Capítulo 1: Segurança Alimentar e Nutricional
01SOBRE A AUTORA
Larissa de Farias Alves é graduada em nutrição, possui Especialização em Nutrição Clínica e Personal Diet, e Mestrado em Antropologia Social. É docente e pesquisadora das áreas de Ética e Formação Profissional do Nutricionista, Nutrição Materno Infantil, Educação Alimentar e Nutricional, Nutrição e Saúde Pública, Antropologia da Alimentação. Atualmente é coordenadora do curso de Nutrição da Faculdade União de Goyazes, em Trindade (GO).
A trajetória da ideia de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN)
Historicamente, o conceito de “Segurança Alimentar” foi utilizado inicialmente após a Primeira Guerra Mundial para se referir a uma estratégia de guerra. Com a devastação da guerra, ficou claro que um país poderia ter controle sobre o outro apenas dominando o seu fornecimento de alimentos. Assim, passando a fazer parte das questões de segurança nacional em todo o mundo, os países desenvolverem condições próprias de suprimentos alimentares para toda população. Estratégias que iniciam o pensamento de que os países necessitam de soberania alimentar foram criadas, ligada à capacidade de produção de alimentos.
Este pensamento que a segurança alimentar de cada país estava ligada à capacidade de produção do mesmo se manteve até a década de 70. Porém, perceberam que os estoques de alimentos estavam cada vez mais escassos e, a partir daí, começaram a promessa da Revolução Verde, que seria o desenvolvimento de insumos químicos (fertilizantes e agrotóxicos) para garantir uma produção mais eficiente. Porém, apesar da produção mundial de alimentos ter se recuperado, estes alimentos não chegaram para todos, persistem até hoje as consequências da desnutrição e da fome (insegurança alimentar) em grande parte da população mundial.
A construção do conceito atual de SAN
O conceito de SAN utilizado nas políticas e estratégias atuais se constrói, portanto, das experiências de insegurança alimentar e nutricional sofridas durantes os séculos pós-guerra. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) estima que, ainda hoje, mais de 820 milhões de pessoas no mundo passam fome continuamente. Apesar desta ser a manifestação mais cruel de insegurança alimentar, alguns outros pontos também são considerados de risco.
O primeiro ponto se refere à qualidade higiênico-sanitária dos alimentos que chegam à população. Ou seja, além de todos os seres humanos terem acesso contínuo a alimentos, estes devem ser isentos a compostos que podem prejudicar a saúde humana e que tenha boa qualidade nutricional.
Um segundo ponto refere-se aos hábitos e à cultura alimentar. Exige-se que se considere a dimensão do patrimônio cultural que está intrínseco nas preferências alimentares das comunidades locais e nas suas práticas de preparo e consumo.
Outro ponto em questão é a sustentabilidade social dos sistemas alimentares. Os sistemas alimentares são o todo que envolve desde a produção, colheita, estocagem, distribuição, consumo e descarte dos alimentos. A segurança alimentar depende não apenas da existência de um sistema que garanta alimentos em quantidade e qualidade adequadas, mas que também não comprometa a mesma capacidade futura de produção, distribuição e consumo, ou seja, que o sistema consiga se sustentar nas gerações futuras.
Portanto, o conceito atual de segurança alimentar está ligado ao conceito de segurança nutricional, ambiental e cultural. Esta ideia só pode ser implementada com a participação conjunta entre sociedade e governo, através de leis que garantam o direito humano à alimentação adequada (DHAA) e com políticas públicas que coloquem em prática a participação social.
O conceito ampliado de SAN que se desenvolveu a partir de então é composto por vários setores e organizações, sendo um complexo sistema integralizado às práticas culturais e sustentáveis, como visto na figura 1.
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Como o DHAA e SAN foram consolidados no mundo?
Em 1948, foi publicada a Declaração Universal dos Direitos Humanos que, em seu artigo 25°, coloca a alimentação como sendo um direito do ser humano, evidenciando a importância da questão alimentar; sendo um marco histórico que impulsionou a criação de leis e órgãos governamentais posteriormente no mundo, inclusive no Brasil (ONU, 1948).
Já na década de 70, houve uma crise de escassez de alimentos em todo o mundo. Devido a esse período de escassez, em 1974, a FAO organizou a I Conferência Mundial de Segurança Alimentar, ampliando a discussão sobre a necessidade de melhoria na distribuição alimentar, junto ao aprimoramento da produtividade agrícola, colocando em destaque a Segurança Alimentar (MELO, 2017).
No ano de 1992, foi realizada em Roma a Conferência Internacional de Nutrição, organizada pela FAO e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), visando fortalecer o direito à alimentação, vinculado ao direito à vida e à satisfação das necessidades básicas dos indivíduos. Já em 1996, novamente em Roma, a FAO realiza a Cúpula Mundial da Alimentação, com a presença de 180 representantes de países, na qual foi aprovada a Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial e o Plano de Ação. Nesta Declaração, define-se o que poderia ser chamado de primeiro conceito amplo de segurança alimentar: “acesso físico e econômico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, a fim de levarem uma vida ativa e sã” (FAO, 1996).
Em 1999, a ONU implementou o conceito de Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) já respaldada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos desde 1948, onde declara que “o direito à alimentação adequada é indivisivelmente ligado à dignidade inerente à pessoa humana e é indispensável para a realização de outros direitos humanos Consagrados na Carta de Direitos Humanos” (ONU, 1948). Até que, em 2000, realizou-se a Cúpula do Milênio da ONU, na qual ficou acordado entre os 189 Estados – depois passam a ser 192 países - presentes uma redução dos índices de pobreza e fome e a redução das iniquidades sociais no mundo até o ano de 2015. Esta reunião e as discussões sobre os direitos humanos, guerras, degradação ambiental, má distribuição de renda, epidemias, crime organizado e a fome levaram a criação da “Declaração do Milênio”, documento que define os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), quando as Metas de Desenvolvimento do Milênio foram traçadas (VIEIRA e D’ORNELLAS, 2012 in MELO, 2017).
03O reflexo destes direitos no Brasil
No Brasil, a preocupação com a ideia de segurança alimentar estava ligada à preocupação da erradicação da fome, principalmente após 1930, com a criação do Instituto Nacional de Nutrição, com influência do médico Pedro Escudeiro e com o trabalho importante de Josué de Castro, presidindo e fundando a Sociedade Brasileira de Nutrição e com o lançamento do livro “Geografia da Fome”, lançado em 1946.
O combate à fome e programas de abastecimento de alimentos continuou sendo o principal foco de políticas ligadas à SAN no país até a década de 90, através de suplementação para combate às carências nutricionais, incentivo a pequenos produtores, organização e atenção à merenda escolar e atenção ao grupo materno infantil. Em 1992, surgiu a “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, coordenada pelo sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho, sendo a primeira vez em que a sociedade civil participou ativamente nos debates sobre fome e pobreza. Em 1993, foi constituído o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) que buscava implementar políticas e programas enfocando a SAN. EM 1994 foi feita a I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, discutindo a criação de uma política nacional de SAN e a garantia de acesso à alimentação para populações específicas. E em 1999, foi criada a Política Nacional Alimentação e Nutrição - PNAN (MELO, 2017).
Nos anos 2000, como reflexo dos pactos internacionais assinados com os demais países membros da ONU, especificamente em 2003, foi criado no Brasil o programa “Fome Zero”, que depois foi integralizado ao “Programa Bolsa Família” como forma de garantir um dos objetivos do milênio: o extermínio da fome no país.
Em 2006, foi decretado a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) que possibilita o fortalecimento e a criação de novas ações da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNAN) e formula o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), visando garantir o Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA), o acesso a essa alimentação adequada e a SAN (BRASIL, 2010).
A LOSAN, em seu artigo 3°, define o principal conceito Segurança Alimentar e Nutricional utilizado no Brasil, assim sendo:
A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2006).
Apenas em 2010, a Constituição Brasileira sofreu um acréscimo com a Emenda 64 e a alimentação passa a ser um direito constitucional. No Artigo 6º, garante que
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 2010a).
Em resumo, a figura 2 organiza, por décadas, os objetivos que aproximaram o Brasil da garantia de SAN e DHAA.

Ferramentas que auxiliam a SAN no Brasil
As principais ferramentas governamentais para a busca da San no Brasil são:
- O Ministério Público, a Defensoria Pública e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM);
- Objetivos do Milênio ou Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS): pacto firmado entre todos os países membros da ONU para atingir alguns objetivos, entre eles, erradicação da fome e da miséria;
- Lei 11.346/2006 (LOSAN - Lei Orgânica de Segurança Alimentar e nutricional): traz o conceito de atual de Segurança Alimentar e Nutricional e cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN);
- Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: conjunto de ações planejadas para garantir a oferta e o acesso aos alimentos para toda a população, promovendo a nutrição e a saúde;
- Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN): integra dezenas de ações do conjunto destes órgãos voltadas para a produção, o fortalecimento da agricultura familiar, o abastecimento alimentar e a promoção da alimentação saudável e adequada;
- Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN): integra os esforços do Estado Brasileiro que, por meio de um conjunto de políticas públicas, propõe respeitar, proteger, promover e prover os direitos humanos à saúde e à alimentação;
- Programa Nacional de Alimentação do Escolar (PNAE): é o mais antigo programa do governo brasileiro na área de alimentação escolar e de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), sendo considerado um dos maiores e mais abrangentes do mundo no que se refere ao atendimento universal aos escolares e de garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável;
- Programa Bolsa Família: unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações de transferência de renda do Governo Federal, especialmente as do Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação - Bolsa Escola, do Programa Nacional de Acesso à Alimentação - PNAA, do Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde - Bolsa Alimentação, do Programa Auxílio-Gás e do Cadastramento Único do Governo Federal.
Ferramentas de auxílio e controle da sociedade civil em busca da SAN no Brasil:
- Controle da exigibilidade dos direitos através dos Conselhos de Políticas Públicas e Direitos Humanos, Conselho de Merenda Escolar e Conselhos de Saúde;
- Organizações e redes de sociedade civil como, por exemplo, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN);
- Conhecer e se apoderar dos conceitos e princípios dos direitos humanos, com especial ênfase no DHAA;
- Conhecer e fazer com que as comunidades, entidades locais e movimentos sociais conheçam as leis e documentos que podem contribuir com a realização progressiva do DHAA;
- Realizar denúncias de violação do DHAA;
- Utilizar os instrumentos de educação alimentar e nutricional do ministério da saúde como replicadores de informação, como por exemplo o “Guia Alimentar para a População Brasileira” e o “Guia Alimentar para Crianças Menores de 2 anos”.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional n.º 64. De 5 de fevereiro de 2010. Dá nova redação ao art. 6 da Constituição Federal, inserindo a alimentação como direito social. Brasília, DF. Diário Oficial da União. 2010 a .
BRASIL. Decreto Nº 7.272 de 25 de Agosto de 2010. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PNSAN. Presidência da República, Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos. 2010.
BRASIL. Lei nº 11.346 de 15 de setembro de 2006. Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 2006.
BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL. O direito humano à alimentação adequada e o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional / organizadora, Marília Leão. – Brasília: ABRANDH, 2013. 263 p. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/seguranca_alimentar/DHAA_SAN.pdf Acesso em: 15 de janeiro de 2020.
FAO – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA. Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial. Roma: Cúpula Mundial da Alimentação, 1996.
LEÃO, M. M.; RECINE, E. O direito humano à alimentação adequada. In: TADDEI, J. A.; LANG, R. M. F.; LONGOSILVA, G.; TOLONI, M. H. A. Nutrição em Saúde Pública. São Paulo: Rubio, 2011, p. 471-488.
MELO, Z. M. et al. Marcos Referenciais na Trajetória da Segurança Alimentar e Nutricional: Panorama Mundial e Nacional. Pensar Acadêmico, Manhuaçu, v. 15, n. 1, p. 95-108, janeiro-junho, 2017.
Organização das Nações Unidas (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nova Iorque: ONU, 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf Acessado em: 15 de janeiro de 2020.
VIEIRA, G.O. E D´ORNELLAS, M.C.G.S. Direitos Humanos e Comércio Internacional: A Necessidade da Construção de Pontes por Meio da Segurança Alimentar e os Novos Desafios da OMC. Nomos: Rev Prog Pós-Graduação em Direito da UFC. v. 32, 2012.