutricional do alimento, mas pensando em seus símbolos culturais e de identidade.

Alimentação é tão simples quanto parece?

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Embora todos os seres humanos necessitem de alimentação, isso não significa que ela é a mesma para todos, ou seja, cada grupo, família, cultura, religião, etc. cria regras e sentidos para a alimentação.

Além disso, o comer também varia de acordo com o tempo histórico e as mudanças sociais que presenciamos. Por exemplo, atualmente, não nos alimentamos da mesma forma que nossos avós, e isso tem diversos motivos, como por exemplo: o acesso à comida, o tempo de preparo, a ideia de saudável, entre outros. Então, a experiência alimentar que temos hoje se diferencia de alguma maneira das experiências de outros tempos.

Levando em conta um dos exemplos citados acima, como o acesso à comida, podemos perceber o quanto a globalização e os meios de comunicação influenciaram as nossas formas de ver e reconhecer o alimento. Por um lado, essa globalização permitiu que conhecêssemos alimentos que outrora nem sabíamos que existiam; tais elementos foram introduzidos no nosso círculo alimentar ao ponto de “naturalizarmos” a presença deles, como a comida japonesa, por exemplo.

Como efeito da globalização temos também os aplicativos de entrega e os programas de TV nos permitiram “chegar mais perto” da cultura do outro através do alimento e ter acesso a alimentos de classes sociais muito distintas.

Fora isso, a popularização de grandes redes de fast-foods criou um acesso a alimentos ultraprocessados cada vez mais baratos – essa realidade ainda não é totalizante no Brasil – que proporcionou novas perspectivas de alimento.

Todo esse processo, por um lado pareceu permitir o acesso mais democrático ao alimento, por outro, distanciou muitos consumidores do alimento in natura, seja pelo crescimento exacerbado das cidades, pela diminuição de quintais, pela falta de tempo em lidar com a terra e com o seu preparo integral.

A nutrição e a antropologia

Embora a nutrição seja uma ciência médica, não podemos esquecer que os profissionais desta área trabalham com seres humanos e questões profundamente afetivas. Atualmente, fala-se muito de distúrbios alimentares e a relação que muitas pessoas desenvolvem com a comida, o que reflete no peso, nas relações sociais e, principalmente, na saúde mental do indivíduo.

No entanto, não é possível pensar a nutrição sem adentrarmos nas questões culturais que influenciam os hábitos alimentares e nas formas de enxergar o próprio corpo. Nesse sentido, por mais que o alimento possa ser observado de maneira objetiva pelo nutricionista, não é esse o olhar que prevalece sobre a maioria dos comensais.

Segundo alguns autores, como Garcia (2005), fora situações controladas (dietas “zero”, parenterais, enterais, etc.) qualquer prescrição alimentar será reinterpretada e reintegrada nas práticas alimentares inseridas em uma determinada cultura e, portanto, será ressignificada para partilhar de um sistema de valores e organização alimentar.

Do mesmo modo, quando se tenta impor a adoção de um outro modelo de dieta (diferente do que se entende pelo patrimônio cultural do sujeito) ou mesmo recomendações pontuais de inclusão e exclusão de alimentos, negligencia-se a cultura alimentar receptora por não se levar em conta o impacto e a forma que essas mudanças serão absorvidas por essa estrutura culinária.

Isso significa que, embora a nutrição seja uma ciência médica bastante eficaz, ela está à mercê das escolhas culturais e individuais dos sujeitos, ou seja, a agência dos comensais.

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Alimentação e a identidade

Para Mintz (2001), além dos símbolos que abrangem a alimentação como uma construção cultural, a comida é um dos poucos aspectos culturais em que o indivíduo tem uma margem de escolha e de liberdade, criando uma certa identidade.

Segundo Roberto DaMatta,

Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como também aquele que o ingere (DAMATTA, 1987, p. 56).

Nesse sentido, a alimentação cria identidade, cria um sujeito e, consequentemente, cria sociabilidade. Se levarmos em conta esses aspectos, é possível compreendermos melhor as redes de relações que os alimentos são capazes de estabelecer.

Seja através da reafirmação de laços e acordos como os almoços em família, reuniões de trabalho, ou, ainda, criando grupos de interesses afins, como comunidades vegetarianas/veganas, movimentos como o Slow Food, ou, até mesmo, grupos “Pró-Ana” (pessoas que simpatizam com distúrbios alimentares como a anorexia), entre outros.

Tais formas de sociabilidade têm como ponto focal a comida, seja pelas escolhas em relação a ela, seja pelos modos de preparo ou pela sua repulsa. Assim, percebemos que, no que diz respeito à alimentação, a identidade está sempre marcada.

Isso demonstra que, em muitas situações, o alimento não tem o sentido estrito de “matar a fome” ou “nutrir o corpo”, mas nutrir laços, relações e trazer uma certa proximidade.

Antropologia, comida e afeto

Figura 6. Café à mesa.
Fotografia de Iamngakan eka. Disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/pao-comida-alimento-refeicao-3575143/

Como vimos no tópico anterior, a comida é utilizada para estabelecer relações, seja através de interesses afins ou da criação de proximidades, como as reuniões de família.

É comum que, em encontros, sejam eles amorosos, familiares ou de negócios, a comida esteja colocada como um intermédio das relações. É comum chamarmos alguém para jantar ou para um café, não tendo como objetivo principal a refeição em si, mas a relação que será estabelecida ali.

Logo, como discutimos nos tópicos anteriores, a relação funcional do comensal em relação à comida é deixada em segundo plano, já que a escolha do indivíduo e o que aquela refeição representa acaba tomando um espaço maior do que a própria função essencial do alimento.

Logo, podemos pensar que a comida tem um certo “poder” de criar laços e afetos, e exercer forte influência sobre a nossa memória e nossas escolhas alimentares. Essa influência está envolvida no que chamamos de “comida afetiva”, ou “Comfort Food”, alimentos que exercem poder simbólico e afetivo capazes de criar vínculos e lembranças aos comensais, como a “comida de vó”, “comida de mãe”, alimentos que oferecem um certo “aconchego”.

Aqui, percebemos mais uma vez, que o alimento, quando culturalmente pensado, perde, em muito, sua potência nutricional dentro das relações sociais, dando margem para outros sentidos.

Antropologia, alimentação e saúde

Figura 7.
Fotografia de Burst. Disponível em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/alimento-bacia-bebida-bowl-373941/

Mas se, aparentemente, tudo na alimentação é social, não existe na Antropologia uma relação estabelecida entre alimentação e saúde? Existe!

Na antropologia é comum pensarmos através de sistemas e saberes médicos, ou seja, as noções e conhecimentos de cura, saúde, doença e tratamento estão presentes em todas as culturas, mas não são universais, ou seja, os conhecimentos médico-científicos não são os únicos a serem considerados, pois, se pensarmos nas nossas próprias crenças e conhecimentos, eles estão tomados por saberes ancestrais, familiares, populares que, muitas vezes não dizem respeito diretamente aos saberes médicos estabelecidos.

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No contexto alimentar não é diferente, somos constantemente bombardeados por informações relacionadas à saúde e à alimentação, seja através dos meios de comunicação, dos saberes dos nossos familiares e pelos próprios nutricionistas.

Então, o que estabelece um comer saudável? Não existe uma resposta certeira para essa questão, já que para alguns, a privação de determinados alimentos e/ou ingredientes, como o trigo, o leite e o açúcar é a receita para a saúde alimentar. Para outros, estabelecer uma relação flexível para com os alimentos é o que indica saúde.

Nesse sentido, a nutrição e a antropologia são fortes aliadas para pensar as representações de saúde, sejam elas biomédicas ou ligadas – por falta de uma expressão melhor – ao senso comum.

O cruzamento entre tais saberes é fundamental para compreender como se comportam os comensais quando o assunto é a alimentação e à saúde.

Além disso, questões como o acesso e a escolha por determinados tipos de alimentos pode ser esclarecida através de estudos etnográficos, levando em conta questões sociais, educacionais, de gênero e faixa etária.

Nesse movimento, a nutrição e a antropologia são fortes aliadas para pensar em estratégias de manutenção e estabelecimentos de hábitos saudáveis, ultrapassando o muro estabelecido entre os saberes técnico-científicos e a população como um todo.

No artigo “Comida como cultura e autocuidado: consumo alimentar e noções de comer saudável entre mulheres frequentadoras das feiras de Goiânia, Goiás (BR) ” (NAZARETH; COLLAÇO; BARBOSA, 2018), os autores discutem como o meio cultural é capaz de criar novas interpretações sobre os usos das noções de saúde e autocuidado pelos comensais em feiras urbanas. Manipulando algumas categorias como saúde, alimentação e higiene segundo as situações em que se inserem e segundo seus próprios interesses.

Isso significa que, embora a nutrição busque discussões biomédicas vinculadas à saúde, esses conhecimentos são constantemente manipulados pelos comensais, cabendo ao nutricionista a compreensão de que, em um meio não controlado, a cultura, por vezes, exerce mais poder do que os próprios conhecimentos científicos, balizando escolhas e comportamentos.

Referências

DaMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

GARCIA, Rosa Wanda Diez. A Antropologia Aplicada às Diferentes Áreas da Nutrição. In. CANESQUI. A.M & GARCIA, R.W.D. Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ, 2005.

LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

MINTZ, Sidney. Comida e antropologia: uma breve revisão. In: RBCS, v. 16, n. 47, 2001.

NAZARETH, C. C. F.; BARBOSA, F. A. C.; COLLAÇO, J. H. L. Saúde e consumo alimentar nas feiras de Goiânia: comida como cultura e autocuidado. In: COLLAÇO, Janine H.L.; BARBOSA, Filipe Augusto Couto Barbosa; ROIM, Talita Prado Barbosa. (Org.). Cidades e consumo alimentar comida, cultura e saúde. 1ª ed..Goiânia: UFG, 2018, v. 4, p. 8-26.