VOLTAR À COLEÇÃO ISBN:978-65-997623-6-9
Volume 4

Experiências na educação básica

Práticas de formação e metodologias de ensino

Nada Será Como Antes - O futuro da sala de aula e a construção de escolas que conectem pessoas, saberes e territórios

AUTORES
Leonardo Freire Marino
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Introdução

Você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo Que uma nova mudança em breve vai acontecer O que há algum tempo era novo, jovem Hoje é antigo E precisamos todos rejuvenescer BELCHIOR, Velha Roupa Colorida, 1976.

A escola moderna está em crise? Para muitos estudiosos, a resposta para esse questionamento é sim. De conformidade com o educador português Rui Canário (2006), vivenciamos profunda crise das instituições de ensino. Desde a década de 1960, vivemos um momento paradoxal, dado que presenciamos a expansão do modelo escolar por diferentes países, simultaneamente, convivemos com a multiplicação de questionamentos em relação ao funcionamento, à eficácia e à legitimidade dos processos educativos. Um cenário que determinaria a existência de uma instituição em crise.

Nos últimos anos, presenciamos seguidas reformas nos sistemas de ensino e nas estruturas curriculares em diversos países. Ainda que esse movimento não nos permita confirmarmos a existência da crise, ao menos indica que os sistemas de ensino e as escolas carecem de ajustes. No Brasil, nas últimas décadas, foi estabelecida uma série de reformas, com destaque para a atual Reforma do Ensino Médio e a implementação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Não resta dúvida de que os movimentos reformistas são importantes, sobretudo, por buscarem ajustar as instituições de ensino e suas dinâmicas de funcionamentos aos novos contextos sociais, a um mundo em permanente transformação. Acreditamos que essas reformas apresentem otimismo exagerado, visto que consideram a crise da escola como processo temporário, um desconforto institucional que será superado com a implantação de nova estrutura de ensino e o estabelecimento de novo arcabouço curricular.

Gilles Deleuze (1992), descreveu as razões explicativas para a crise das escolas. De acordo com suas formulações, vivemos um período de transição, um momento em que o novo ainda não se consolidou e o velho permanece ativo. Para Deleuze, o conjunto de instituições criadas pela modernidade, entre as quais as escolas se destacam, não exprimem mais a eficiência que possuíam no passado. As instituições modernas, foram criadas com o intuito de disciplinar os indivíduos através de condicionamentos estabelecidos em seu interior. No entanto, o mundo atual, caracterizado pela existência de uma sociedade fortemente midiatizada, fascinada pelo efêmero e pela visibilidade, provocou um espraiamento dos mecanismos disciplinares. O que transformou a disciplinarização dos indivíduos em processo permanente. Desta forma, a presença dos sujeitos no interior de instituições visando a serem condicionados perdeu sentido. A dispensa dos arcabouços institucionais como mecanismos de introjeção de normas, segundo Deleuze, determinou o soerguimento de nova estrutura social, nomeada por ele sociedade de controle. O estabelecimento desta nova sociabilidade, por sua vez, deu origem à crise do modelo escolar. Atualmente, as funções disciplinares, estabelecidas no interior das escolas e materializada através de práticas de ensino e normas curriculares, não possuem mais a importância, a legitimidade e a eficiência que apresentavam no passado (DAYREL, 2007). Tais aspectos permitem afirmarmos que as instituições modernas, estabelecidas pela sociedade disciplinar, constituem artefatos obsoletos e fadados a desaparecer.

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Não podemos ignorar, em qualquer análise que busque entender o papel das escolas em nossos dias, as constantes mudanças sociais. Assim como, não podemos desprezar a existência de adaptações e ajustes nas dinâmicas de funcionamento das instituições. A existência de elementos disfuncionais e a ocorrência de ajustes institucionais são práticas comuns ao longo da história, presenciada em diferentes instituições e diversos momentos. Entretanto, não acreditamos que a crise vivenciada pelas escolas possa ser reduzida a um momento de desajuste de uma instituição que se encontra inserida em um contexto social de maneira coesa e harmônica. Pelo contrário, como descrito por Deleuze (1992), estamos vivendo o soerguimento de novo arranjo social e o gradual abandono do arcabouço que conferia sentido ao funcionamento das instituições criadas pela modernidade. A crise que vivenciamos não envolve apenas a necessidade de ajustes, mas a construção de novo sentido para as instituições escolares.

No Dicionário Michaelis, em sua versão disponível na rede mundial de computadores, a palavra Crise (2021), que deriva do termo grego Krisis, cujo emprego inicial ocorria na medicina, servia para retratar a existência de um momento decisivo, qual seja: o doente, em razão de suas enfermidades, poderia melhorar ou ter a sua vida findada. Com base na definição original, podermos afirmar que toda crise representa um momento capaz de repercutir no desenvolvimento de um novo arranjo, na continuidade das condições existentes ou no seu encerramento. Por esta condição, a crise da escola moderna constitui um momento excepcional, podendo culminar com o encerramento de um processo, mas, igualmente, levar à superação de suas enfermidades. Portanto, não devemos negar a existência da crise, mas entender as motivações de sua existência, reconhecer as razões para os questionamentos e procurar, com base nela, construir caminhos que permitam a edificação de novas possibilidades para as escolas em nossos dias.

Sob esse prisma, o objetivo do presente ensaio reside em apresentar as razões que justificam a crise atual e, simultaneamente, elencar possíveis caminhos para a superação. Este ensaio estará dividido em duas partes. A primeira, intitulada ‘Razões para a crise da escola moderna’, terá como foco analisar as motivações para a crise atual, justificando os questionamentos que envolvem o modelo escolar predominante em nossos dias. A segunda, nomeada ‘A construção de um novo modelo escolar’, buscará elencar algumas possibilidades para a construção de novo arranjo institucional. Nesta fomentaremos um debate, uma discussão propositiva, com base em alguns aspectos descritos como motivadores da crise vivenciada nas escolas.

Razões para a crise da escola moderna

As escolas devem ser concebidas como tecnologias sociais, artefatos pensados para atender determinados objetivos. Neste sentido, Michel Foucault (1987), descreve com precisão o surgimento de um conjunto de instituições produzidas na modernidade pensadas para atender as demandas de uma época. Conforme as formulações do pensador francês, a escola, a prisão e o hospício seriam instituições-irmãs, criadas com o intuito de introjetar nos indivíduos as normas econômicas e sociais estabelecidas na modernidade. Para Foucault (1987), na base do processo que concebeu a escola moderna, residia a necessidade de adequar as massas, produzir corpos dóceis, indivíduos disciplinados e capazes de exercer as funções demandadas pelo capitalismo industrial.

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Com base no objetivo de disciplinar os indivíduos ao ordenamento social produzido pela industrialização, a escola moderna foi criada. Em seu interior, os docentes ensinam uma massa de jovens que deve assimilar o que é ensinado sem questionar. Na busca pela introjeção de normas disciplinares, deveriam buscar, cotidianamente, a concreção de mecanismos capazes de governar as juventudes, condicionando os indivíduos jovens para, ao atingirem a idade adulta, desempenhar funções estabelecidas pelo ordenamento econômico-social prevalecente. Nas palavras de Lima (1989), pela busca de garantir o cumprimento de suas ordens, a introjeção de normas, os adultos ‘aprisionam’ as juventudes nas chamadas salas de aula, quase sempre, compostas de portas com pequenos visores de vidro. Estes permitem que os movimentos corporais produzidos pelas juventudes sejam observados e corrigidos a qualquer instante em um modelo de vigilância permanente, similar ao Panóptico de Jeremy Bentham, analisado por Michel Foucault (1987).

A influência do capitalismo industrial foi fundamental para a composição da escola moderna. Neste sentido, a construção do modelo de aulas de 50 minutos ilustra com precisão este processo. No final do século XIX, Joseph Mayer Rice, entusiasmado taylorista, sugeriu que as escolas deveriam atender as demandas de qualificação dos trabalhadores (MORIGI, 2011). Para satisfazer os interesses econômicos de qualificação da mão-de-obra, Rice propôs um quantitativo ideal de aulas, capaz de abarcar os conteúdos que deveriam ser expostos aos futuros trabalhadores. Com base nesta condição, na relação entre conteúdos e tempo necessário para sua exposição, Rice propôs um formato de aula próximo ao atual, com duração de 40 minutos. A chamada hora-aula, ou módulo-aula, como foi originalmente pensada, não apresenta, desde a sua origem, relação com os processos de aprendizagem, constituindo apenas a determinação do tempo considerado como necessário para que o conteúdo escolar seja apresentado aos discentes.

Para Foucault (1987), esse modelo de organização institucional, assentada nos interesses econômicos, determinou a concreção de uma máquina de ensinar, de um arcabouço institucional voltado para produzir condicionamentos, de respeito tácito à hierarquia e de promessas de recompensa aos corpos dóceis. Um conjunto de dinâmicas capazes de apontar que, no modelo escolar criado pela modernidade e prevalecente em nossos dias, as individualidades, os desejos das juventudes e suas subjetividades, são encaradas como desvios que precisam ser corrigidos, ajustados e adestrados às normas consideradas ideais.

Transcorridos mais de dois séculos do processo de criação do modelo escolar, ocorreram grandes mudanças nas sociedades e, igualmente, nos sistemas econômicos. Os anseios das juventudes e as demandas do mercado de trabalho são muito diferentes do que foram no passado (RESNICK, 2020). No entanto, as escolas, com raras exceções, continuam funcionando com base em diversos princípios operativos estabelecidos em seus primeiros dias, isto é: indivíduos alinhados, uniformizados, olhando atentamente para os docentes. Estes por sua vez, proferem conteúdos padronizados, considerados como verdade absoluta, devem ser memorizados e aplicados em avaliações únicas, ademais, representam a base do modelo escolar criado pela modernidade, permanecendo pouco alterado até os nossos dias.

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Para Rui Canário (2006), o modelo de organização das escolas traduz uma forma específica de encarar os sujeitos, visto que se assenta na concepção de que aquilo que deve ser ensinado tem origem em uma exterioridade; isto é: em saberes disciplinarmente acomodados, pouco articulados e distante dos saberes produzidos cotidianamente pelos indivíduos. Com base nesta concepção, as experiências pessoais, os itinerários de vida e os saberes produzidos e empregados cotidianamente pelos indivíduos são ignorados, classificados como inválidos e apartados das práticas de ensino estabelecidas no interior das escolas. As instituições de ensino brasileiras se encontram, majoritariamente, apoiadas nesta concepção. Em seu interior as práticas pedagógicas desprezam as individualidades, ademais, buscando governar os sujeitos, padronizam comportamentos impondo sansões aos corpos que não conseguem se adequar a este ambiente.

Nas escolas brasileiras, os docentes exercem a função de propagar saberes determinados, conteúdos que devem ser apreendidos, memorizados e legitimados em avaliações padronizadas, como por exemplo, nas tradicionalíssimas provas e nos exames nacionais. Neste cenário, as experiências de vida, os interesses e desejos pessoais, são desprezados, considerados irrelevantes para os processos formativos (MARINO, 2019). Por estas condições, podemos afirmar que as escolas brasileiras, alicerçadas no modelo de ensino estabelecido pela modernidade, constituem uma fraude em suas funções educadoras, sendo incapazes de promover a emancipação dos sujeitos. Educar é um processo permanente, que provoca a construção de conhecimentos e ações capazes de emancipar os sujeitos. Esses são requisitos que as escolas brasileiras, quiçá mundiais, ainda não produzem.

Vivemos um momento em que, cada vez mais, se faz necessário que os indivíduos consigam propor soluções a respeito das questões de seu tempo. Todavia, a escola moderna, apoiada na rigidez das disciplinas, não consegue atingir esse propósito com eficiência. As práticas de ensino estabelecidas em seu interior procuram consolidar um mimetismo, uma repetição de conceitos e temas que se encontram apartados da realidade, da vida que é vivida. As escolas brasileiras têm produzido discentes viciados na inércia, sujeitos que não são estimulados a pensar, a refletir e a produzir respostas para os desafios do mundo atual. A escola moderna é uma escola de respostas prontas e o ‘sucesso dos docentes’, por exemplo, tem sido alcançado através de um modelo de oratória, pouco participativo, centrado na capacidade de persuasão. Por certo, isto não leva os discentes, verdadeiramente, à construção de pensamentos autônomos. Convivemos com docentes e discentes viciados no imobilismo.

A consolidação de escolas apoiadas no imobilismo aprofunda o descolamento dos saberes socialmente produzidos daqueles que são ensinados. Neste cenário, isto é, no mundo vivido, as relações sociais e comunitárias, ocupam uma posição menor, precisando ser encaixadas em saberes padronizados, soluções únicas e respostas mágicas. Desta forma, a diversidade e a complexidade que envolve a vida humana são constantemente desprezadas. A escola moderna subestima a vida, reduzindo esse processo a um conteúdo, a um tema disciplinar, a um fragmento da realidade, a uma descrição que deve ser memorizada para ser utilizada em avaliações padronizadas.

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O resultado deste processo tem sido presenciado no aumento considerável dos índices de escolarização e a presença crescente de sujeitos incapazes de pensar as questões do mundo atual. A escolarização cresce em todo o planeta e, no Brasil, é extremamente significativo. Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica (2021), em 2012, a escolaridade média da população brasileira de 18 e 29 anos era de 9,8 anos; em 2020, passamos para 11,8 anos. Contudo, se convivemos com pessoas cada vez mais escolarizadas, não podemos afirmar que existe uma correlação deste processo com a formação de cidadãos ativos, isto é: capazes de perceber a complexidade das relações sociais e atuantes nas arenas políticas. A escola, dos condicionamentos e da disciplina, tem sido incapaz de formar os sujeitos para além de sua condição de mão-de-obra.

Neste contexto, podemos afirmar que existe um descompasso entre a escolarização e a educação. A submissão e o comedimento são legados de um sistema de ensino alicerçado na inércia, na repetição de respostas prontas e na introjeção de normas disciplinares. Nas palavras de Arroyo (2007), ao centrar a função em ensinar e transmitir conteúdos, habilidades e competências voltadas à inserção dos jovens no mercado, o sistema escolar, renunciou o potencial emancipador das juventudes presente na educação. Em outras palavras, ao produzir uma população empregável, a escola moderna, definitivamente, abandonou o potencial formativo que existe nos processos educativos. Nesse contexto, não contribui de maneira significativa para o desenvolvimento de sujeitos emancipados e capazes de interferirem nos principais debates de nossos dias.

Precisamos construir novos sentidos para as instituições escolares. Não podemos admitir que as escolas devam ser abandonadas ou que estão fadadas a desaparecer. Pelo contrário, consideramos que elas possuem elevada função social, servindo como espaço, fundamental, para democratizar o acesso à cultura. No entanto, reconhecer a escola como instituição relevante, não significa que devemos apoiar o imobilismo ou negar as razões para tais questionamentos. Acreditamos ser, cada vez mais importante, que novo modelo escolar seja construído e implementado.

A construção de um novo modelo escolar

Consideramos que a edificação de novo sentido para as escolas não é uma opção, é um processo que inevitavelmente deveremos realizar. No entanto, o percurso a realizar não é uma linha reta, que percorreremos facilmente, sobretudo, por envolver mudanças fundamentais em uma instituição que possui princípios operativos consolidados e largamente empregados em nossos dias. Por esta condição, deveremos estabelecer, simultaneamente, dois movimentos. O primeiro envolve o abandono de algumas dinâmicas que conferem sentido à escola moderna; entretanto, nos últimos tempos elas têm se mostrado incompatíveis com as novas sociabilidades. Ao propor abandonar as dinâmicas que caracterizam a escola moderna, precisaremos, conjuntamente, estabelecer o segundo movimento, isto é, a construção de novas práticas e sentidos para as instituições de ensino.

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Aqui uma ressalva deve ser feita, qual seja: nossas reflexões não caminham na direção da desescolarização da sociedade; semelhantemente ao que foi salientado por Young (2013), acreditamos que as instituições escolares continuam apresentando elevado valor social e cumprindo uma função central no processo de transmissão de conhecimentos historicamente produzidos. Do mesmo modo, ao afirmar a necessidade de construção de novo sentido para as escolas, não podemos cair na vala comum que se estrutura na antítese da escola e da aula, como se a defesa de novas práticas formativas determinasse o abandono institucional e a construção de uma dinâmica assentada na não-aula. Não propomos o fim da escola ou a renúncia das práticas dos encontros temporal e espacialmente determinados. O que buscamos é a revisão dos objetivos e a reestruturação dos procedimentos, com a transformação das salas de aula e, consequentemente, de todo o ambiente escolar, em espaços que fomentem a criatividade, promova o respeito aos diferentes e a tolerância aos pensamentos divergentes. Provavelmente, esses objetivos não serão alcançados na escola disciplinadora criada pela modernidade.

Na reimaginação das escolas, diversos ângulos devem ser considerados. Deter-nos-emos em apenas três, a saber: as práticas de ensino e suas temporalidades; os processos de avaliação e de progressão; a institucionalização dos sujeitos. Consideramos que estes ângulos ocupam uma posição de destaque entre os procedimentos estabelecidos na escola disciplinar, além de expressarem significativas normas de funcionamento. Assim sendo, entendemos que, na construção de uma escola adaptada aos novos tempos, esses aspectos devem ser alterados. Cabe realçar que nossas formulações não correspondem a recomendações ou a propostas acabadas. Não se trata de orientações definitivas, mas de exercício, de estímulo à criatividade e fomento a uma discussão coletiva. Esta, permitirá caminharmos em direção à concreção de instituições de ensino mais humanas, acolhedoras e capazes de conectar pessoas, saberes e territórios.

A centralidade do aprender e não do ensinar

O modelo escolar atual apresenta como foco o ensinar. Nesse movimento, os docentes possuem a centralidade dos processos de escolarização, sendo responsáveis pelas ‘ensinagens’, os discentes são vistos como sujeitos passivos que devem absorver o que lhes é apresentado no interior das salas de aula. Na construção de novo modelo escolar, de novo arranjo institucional, esse cenário precisa ser modificado; além disso, docentes e discentes devem ser incitados a assumirem novas funções.

Em vez de aulas baseadas na exposição de conteúdos, disciplinarmente estabelecidos, defendemos que novo arcabouço pedagógico seja construído. Sob essa ótica, o ensinar deve perder a centralidade do fazer docente e o seu lugar será ocupado pela aprendizagem. É indispensável que as escolas sejam transformadas em espaços de fomento ao aprender, viabilizando a formação de indivíduos autorregulados, corresponsáveis pela construção dos itinerários formativos e capazes de selecionar instrumentos adequados à construção do conhecimento. Ao propormos que os discentes sejam corresponsáveis pelos processos de aprendizagem, não estamos reduzindo o papel dos docentes. Pelo contrário, neste arranjo escolar, a função dos docentes será ampliada, ganhando contorno que ultrapassa a exposição de aulas padronizadas. Ao centrarmos as práticas escolares na aprendizagem, acreditamos que os docentes se transformarão em orientadores, em mediadores, capazes de fomentar a construção de perguntas e respostas a respeito dos desafios. Esses desafios, por sua vez, envolvem a construção de aprendizagens sistemáticas e de conhecimentos.

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Ainda que estejamos sempre aprendendo, a construção do conhecimento por intermédio da aprendizagem sistemática não é facilmente estabelecida. Com base nos inúmeros avanços científicos, sobretudo, nos estudos de neurociência associados à educação, sabemos que a construção do conhecimento demanda combinação mental complexa. Então, os saberes adquiridos precisam ser confrontados, avaliados e, quando necessário, reconstruídos em novas combinações (COSENZA, 2011). A complexidade dos processos mentais que envolve a consolidação do conhecimento requer tempo lento, marcado por vivências, inferências e trocas de experiências: entretanto, estes são procedimentos que a escola moderna não conseguirá proporcionar, permanecendo voltada para o modelo hora-aula, na sujeição dos indivíduos e na exposição de conteúdo.

Para garantir o tempo necessário à consolidação do conhecimento defendemos que a escola apresente nova temporalidade. Para tanto, os avanços científicos precisam ser considerados e, fundamentalmente, o ritmo fabril de exposição de conteúdos deverá ser abandonado. Faz-se indispensável construir uma escola de tempo lento, marcada por um ritmo de encontros e de aprendizagens adequado às necessidades dos sujeitos. Ao apontar o abandono do ensinar e, consequentemente, a necessidade de construção de nova temporalidade no interior das escolas, não estamos apenas reforçando a crítica à escola moderna, mas reconhecendo os avanços científicos produzidos e propondo que eles sejam considerados na concreção dos processos formativos.

A construção de um novo processo de avaliação

Ao passo que centramos nossas práticas no aprender, torna-se necessária a adoção de novos procedimentos para aferir a construção do conhecimento. Atualmente, na maior parte dos casos, medimos o ensino por provas, testes e exames nacionais. Nestes instrumentos, os discentes mais bem condicionados, e que possuem elevada capacidade de memorizar respostas prontas, tendem a obter melhores resultados. Como salientado por Mitchel Reznick (2020), esse modo de agir, não consegue incentivar a criatividade ou a consolidação de conhecimentos significativos e adequados aos novos tempos. Com base nesta condição, defendemos que no novo arranjo escolar, centrado na aprendizagem sistemática, os mecanismos de avaliação sejam alterados.

O mencionado arranjo não deve ser entendido como desprezo pelos processos de aferição do conhecimento. Pelo contrário, os mecanismos que procuram medir os conhecimentos devem permanecer no ambiente escolar. No entanto, não defendemos a terminalidade que esses processos apresentam, tampouco consideramos que apenas os discentes sejam avaliados. O que propomos é a construção de mecanismos de monitoramento, capazes de acompanhar, simultaneamente, as dinâmicas pedagógicas propostas pelos docentes e permitir que a eficácia delas, na concreção dos conhecimentos por parte dos discentes, seja observada.

Ao sugerir o monitoramento em detrimento da avaliação, evidenciamos que a aprendizagem é um processo gradual, estabelecidos por avanços em ritmos distintos e determinados por condições subjetivas. Os procedimentos capazes de aferir a produção do conhecimento não podem ser restritos a instrumentos pontuais, padronizados e empregados com foco exclusivo nos discentes, como, tradicionalmente, ocorrem em provas, testes e exames nacionais. Defendemos que esses mecanismos sirvam para a adoção de correções, ajustes e adaptações, necessárias, à concreção de aprendizagens sistemáticas. Nessa concepção, o erro adquire outra conotação, sendo considerado como um momento, uma etapa do processo de formação dos sujeitos. Sendo assim, é preciso que o erro não apenas seja aceito, mas que o não-acerto seja entendido como a existência de um movimento, de um processo sistemático de aprendizagem que não se encontra acabado. Então, ele deve ser objeto de adequações e ajustes que busquem atender as necessidades dos discentes.

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Ao adotar novo sistema de avaliação, afastado da terminalidade de provas e testes, precisamos pensar em nova forma de progressão dos discentes. A progressão assentada em anos de escolaridade e em avaliações comuns, não consegue abarcar os processos de aprendizagem e não favorece a percepção pelos discentes quanto a suas corresponsabilidades nos itinerários pedagógicos. Em seu lugar, propomos o estabelecimento de estruturas flexíveis, capazes de atender as subjetividades envolvidas, as dinâmicas de aprendizagem e a temporalidade inerente à construção do conhecimento. Neste processo, não caberá mais aos docentes determinar ou não a progressão dos discentes. Esse processo será estabelecido por intermédio de diálogo permanente entre docentes e discentes; sempre que os últimos sentirem segurança, perceberem que possuem as condições necessárias, que os processos de aprendizagem foram exitosos, a progressão deverá ser assegurada.

Transitar entre o dentro e o fora

As escolas predominantes em nossos dias foram construídas com base na institucionalização dos sujeitos. Estes são obrigados a adentrar os muros institucionais e a se submeterem aos processos disciplinares estabelecidos em seu interior. A construção de escolas encerradas e muradas representa uma característica central do modelo escolar construído pela modernidade. No exercício imaginativo proposto neste ensaio, apoiado na busca por reimaginar a escola, entendemos ser preciso que os muros institucionais sejam sobrepujados, que os limites espaciais, fundamentais, para o funcionamento dos mecanismos disciplinares sejam superados.

Defendemos que as escolas constituam espaços de concreção de sujeitos emancipados. Para isto ocorrer, faz-se necessário que os sujeitos escolares percebam o seu entorno, reconhecendo os contextos territoriais em que estão inseridos. Neste processo, discentes e docentes devem ser encorajados a olhar para o extramuros, reconhecendo, nas comunidades escolares, os saberes praticados, os conhecimentos populares que contribuem para a formação das subjetividades dos indivíduos, embora, historicamente, a escola moderna os tenha negligenciado (MARINO, 2018). No entanto, não propomos apenas um estímulo ao olhar; defendemos que os contextos territoriais orientem as estruturas curriculares e, por esta condição, o que se aprende no interior da escola encontre significado no entorno das escolas. A elaboração dos currículos com base nos contextos territoriais representa uma etapa fundamental na construção deste novo arranjo escolar, visto que permitirá aos discentes o reconhecimento da vida vivida, da complexidade das relações sociais e dos saberes empregados cotidianamente pelos seus pares (MARINO, 2021).

Os currículos escolares devem ser estabelecidos em uma perspectiva de educação integral, significativa e territorialmente referenciada. Ao apontar a construção de uma educação integral, não estamos pautando a defesa de uma escola de tempo integral, centrada na permanência das juventudes por mais tempo no seu interior. Pelo contrário, não acreditamos que o aumento do tempo de permanência dos discentes no interior dos aparelhos escolares seja essencial para a construção deste novo arranjo. Propomos que as instituições de ensino se integrem aos seus entornos e que os procedimentos formativos compreendam o potencial educativo dos saberes instituídos fora das caixas disciplinares, distantes do arcabouço científico criado pela modernidade. Neste sentido, os saberes historicamente produzidos devem ser apresentados em permanente relação com os contextos sociais, servindo como chaves capazes de abrirem portas e janelas para a compreensão de um mundo vivido, não apenas descrito (MARINO, 2021).

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O entendimento do mundo, em sua complexidade e com múltiplas possibilidades, deve ser percebido no interior dos espaços escolares, independentemente do tamanho dos muros construídos ou de suas normas de acesso. Os territórios dispõem de inúmeras possibilidades educativas e os saberes expostos em ruas, calçadas e praças devem ser encarados como essenciais à emancipação dos sujeitos. Por isso, é preciso que discentes e docentes transitem entre o dentro e o fora dos espaços escolares, estabelecendo práticas formativas que garantam o reconhecimento dos saberes populares, territorialmente produzidos como relevantes.

Considerações finais

Para que a gente escreve, se não e para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 2002, p.64.

Estamos inseridos em um período de transição, cujo desdobramento tem sido notado por intermédio da crise nas instituições disciplinares, com destaque para as instituições de ensino. De acordo com Deleuze (1992), a crise vivenciada nas escolas não pode ser reduzida ao desajuste de suas dinâmicas de funcionamento em um sistema que funciona de maneira harmônica. Para esse autor, vivemos uma mudança de paradigmas, com o soerguimento de novo modelo social, a chamada sociedade de controle. Nos novos tempos, a escola tradicional, não possui mais a eficácia que apresentava no passado; os processos de disciplinarização dos indivíduos se espraiaram pelo tecido social. Por esta condição, a escola não apresenta mais a legitimidade que possuía, tampouco a capacidade de se comunicar com os indivíduos jovens. O resultado desse processo reside na multiplicação de estudantes e professores infelizes com suas práticas diárias. A exaustão e a medicalização da vida cotidiana têm se alastrado no ambiente escolar e seus impactos são imensos no surgimento de espaços e indivíduos doentes (HAN, 2017).

As seguidas reformas propostas nos sistemas de ensino, representam a busca por ocultar a opção política dada a permanência de uma estrutura criada há alguns séculos. O objetivo central desse movimento reside em disciplinar os indivíduos aos interesses econômicos hegemônicos. Neste sentido, as reformas apresentariam função docilizadora, que apontaria para a permanência de um sistema a ser superado. Docentes detentores do monopólio do conteúdo a ser ensinado, são munidos de autoridade oriunda do controle que eles detêm acerca das avaliações. São imagens que sintetizam um artefato social, uma tecnologia de época, que se encontra enferrujada e incompatível com o mundo atual.

No modelo escolar criado pela/na modernidade, educar significa transmitir conteúdos; o saber constituía algo que poderia ser acumulado. A crise das instituições escolares implica o necessário abandono dessa concepção de educação, com a abdicação das práticas disciplinares de confinamento, enquadramento e vigilância. É preciso que enfrentemos a construção de uma escola que rompa com os padrões tradicionais, e que nossas práticas consigam fomentar esse movimento. Por esta condição, as escolas precisam se distanciar dos mecanismos de ensinagem, para assumirem a função de espaços que conectem pessoas e saberes por intermédio de processos sistemáticos de aprendizagem. É essencial que as escolas promovam a emancipação dos sujeitos, não a sua submissão às normas disciplinares. Nessa perspectiva, defendemos que as salas de aula tradicionais, espaços físicos delimitados e vigiados, compostos pela presença de jovens alinhados e compenetrados, seja superada. Esse modelo não atende mais as demandas sociais e possui a capacidade de se conectar com as novas gerações. A escola moderna transformou-se em tecnologia ultrapassada.

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O abandono do modelo escolar moderno é fundamental; precisamos discutir os processos que permitam a construção de novo sentido para as instituições escolares. Necessitamos traçar novos caminhos, indicar novas possibilidades e incentivar que os sujeitos escolares percorram esse itinerário. Neste processo, é preciso que os sujeitos sejam percebidos em sua integralidade e as relações sociais entendidas em sua complexidade. Para tanto, cabe-nos garantir novas funcionalidades às escolas, a fim de que elas se transformem em espaços de conexão de pessoas e saberes, visando produzir uma educação integral, emancipadora e territorialmente referenciada.

O futuro é uma construção em aberto. No entanto, o futuro não será construído por acaso, mas com base em procedimentos estabelecidos no presente. Necessitamos refletir a respeito das estruturas existentes em nossos dias. A conjuntura atual aponta para mudanças, para a construção de novas formas de ser e estar no mundo; por esta condição, precisam ser objetos de análises e discussões. Logo, não apresentamos considerações definitivas, apenas elencamos possibilidades e possíveis caminhos para serem percorridos na construção deste novo e necessário modelo escolar.

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