VOLTAR À COLEÇÃO ISBN:978-65-997623-6-9
Volume 4

Experiências na educação básica

Práticas de formação e metodologias de ensino

Como Professores e Professoras Pensam o Currículo Escolar?

AUTORES
Eliane Rose Santos de Araújo
Maria Cristina Ferreira dos Santos
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Introdução

Este texto é um recorte da pesquisa intitulada Professor, que currículo é esse? Percepções sobre a autonomia, saberes e formação dos docentes no Ensino Fundamental. Esta investigação foi realizada no curso de Mestrado Profissional do Programa de Pós-graduação de Ensino em Educação Básica – PPGEB, com professores atuantes em escolas da Rede Municipal do 5º Distrito de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro. Buscou-se investigar a seguinte questão: quais são as percepções de currículo desses professores e professoras? Teve-se por objetivo compreender o papel docente na produção dos currículos desenvolvidos nas escolas.

Discutimos os sentidos de currículo com esteio em estudos de pesquisadores desse campo, entre eles: Apple (2008, 2013), Arroyo (2013), Goodson (1996, 2018), Kramer (1997), Moreira e Silva (2013), Sacristán (2017) e Young (2014). Compreende-se, pois, o currículo como artefato influenciado por elementos ideológicos, políticos e de poder em contextos culturais e tempos históricos. Com suporte em Lopes e Macedo (2011) e Silva (2019), apontamos, a seguir, alguns significados atribuídos ao currículo escolar.

Noções de currículo e o construto escolar

Faz-se relevante investigar os sentidos de currículo no locus escolar, visto que as/os professoras/es, muitas vezes se questionam sobre o quê e como ensinar, e por quê determinados conteúdos fazem parte do currículo escolar e outros não. Visando a atender as demandas nas escolas, as/os docentes precisam aprimorar suas práticas e construir um currículo que seja adequado a essas necessidades. Para Araújo e Gomes (2016, p.298), “[...] o currículo não é apenas um documento que inclui vários conteúdos a serem transmitidos aos alunos, mas que se alicerça em valores, crenças e relações”. O currículo deve ser construído coletivamente, levando em consideração a comunidade escolar. Ele não é neutro e estático, mas em constante construção e transformação. Conforme Sacristán (2017, p.14), “[...] o currículo reflete-se em todas e quaisquer ações existentes dentro das instituições escolares. Por meio dele, a socialização, a formação, a segregação ou a integração são realizadas”. Para Kramer (1997, p. 22), os currículos precisam privilegiar “[...] os fatores sociais e culturais, entendendo-os como sendo os mais relevantes para o processo educativo” (KRAMER, 1997, p. 23). No entender da autora, esses fatores desenvolvem a autonomia e a cooperação, princípios básicos da cidadania, mas não basta implantar novos currículos ou novas propostas curriculares; é importante também investir na formação dos profissionais que utilizam esses documentos. A citada autora também aponta a necessidade de assegurar as condições materiais concretas para que as mudanças ocorram. Realizar discussões sobre currículo no contexto educacional em vigor faz-se importante e urgente, dado ser esse recurso didático orientador de práticas pedagógicas e os professores precisam conhecê-lo para o exercício profissional.

O termo currículo pode ter diferentes concepções nos diferentes segmentos da educação. Para alguns, pode ser descrito como “[...] plano de instrução, percebido como um conjunto de conteúdos a ensinar” (LAUANDE; CASTRO, 2010, p. 54), ou os conhecimentos produzidos nas escolas ou a proposta curricular do município também pode ser considerada como currículo. Alguns podem ter uma visão mais ampliada de currículo, como “[...] um conjunto de experiências educativas, um sistema dinâmico, processual e complexo, sem uma organização sistematizada” (LAUANDE; CASTRO, 2010, p. 54). Para Lopes e Macedo (2011, p.19):

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Embora simples, a pergunta “o que é currículo?” não tem encontrado resposta fácil. Desde o início do século passado ou mesmo desde um século antes, os estudos curriculares têm definido currículo de formas muito diversas e várias dessas definições permeiam o que tem sido denominado currículo no cotidiano das escolas. Indo dos guias curriculares propostos pelas redes de ensino àquilo que acontece em sala de aula, currículo tem significado, entre outros, a grade curricular com disciplinas/atividades e cargas horárias, o conjunto de ementas e os programas das disciplinas / atividades, os planos de ensino dos professores, as experiências propostas e vividas pelos alunos (LOPES; MACEDO, 2011, p. 19).

Em se tratando das diversas abordagens acerca da concepção de currículo, realçamos as considerações de Apple (2008). Esse autor aponta que, muitas vezes, o currículo é reduzido ao paradigma tecnicista e sinaliza que é influenciado por concepções de determinados grupos. O autor acentua motivos de determinada seleção de conteúdos em detrimento a outra, visto que é produzido por determinado grupo social, expressando suas ideologias culturais, políticas e econômicas. Para Apple (2008), questões de gênero e raça são descaracterizadas no currículo, visto que normalmente se enfatiza a cultura “branca”, deixando de fora outras raças e etnias por considerá-las inferiores. Sobrepõe a relação de poder, em que se tenta preservar uma cultura em detrimento de outra.

O currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos, que de algum modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele sempre é parte de uma tradição seletiva, resultado de uma seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legitimo. É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE, 2008, p. 59).

O autor aborda a importância da análise dessa não-neutralidade no processo de elaboração do currículo, posto que que debates políticos e econômicos estão relacionados ao planejamento curricular por órgãos oficiais.

O currículo representa poder, uma vez que expressa a visão de mundo de um determinado grupo: suprime vozes de outros, exalta a tradição cultural, política e a visão de sociedade desses sujeitos. Para Apple (2008, p. 59), é preciso perguntar: “[...] o conhecimento de quais grupos é ensinado na escola?” “Por que este conhecimento?” “Qual a relação entre cultura e poder na educação?”

Na escola, onde permeiam conflitos e interesses políticos e ideológicos, o currículo e as relações de poder que o envolvem constituem componentes significativos.

Para Michael Young (2014, p. 201), a natureza do currículo é excludente; enquanto alguns têm acesso à escolarização, outros são excluídos. Faz-se, então, importante pesquisar como “[...] os processos de seleção, sequenciamento e progressão são limitados, de um lado, pela estrutura do conhecimento e, de outro, pela estrutura dos interesses sociais mais amplos”. Neste caso, o autor se refere ao currículo como “conhecimento dos poderosos”:

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[...] sempre é também um corpo complexo de conhecimento especializado e está relacionado a saber se e em que medida um currículo representa ‘conhecimento poderoso’ – em outras palavras, é capaz de prover os alunos de recursos para explicações e para pensar alternativas, qualquer que seja a área de conhecimento e a etapa da escolarização (YOUNG, 2014, p. 201).

Para Goodson (1996, p. 17-18), “[...] o currículo escolar é um artefato social, concebido para realizar determinados objetivos humanos específicos”. Então, o currículo está longe de ser neutro, sendo um conceito “[...] ilusório e multifacetado”, até mesmo “escorregadio”, “[...] na medida em que se define, redefine e negocia numa série de níveis e de arenas, sendo difícil identificar seus pontos críticos”. O currículo é visto como “construção social”, devendo ser investigado tanto em nível da prescrição quanto em termos das realizações práticas (GOODSON, 1996, p. 72). Pode ainda sinalizar relações de poder na elaboração das propostas curriculares que traduzem as determinações do grupo dominante na escolarização, mesmo com os “[...] sinais de conflitos e contestações” (GOODSON, 1996, p. 132). O autor aponta ser preciso ir além das impressões para compreender as relações de poder que permeiam o currículo. Em consonância com o pensamento de Goodson (1996), Nascimento, Moraes e Bonfim (2010) reiteram a dimensão política do currículo, na medida em que seu processo de criação traz à tona “[...] as concepções de homem, educação e sociedade que se acredita e almeja para a formação dos sujeitos”. Elas destacam o currículo como um “campo de poder”, envolvido em “conflitos, disputas e interesses” (NASCIMENTO; MORAES; BONFIM, 2010, p. 9-10).

Moreira e Silva (2013) também consideram o currículo como um artefato cultural e social. Os autores apontam que esse documento está “[...] implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares”. Ademais, afirmam que o currículo tem uma história que está vinculada “[...] a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação” (MOREIRA; SILVA, 2013, p. 14).

Para Sacristán (2000, p. 16), há dificuldade de conceituar currículo devido à complexidade, pois nele se “[...] cruzam muitas dimensões que envolvem dilemas e situações perante as quais somos obrigados a nos posicionar”. É um termo histórico que acumula significados e se volta para a “[...] prática didática que se desenvolve durante a escolaridade” (SACRISTÁN, 2017, p. 16). No currículo se insere o que será ensinado em cada ano de escolaridade e em que ordem isto será realizado enquanto construção cultural:

O currículo não é um conceito, mas uma construção cultural, isto é, não se trata de um conceito abstrato que tenha algum tipo de existência fora e previamente à experiência humana. É, antes de tudo, um modo de organizar uma série de práticas educativas (GRUNDY apud SACRISTÁN, 2017, p. 14).

Sacristán (2017, p. 15) aponta ainda que o currículo “[...] não é uma realidade abstrata à margem do sistema educativo em que se desenvolve e para o qual se planeja”, mas a “[...] concretização das funções da própria escola e a forma particular de enfocá-las” nos períodos históricos e sociais determinados, para aqueles níveis e modalidades educacionais, “numa trama institucional”. Ele se refere ao currículo como práxis que não “[...] se esgota na parte explícita do projeto de socialização cultural nas escolas” (ibidem, p. 15).

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Para Arroyo (2013), quando se elabora um currículo faz-se necessário considerar as singularidades de cada indivíduo, dando voz e vez aos estudantes:

Na construção espacial do sistema escolar, o currículo é o núcleo e o espaço central mais estruturado da função da escola. Por causa disso, é o território mais cercado, mais normatizado. Mas também o mais politizado, inovado, ressignificado (ARROYO, 2013, p. 13).

Percebemos a centralidade do currículo como território de disputa, sendo campo complexo onde se concentram inúmeros debates “[...] da sociedade, do Estado e de suas instituições, como também de suas políticas e diretrizes” (ARROYO, 2013, p. 17).

Silva (2019) esclarece que o currículo perpassa a concepção de um documento determinado por uma superestrutura; ele é um campo de disputas entre variadas culturas. O termo possui uma gama de significados e interpretações, estando relacionado à constituição das identidades das escolas e dos sujeitos nelas inseridos, englobando seus valores, culturas e aspirações. Silva (2019, p. 15) afirma ainda que um currículo “[...] busca precisamente modificar as pessoas” que se compreendem naquele documento de identidade, na sociedade em que estão inseridas.

Lopes (2006) reporta à contribuição de subjetividades na construção desse documento plural e repleto de contradições. Visando a contribuir para a construção de aprendizados significativos, ele deve ser construído na escola por seus atores e, considerando a realidade sociocultural da escola, não ser reprodução, tampouco ser construído por outros grupos socioculturais.

O que se entende por currículo não é consenso, porém, construção multifacetada; nele se inscrevem elementos “[...] do formal, do oculto e do vivido” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 37). Na produção curricular faz-se relevante pensar na necessidade de este (o currículo) contemplar todos os alunos, objetivando-se respeitar as diferenças e desenvolver potencialidades. Em sendo assim, contribuir para a construção do conhecimento na escola. As diferenças nesse ambiente poderão, por certo, ser utilizadas como estímulo e possibilidade de crescimento.

Na construção curricular é importante considerar saberes dos diferentes sujeitos, no diálogo para uma educação autêntica. A construção de um currículo adequado às demandas dos alunos está relacionada à autonomia docente, como também ao desenvolvimento crítico e autônomo do aluno.

O percurso da pesquisa

A pesquisa foi de natureza qualitativa, por considerar que seus efeitos possam contribuir para mudanças em seu meio de atuação. De acordo com Godoy (1995, p. 62), “[...] Os pesquisadores qualitativos tentam compreender os fenômenos que estão sendo estudados a partir da perspectiva dos participantes”. Para o autor, esse tipo de pesquisa ajuda a esclarecer o dinamismo interno das situações, tornando visível para os observadores externos as situações que eles não conseguem perceber sozinhos.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da UERJ em 29/05/2020, CAAE nº 32249120.9.00005282 e Parecer de nº 4.058.953. A pesquisa foi realizada por meio da aplicação de um questionário e entrevistas com docentes do ensino fundamental que atuavam, em 2020, em cinco escolas municipais do 5º Distrito do Município de Petrópolis. O questionário foi aplicado a 27 professores e as entrevistas foram realizadas com cinco professores respondentes do questionário.

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O critério inicial de seleção dos professores foi a atuação deles no município de Petrópolis. Por meio de aplicativo de mensagem ou correio eletrônico, o projeto foi apresentado aos professores que se disponibilizaram a participar da pesquisa no ano de 2020. Após a análise das respostas ao questionário, foram selecionados cinco professores para a realização da entrevista. Os critérios de seleção para a entrevista foram os seguintes: disponibilidade, atuação no ensino fundamental I e/ou II e contribuições das respostas ao questionário para as questões da pesquisa. Foram selecionados professores que indicavam ser autônomos e aqueles que indicavam ter sua autonomia cerceada nas escolas. Em relação ao segmento em que atuavam, três professores atuavam no ensino fundamental II e duas professoras no ensino fundamental I.

Para a construção dos dados da pesquisa utilizaram-se as respostas dos professores ao questionário e depoimentos dos docentes entrevistados. O questionário foi composto de questões com o propósito de realizar o levantamento das percepções docentes sobre currículo, autonomia, saberes, formação docente, bem como das propostas curriculares de Petrópolis. Ele foi organizado em formulário on-line com questões abertas e fechadas, com opções de múltipla escolha.

Após a aplicação do questionário, cinco professores foram selecionados para realizar a entrevista. Utilizou-se um roteiro semiestruturado com os tópicos principais. As entrevistas foram realizadas com os professores por via remota (Google Meet), em função dos cuidados necessários para evitar a contaminação por Covid-19. Elas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e analisadas.

O que professores e professoras pensam sobre currículo?

Na pesquisa realizada procurou-se entender como os docentes pensam a produção curricular escolar, considerando suas concepções de currículo, materiais utilizados na elaboração das aulas e como a implementação da BNCC estava sendo realizada nas escolas. Entre as definições das(os) docentes sobre o que é currículo, destacam-se:

Seleção de determinados conhecimentos garantindo aos educandos acesso a informações. Não ser visto de forma estática ou meramente uma listagem de conteúdos que serão trabalhados pela escola. Deve servir, entre outras coisas, para tomada de decisões (P1, 2020).
É o conjunto de conteúdos propostos para serem trabalhados no ano letivo (P2, 2020).
São os conteúdos abordados no processo de ensino-aprendizagem e a metodologia utilizada para os diferentes anos escolares, abrangendo as experiências de aprendizagens implementadas pelas instituições escolares e que são vivenciadas pelos alunos (P8, 2020).
Conjunto de disciplinas de um curso com conteúdos específicos (P24, 2020).
Um documento que irá nortear as ações dos professores e de toda unidade escolar no decorrer do ano letivo (P25, 2020).
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As definições de currículo das/dos professores referem-se principalmente a conhecimentos, conteúdos, metodologias, disciplinas e documentos, aprendizagens, programas e experiências dos alunos na trajetória escolar. Elas são múltiplas, pois estão relacionadas a subjetividades. Para Lopes e Macedo (2011, p. 20), “[...] talvez hoje seja óbvio afirmar que o ensino precisa ser planejado e que esse planejamento envolve a seleção de determinadas atividades/experiências ou conteúdos e sua organização ao longo do tempo de escolarização”; pois, cada uma das tradições curriculares que circularam e circulam são discursos hegemonizados que emprestaram ao currículo sentido próprio. Essas tradições criam sentidos para a palavra currículo, como um ato de poder, “[...] na medida em que esse sentido passa a ser partilhado e aceito” (LOPES; MACEDO, 2011, p.40).

Para Moreira e Silva (2013), o currículo não é um artefato que deve ser transmitido de forma passiva aos alunos, mas produto e produtor de cultura. Esses autores destacam que “[...] o currículo é, assim, um terreno de produção e de política cultural, no qual os materiais existentes funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão” (MOREIRA; SILVA, 2013, p. 36) e que o currículo está no centro das relações de poder. Pensar o currículo como listagem de conteúdos a serem ensinados, sem considerar quem determinou tais conteúdos e os respectivos motivos, pode contribuir para acentuar desigualdades sociais, na medida em que se reproduz uma cultura hegemônica desconectada da realidade sociocultural dos estudantes.

Quando questionados sobre os materiais curriculares utilizados no planejamento das aulas, os respondentes apontaram três ou mais materiais, com destaque para a Proposta Curricular de Petrópolis, os livros didáticos e a BNCC. Para suprir as necessidades dos diferentes grupos atendidos, alguns professores organizam seus próprios materiais, como exemplificado adiante:

Geralmente busco um pouco de cada coisa. Busco na internet, há uns sites e blogs muito bons de ciências de bons professores. Muitas vezes tiro a forma de aplicar de lá e uso o livro didático como base. Tenho material meu também, que busquei (P24, 2020).

Faz-se importante considerar que as escolas públicas atendem a um coletivo variado de alunos, com diferenças sociais, étnico-raciais, das periferias e dos campos, sendo necessárias inovações e adaptações do currículo realizadas pelos professores. Arroyo (2013, p. 39) ressalta a necessidade de esses grupos terem práticas e projetos inovadores e reitera o fato de que, em relação às formas de viver que essas crianças carregam, possam surgir “[...] indagações ao campo do conhecimento que obriguem seus profissionais a serem criativos para descartar conhecimento morto e incorporar indagações e conhecimento significativo vivos, instigantes para a docência”.

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Dos 27 professores participantes da pesquisa, 17 utilizavam as propostas curriculares do município, documentos então vigentes na educação básica pública municipal de Petrópolis. Sobre as adaptações que eles realizavam nesse documento, 16 (dezesseis) afirmaram adaptar o documento à realidade dos alunos. Esse resultado pode ser compreendido pelo fato de a pesquisa ter sido realizada no quinto distrito do município e por não terem sido consideradas as diferenças em cada distrito na elaboração da proposta curricular. Trata-se de um único documento com uma listagem de direitos de aprendizagem e objetivos a serem desenvolvidos. Para P26, é importante que o currículo esteja relacionado à cultura do aluno: “[...] Muitas vezes o currículo conta uma história que o aluno nunca vivenciou e nem vai vivenciar, e não faz parte do cotidiano dele”. Para esse docente, o currículo “[...] deveria ser estruturado com a realidade do aluno, da vivência dele” (P26, 2020). Arroyo aponta a importância de

Práticas docentes que alargam concepções de conhecimento e de direito ao conhecimento na medida em que põem o foco nos educandos e suas vivências, que alargam fronteiras restritivas que não fogem de ensinar os conhecimentos curriculares, mas se sentem forçados a transcendê-los (ARROYO, 2013, p. 32).

Para P1, não há um documento oficial que oriente o trabalho docente voltado à realidade dos alunos. Ela aponta a influência das avaliações externas e de documentos que prescrevem uma lista de conteúdos a serem ensinados:

A BNCC, por mais que tenha vindo para ficar nosso país todo igual, não vejo isso. A gente muda de documentos, mas a gente ainda está ficando preso e não trabalhando a realidade. Tanto é que, quando recebemos as provas externas, continuamos naqueles documentos e naquela listagem de conteúdo, que a gente sabe da nossa realidade. Acho que é o grande problema. Nós precisamos de um Norte, mas acho que ainda não chegamos aonde queríamos, não (P1, 2020).

Em relação às mudanças nos currículos, Sacristán (2017) destaca que apenas renovar um documento curricular não é suficiente para mudar substancialmente a realidade nas escolas. É preciso que haja uma mudança qualitativa na educação para que, de fato, ocorra uma transformação na realidade dessas crianças.

Sobre a influência da BNCC no currículo das escolas, as/os respondentes indicaram a BNCC como documento de organização dos currículos. Alguns professores sinalizaram aspectos positivos do documento:

Haverá uma nova organização mais adequada a todos os educandos (P1, 2020).
Será mais dinâmico, com maior influência na realidade da escola, do aluno (P2, 2020).
As propostas da BNCC deixarão o currículo mais dinâmico, moderno, pois permitem o uso de ferramentas que fazem parte da vida do educando, como por exemplo, o celular (P4, 2020).
A BNCC traz contribuições que garantem os direitos de aprendizagem, reduzindo desigualdades sociais, definindo metas para o todo o País (P10, 2020).

Por ter caráter normativo, a BNCC é a referência nacional para a construção das propostas curriculares de Estados, Municípios e do Distrito Federal. Mas se considera que somente a implantação de novos documentos curriculares não garante melhor aprendizagem dos alunos. São necessários investimentos na formação do professor e na melhoria de suas condições de trabalho, além de estudos para adaptar o currículo à realidade social e cultural dos alunos.

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Sacristán (2017) salienta a necessidade de ressignificar um documento curricular, oportunizando a todos o acesso à cultura e à aprendizagem, preparando essas crianças para a vida exterior às aulas:

Indubitavelmente, o currículo para todos com um núcleo comum na educação obrigatória exige recolocar o sentido e o conteúdo da aprendizagem e do rendimento escolar nas instituições escolares, abrindo seu significado a diferentes sentidos da cultura para que todos tenham oportunidades de encontrar mais referenciais nela e de se expressar mais diversificadamente, segundo suas possibilidades (SACRISTÁN, 2017, p. 65).

Em relação à implantação de novos documentos curriculares, Arroyo (2013) admite a necessidade de repensar as formas de organização tanto do conhecimento quanto dos tempos de trabalho:

As diversas resoluções que fixam diretrizes curriculares têm avançado muito na incorporação de princípios, valores e concepções avançadas de educação, de percursos formativos e de aprendizagem, mas têm dificuldade de inovar nas formas de organização dos conhecimentos e da organização dos tempos e do trabalho É o núcleo duro, resistente (ARROYO, 2013, p.38).

Segundo esse autor, as políticas nacionais e estaduais de avaliação soterram o sentido inovador desses documentos curriculares. Para Cândido e Gentilini (2017, p. 329), a escola não pode apenas colocar o documento em prática, mas precisa ter autonomia para “[...] estudar a melhor proposta de trabalho frente à realidade de seus estudantes”, uma vez que o currículo não pode estar separado do seu contexto social.

Lopes (2018, p. 25) adverte que a BNCC é um documento que estigmatiza a escola como lugar onde não se ensina, que precisa de um documento para suprir o que falta nela e, quanto mais se valoriza a BNCC, mais se acentua essa imagem homogeneizante e negativa da escola. Para a autora, a questão do currículo das escolas vai muito além de um currículo igual para todos. Ela assim considera:

Não é necessário que todas as escolas tenham o mesmo currículo: o currículo precisa fazer sentido e ser construído contextualmente, atender demandas e necessidades que não são homogêneas. Sujeitos diferentes não produzem, nem mobilizam os mesmos saberes, não se inserem nas mesmas experiências de vida, não constroem os mesmos projetos de futuro (LOPES, 2018, p. 25).

Ao serem questionados sobre quem são os profissionais responsáveis pela elaboração dos documentos curriculares trabalhados nas escolas do 5º Distrito, quatro professores afirmaram que não há participação dos docentes dessas escolas na elaboração dos documentos:

E temos recebido isso pronto vindo de cima para baixo, no caso a Secretaria de Educação define essa questão do currículo e a gente vai aplicando isso no dia a dia. Então lá eu tenho e trabalho com essa realidade, um currículo pronto (P27, 2020).
É, eu recebo o currículo pronto. Na verdade, a gente não participa, não. Trabalho lá há um ano e já recebi pronto o currículo (P24, 2020).
Nós já temos lá a proposta que a gente segue e agora temos seguido a BNCC, foi pedido para a gente seguir a BNCC. É algo pronto e a gente só vai adaptando de acordo com a realidade (P1, 2020).
Então, esse currículo chega pronto e nós, professores da rede, temos pouca informação sobre como eles organizam esse currículo (P26, 2020).
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Nos relatos desses professores sobressai a ideia de que as propostas curriculares são elaboradas em outras instâncias e não na escola, sem a participação dos docentes. Isto parece indicar que esses conhecimentos podem não ter relação com as necessidades daquela comunidade, pois não foram pensados para aquele grupo especificamente, e que adaptações foram realizadas visando às necessidades e realidades dos educandos em geral.

Para Apple (2013) é preciso refletir acerca de quais conhecimentos fazem parte desses currículos e quem são os seus autores. Ele questiona a ideia de o conhecimento de alguns grupos fazer parte do currículo, enquanto a história e a cultura de outros grupos são descartadas: “[...] revela algo extremamente importante acerca de quem detém o poder na sociedade”. Para o autor, “[...] quer gostemos ou não, um poder diferencial intromete-se no âmago das questões de currículo e de ensino” (APPLE, 2013a, p. 53).

É relevante que essas questões curriculares sejam discutidas no âmbito das escolas e as propostas curriculares sejam elaboradas com a participação das/os docentes e outros agentes educacionais, atendendo às diferentes realidades dos educandos e oportunizando aprendizagens.

Conclusão

A análise apontou noções de currículo relacionadas à organização dos conteúdos, aprendizagens, programas e experiências dos alunos na trajetória escolar. Apesar de os professores perceberem a relevância de que fossem incorporadas nos currículos as necessidades locais dos alunos, prevalece uma visão voltada aos objetivos e competências de um ensino com base tecnicista. As Propostas Curriculares de Petrópolis são entendidas por alguns professores como o próprio currículo da escola. A análise também indicou que, para as/os professoras/es, não havia construção coletiva do currículo; eles afirmaram realizar adaptações para que a proposta atendesse aos alunos nas suas realidades sociais e culturais.

Constata-se a necessidade de discussões no ambiente escolar para estimular práticas inclusivas e diversificadas que ajudem a ampliar os saberes dos alunos; no entanto, sem impor conhecimentos desconectados de sua realidade sociocultural. Ressalta-se a importância de promover reflexões sobre currículo nos espaços escolares, desnaturalizando-o, considerando que é um artefato social, econômico e cultural. É importante que este seja construído coletivamente nas escolas, com o envolvimento de seus atores sociais.

Os resultados desta investigação contribuem para a pesquisa na área, com reflexões sobre como professores que lecionavam no ensino fundamental no município de Petrópolis compreendem a produção curricular nas escolas. Esperamos que estes resultados possam subsidiar a realização de outros estudos e reflexões sobre o currículo escolar.

Agradecimentos

As autoras agradecem o apoio financeiro da FAPERJ.

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