Capítulo 2: Introdução ao conceito de Direito Humano à Alimentação Adequada

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SOBRE A AUTORA

Lizia de Oliveira Carvalho possui graduação em Letras Português/ Inglês pela Universidade Estadual de Goiás (2007) e cursa bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Goiás. É mestra pelo Programa Interdisciplinar em Direitos Humanos (2018) e doutoranda pelo mesmo programa. Atualmente, é bolsista no Centro de Ciência e Tecnologia em Soberania e Segurança Alimentar da Região Centro-Oeste (UFG). Também integra a Redessan. Atua principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, feminismo decolonial, soberania e segurança alimentar, feminismo indígena, etnolinguística.

Para começarmos esta discussão, é essencial entendermos o que significa direitos humanos. Segundo Dallari (1996), os direitos humanos são

uma forma sintética de nos referirmos a direitos fundamentais da pessoa humana, aqueles que são essenciais à pessoa humana e que precisa ser respeitada como pessoa. São aqueles necessários para a satisfação das necessidades humanas fundamentais. Respirar é uma necessidade básica, portanto a pessoa tem direito a um ar puro e não ar poluído que pode ser o caminho da morte.

Desta forma, podemos compreender que comer é essencial ao ser humano e, assim, um direito humano. Aqui, iremos conhecer um pouco do percurso da conquista deste direito em organismos internacionais, especialmente ligados aos movimentos sociais.

O direito humano à alimentação e nutrição adequada (DHANA) está previsto em diversos documentos internacionais. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), este direito é registrado no Artigo 25.

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (grifo nosso).

O direito à alimentação também está previsto no artigo 12 do Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (“Protocolo de San Salvador”).

Já a expressão “direito humano à alimentação adequada” (DHAA) aparece pela primeira vez no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), que entra em vigor em 3 de janeiro de 1976. A inclusão da nutrição ao conceito de Dhana evidencia que a alimentação deve promover saúde adequada num cenário em que a má alimentação é causa de grandes desafios, desde a desnutrição (crônica e aguda), passando pela deficiência de nutrientes, até o excesso de peso (sobrepeso e obesidade) e as doenças crônicas.

Em 2002, o Conselho da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) instituiu um grupo de trabalho intergovernamental para elaborar um conjunto de diretrizes voluntárias sobre a realização progressiva do direito à alimentação no contexto da segurança alimentar e nutricional. As diretrizes foram aprovadas em novembro de 2004 pelos 151 países que compõem o Conselho da FAO. A partir daí, o direito humano à alimentação adequada foi substancialmente discutido entre governos e em detalhes no âmbito de um órgão da FAO. Nesta ocasião, os Estados chegaram a um acordo sobre o significado do direito humano à alimentação adequada.

Segundo estas diretrizes, só há segurança alimentar quando todos têm, a qualquer momento, acesso econômico e físico universal a uma quantidade bastante de alimentos livres de substâncias nocivas e nutritivos para suprir todas suas necessidades alimentares e aceitáveis no contexto de uma determinada cultura, com o intuito de ter uma vida saudável. Os Estados devem cumprir com uma realização progressiva suas obrigações em relação a este direito humano, em virtude do direito internacional. (FAO, 2015).

Segundo o Comentário Geral 12 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas de 1999, a definição para direito humano à alimentação adequada seria

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O direito à alimentação adequada se realiza quando todo homem, mulher e criança, sozinho ou em comunidade com outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, a uma alimentação adequada ou aos meios necessários para sua obtenção.

O Comitê aponta os seguintes elementos do DHAA: a disponibilidade e a acessibilidade física e econômica a alimentos adequados e saudáveis, de forma estável e permanente (ONU, 1999). Mais tarde, o ex-relator especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação Olivier De Schutter aprofundou e deixou explícita a sustentabilidade como elemento fundamental para a garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas, que prioriza um sistema de produção e consumo de alimentos que não ameacem e violam outros direitos como saúde, água e meio ambiente (DE SCHUTTER, 2014). Ao enfatizar métodos ecologicamente sustentáveis, controle sobre os recursos naturais e sistemas locais pelos povos como formas de promover uma alimentação diversa, ocupa-se não só em garantir o Dhana, como com uma vida digna às próximas gerações (SANTARELLI; BURITI, 2019).

Mesmo que este modelo se proponha a produzir mais alimentos, é necessário pensarmos um modelo sustentável de produção e consumo de alimentos, por sua vez, implica alargar a perspectiva sobre o que define o modelo predominante, quais elementos políticos, econômicos, culturais, ambientais sustentam o sistema ou processo alimentar que, ao final, define a realização ou não do Dhana – e mais, quais grupos populacionais são mais atingidos por esse sistema e por quê.

O conceito de soberania alimentar tem relação direta com autonomia e condições de vida de quem os produz. Liga-se ao direito dos povos de decidir sobre quais alimentos produzir e consumir, e como. Esse conceito é também relevante no que diz respeito à soberania das nações e sua autossuficiência com relação aos alimentos para consumo interno. Remete, ainda, à preservação de sementes crioulas e da biodiversidade agrícola, além da valorização de cultura e hábitos alimentares de diversas populações (LEÃO, 2013).

O conceito de soberania alimentar construído coletivamente em 2007, durante o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar é:

Soberania alimentar é um direito dos povos a alimentos saudáveis e culturalmente adequados, produzidos por métodos ecologicamente seguros e sustentáveis, e abrange o direito dos povos a decidir sobre os próprios sistemas alimentares e agrícolas. Ela coloca as aspirações e necessidades daqueles e daquelas que produzem, distribuem e consomem alimentos no coração de políticas e sistemas de alimentos, em vez das demandas de mercados e corporações. Ela defende os interesses e a inclusão da próxima geração. A soberania alimentar oferece uma estratégia para resistir a e desmantelar o atual regime corporativo de comércio e alimentos, e aponta para sistemas alimentares, agrícolas, pesqueiros e pastorais determinados por produtores e usuários locais. Ela prioriza as economias e mercados lo- cais e nacionais e empodera camponeses e a agricultura familiar, a pesca artesanal, o pastoreio tradicional e a produção, distribuição e consumo de alimentos baseados na sustentabilidade ambiental, social e econômica. A soberania alimentar promove o comércio transparente que garante rendas justas para todas as pessoas, assim como os direitos de consumidores de controlar sua alimentação e nutrição. Ela assegura que os direitos ao uso e manejo da terra, territórios, águas, sementes, animais de criação e da biodiversidade estejam nas mãos daqueles e daquelas de nós que produzem alimentos. A soberania alimentar implica em novas relações sociais livres da opressão e da desigualdade entre mulheres e homens, povos, grupos sociais, classes sociais e econômicas e gerações.

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Ao colocar as pessoas que produzem e consomem os alimentos no centro das decisões sobre o sistema alimentar, a soberania alimentar demarca que o poder deve ser do povo para que este sistema alimente vida, saúde, cultura e formas de viver e se alimentar compatíveis com a realização do Dhana e com vida a digna no planeta Terra (SANTARELLI; BURITI, 2019).

Referências

ONU. Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 10 dez. 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/ UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por Acesso em: 16 set. 2019.

Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc).

BURITI, Mariana; SANTARELLI, Valéria. Informe DHANA 2019: Autoritarismo, Negação de Direitos e Fome. Brasília: FIAN Brasil, 2019.

DALLARI, Dalmo. Direitos Humanos: Histórico, Conceito e Classificação. In: Acesso ao Tema da Cidadania. São Paulo: Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania/Comissão Justiça e Paz de São Paulo, 1996.

DE SCHUTTER, O. Relatório do Relator Especial sobre o direito à alimentação, Olivier De Schutter – missão ao Brasil (12 a 18 de outubro de 2009). 5 mar. 2010. Disponível em: http://www.oda-alc.org/documentos/1341790013.pdf. Acesso em: 1 fev. 2019.

FAO. Diretrizes Voluntárias sobre a realização progressiva do direito à alimentação. Roma: FAO, 2015. Disponível em: https://fianbrasil.org.br/wp-content/ uploads/2016/12/Diretrizes-Volunt%C3%A1rias.pdf. Acesso em: 1 out. 2019.

LEÃO, M. (org.). O direito humano à alimentação adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília: ABRANDH, 2013.