VOLTAR À COLEÇÃO ISBN:978-65-997623-6-9
Volume 4

Experiências na educação básica

Práticas de formação e metodologias de ensino

Ações de insubordinação criativa identificadas
na utilização do lúdico em aulas de matemática

AUTORES
Gabriela Félix Brião
Luciane Lage Pazito
Lorena Rosa Branquinhoo
Bárbara Conceição da Silva
Bruno de Carvalho Pereira
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1. Introdução

Há professores que não se adaptam às inúmeras tentativas de padronização do trabalho docente: livros didáticos “apostilados” (material resumido de baixa qualidade), normas curriculares que não respeitam o desenvolvimento individual do estudante, avaliações massificadas, entre outras. O trabalho com o lúdico em sala de aula, aceito como convite para o jogo, se contrapõe às ideias pré-fabricadas (padronizadas), vez que trabalha com regras próprias alheias à realidade imediata. Muito se sabe acerca dos benefícios da utilização do lúdico para a aprendizagem da matemática, por exemplo, o desenvolvimento de estratégias de resolução de problemas, a participação ativa do aluno na construção do seu próprio conhecimento; ou ainda a promoção de tomadas de decisões e sua avaliação. (GRANDO, 2000). Contudo, ainda há impedimentos para a plena utilização do lúdico em aulas de matemática. Para Emerique (1999, p. 189), a tarefa de trazer o lúdico para a sala de aula não tem se revelado fácil, pois: “somos, desde os primeiros anos de vida, imersos numa cultura antilúdica que assim exige: ‘deixe de brincadeira!’; que afirma: ‘brincadeira tem hora!’; que culmina com a fala dos professores: ‘vamos parar de brincar que vai começar a aula’”.

Ao professor que opta por se rebelar a impedimentos burocráticos e/ou regulatórios que restringem sua ação educativa, avaliando esta a melhor forma de garantir a aprendizagem de seus alunos e o fazendo de forma ética e criativa, diremos ser ele adepto de atos de insubordinação criativa (subversão responsável). As ações de insubordinação criativa podem, inclusive, ocorrer em atividades lúdicas, pois ainda há a perspectiva de que o jogar e o brincar são algo de menor importância. Ao contrário deste entendimento, a ludicidade constitui um “recurso privilegiado para a motivação e o comprometimento com o processo de ‘ensinagem” (EMERIQUE, 1999, p. 196).

Sobre tendências de pesquisa em Educação Matemática, Assemany (2020) faz observações no sentido de que a Educação Matemática Crítica, a Etnomatemática e a metodologia de ensino por tarefas exploratórias ou investigativas já propunham um movimento de insubordinação criativa, mesmo antes do próprio termo insubordinação criativa ser cunhado. A partir daí, nos perguntamos se esse movimento de utilização da ludicidade, como proposta de ensino, mas também ambiente fértil para investigações, pode apresentar ações de insubordinação criativa por aquele que elege esse tipo de trabalho em sua prática docente. Assim, o objetivo desta pesquisa é buscar indícios da presença de ações de insubordinação criativa de professores que utilizam metodologias de ensinagem, adotando o lúdico na sala de aula. Para tanto, analisamos duas práticas profissionais distintas: uma no início do Ensino Fundamental e outra ocorrida no ano final do mesmo segmento de ensino.

A metodologia de produção dos dados foi a escrita dos sujeitos da pesquisa: professoras da educação básica e coautoras deste capítulo, contendo a narrativa dos episódios em sala de aula a serem analisados. A convite dos pesquisadores, duas professoras, autoras deste artigo, narraram práticas pedagógicas que consideram subversivas responsáveis.

Para a análise das narrativas, foram utilizadas, atitudes identificadas em pesquisas anteriores sobre insubordinação criativa. Como resultado da investigação, encontramos diversas ações de subversão responsável que tentamos relacionar às categorias descritas na literatura. Observamos também, no contexto educativo apresentado pelas professoras, atos inovadores em relação aos textos seminais brasileiros sobre o tema.

Este relatório de pesquisa contém breve embasamento teórico no próximo tópico. Em seguida, serão apresentadas as narrativas, a análise dos resultados, as discussões e as considerações finais.

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2. Referencial teórico

No intuito de fugir do tradicional, consideramos o potencial que determinadas metodologias de ensino têm para oportunizar ações de insubordinação criativa.

Conjecturando que tais ações podem surgir de relatos de professores ao agirem dessa maneira, optamos pela metodologia de ensino lúdica como tema para a nossa investigação.

A escola tem sido palco de diversas buscas por transformações. Contudo, para Emerique (1999), a ludicidade ainda acontece de forma tímida no meio escolar que, em geral, se mantém tradicional, técnico, cientificista. Para esse autor, a sociedade mantém algum receio com o brincar, considerando-o algo “infantil”, pouco sério. Há certa dificuldade em romper com o pensamento dual, ou isto ou aquilo, e pensar “por quê não isto e aquilo?” Ou seja, brincar e fazer coisas sérias.

D’Ambrosio (1993) listou algumas características que o professor de matemática do século XXI deveria desenvolver, entre elas a constituição de um ambiente propício à aprendizagem matemática. Percebe-se a imensa diferença de uma aula realizada em ambiente lúdico e aquela elaborada sem esse compenente, o que é considerado ensino tradicional. Pressupõe-se dessa forma, que o ambiente propício citado pela autora seja aquele promovido pela criatividade do professor. Entendendo-se a ludicidade como uma das maneiras de se ensinar matemática, ela se torna parte integrante dessa face criativa do docente. Com atividades lúdicas, sejam jogos ou brincadeiras, o aluno pode atuar sobre o objeto como sujeito epistêmico, ativo/interativo no processo de construção do conhecimento de forma prazerosa. Para Piaget e Inhelder (1989, p. 5), “os jogos não são apenas uma forma de divertimento, mas são meios que contribuem e enriquecem o desenvolvimento intelectual”. Além disso, o professor, ao ensinar Matemática, o faz, conforme (MOURA, 1992, p. 47).

[...] com um objetivo determinado. Isto exige a intencionalidade por parte do educador. [...] Ao optar pelo jogo como estratégia de ensino, o professor o faz com uma intenção: propiciar a aprendizagem. E ao fazer isto tem como propósito o ensino de um conteúdo ou de uma habilidade. Dessa forma, o jogo escolhido deverá permitir o cumprimento deste objetivo.

Existe a intencionalidade do professor ao levar o brincar para sua sala de aula. Além disso, para que o jogo se concretize literalmente, ou seja, haja uma ação efetiva do sujeito sobre o objeto, o jogador precisa estar motivado. Faz-se necessário estimular nele a vontade de jogar, de competir, de brincar. Somente o jogo em si não estabelece a ludicidade. O sujeito precisa estar engajado naquele momento para que se concretize e/ou realize a ação e se estabeleça efetivamente um ambiente lúdico. Consequentemente, dar-se-á o desenvolvimento do saber matemático e a construção do conhecimento.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) trazem o jogo como recurso capaz de instigar e despertar o interesse do aluno, desafiando-o, por se tratar de uma abordagem menos impositiva (ainda que com regras próprias). Ademais, auxilia-o no desenvolvimento cognitivo, emocional, moral, social e no raciocínio lógico, contribuindo para a construção do conhecimento.

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2013) e a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) apontam a ludicidade como recurso essencial à Educação Infantil. Contudo, o brincar vai perdendo espaço ao longo da Educação Básica, principalmente no que se refere ao ensino da matemática.

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A insubordinação criativa, embora seja um conceito conhecido dos docentes em geral – há inclusive aqueles que acreditam que todos somos insubordinados (LONGO, 2015) –, vem sendo estudada a partir do início da década de 1980. No Brasil, após duas conferências internacionais acerca do tema, podemos dizer que o assunto está avançando nos estudos teóricos dos pesquisadores em Educação Matemática. Segundo Barbosa e Lopes (2020), a insubordinação criativa é vista

[...] como um conceito que sensibiliza os profissionais para entender o outro e o contexto em que está inserido, honrar o compromisso assumido no exercício das atividades diárias, mobilizar saberes de forma a proteger a integridade dos estudantes e dos espaços formativos, neutralizar os efeitos desumanizadores da autoridade burocrática (p. 261).

Em 2014, Beatriz D’Ambrosio e Celi Lopes trouxeram a ideia ao Brasil considerando-a sinônimo de subversão responsável, termos estes utilizados nas pesquisas em enfermagem. Para delimitar o problema de investigação, iremos listar algumas atitudes que podem ser consideradas, conforme literatura pertinente, atos de insubordinação criativa. Para esta pesquisa, será fundamental relacionar os indícios encontrados nas narrativas (com práticas lúdicas) contrapostas com as manifestações de insubordinação criativa discutidas na literatura. Para tanto, destacamos dois trechos de textos que consideramos seminais.

No primeiro trecho, Beatriz e Celi destacam o pensamento de Rochelle Gutiérrez (2013). Para Gutiérrez, o conhecimento político do professor é fundamental nas tomadas de decisões em sala de aula que corroborem para a justiça social e que inicia a pesquisa da Insubordinação Criativa, em 2013, nos Estados Unidos.

[...] no ensino da Matemática, as insubordinações criativas dos professores manifestam-se por meio dos seguintes atos: criar argumentações alternativas para explicar as diferenças de aproveitamento dos alunos, rompendo com a generalização normalmente presente nos discursos de análise dos resultados deles; questionar as formas como a Matemática é apresentada na escola; enfatizar a humanidade e a incerteza da disciplina de Matemática; posicionar os alunos como autores da Matemática; e desafiar os discursos discriminatórios sobre os alunos (D’AMBROSIO; LOPES, 2015, p. 3-4).

O segundo trecho está em um livro de Beatriz D’Ambrosio e Celi Lopes, no qual podemos ver uma pesquisa narrativa onde o resultado mostra que:

As professoras desenvolveram projetos, inseriram tecnologias, desconsideraram a supremacia de alguns conteúdos em detrimento de outros, problematizaram situações diversas, consideraram a cultura infantil e juvenil e privilegiaram os interesses dos alunos (D’AMBROSIO; LOPES, 2014, p. 100).

Dada a existência de subjetividades intrínsecas ao processo narrativo dessas práticas autorais, as pesquisas que tratam do tema devem ser qualitativas, exceto em casos específicos. Há uma busca pelo conhecimento que possibilite mergulhar no cotidiano humano, considerando-se tanto o rigor da pesquisa científica, quanto a complexidade que uma narrativa pode trazer.

3. Metodologia

As narrativas a seguir foram relatadas por duas autoras deste artigo. Duas práticas foram realizadas em escolas de aplicação distintas (escolas vinculadas a universidades – campos de estágio e de pesquisa) no Estado do Rio de Janeiro. O primeiro relato traz um jogo de faz de conta e o segundo relato, considerações sobre um jogo avaliativo.

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3.1 O mercadinho

Em 2012, tivemos a oportunidade de fazer uma educação matemática diferenciada para estudantes do primeiro ano do Ensino Fundamental. Como professoras alfabetizadoras, propusemos atividades embasadas na ludicidade, pensando na construção da aprendizagem de forma divertida e suave. Sob esta perspectiva, e apoiadas na pedagogia de projetos, muito importante para a Educação Matemática Crítica (SKOVSMOSE, 2000), realizamos o “mercadinho sustentável”.

Iniciamos com a sensibilização dos alunos e suas famílias quanto ao consumo consciente. Solicitamos o envio de embalagens de produtos utilizados no cotidiano. Semanalmente, recebíamos mercadorias para o “negócio” que ensejava se consolidar. O grupo trabalhava os valores dos produtos nos encartes de jornal, seguindo o conceito de pesquisa de preço, promoção, custo-benefício. Itens novos e diferentes eram apresentados por quem os trazia na “rodinha”, despertando a necessidade de novas pesquisas e aumentando o interesse das crianças. Os artigos similares eram comparados quanto ao preço, quantidade e funcionalidade, estabelecendo assim a noção de custo-benefício.

Cada criança confeccionou sua sacola ecológica para a ida ao mercado. As famílias relatavam o envolvimento das crianças em participar das escolhas dos produtos no momento de fazer as compras; os encartes eram o pano de fundo dessa dinâmica. A matemática estava sendo utilizada para auxiliar na tomada de decisões.

O “mercadinho” estava bem abastecido de produtos, logo, precisávamos iniciar a operacionalização das compras e surgiu a ideia de criar uma moeda para a comercialização dos itens. Os alunos desenharam, votaram e escolheram a moeda que utilizariam. O cartão de crédito também foi lembrado e cada aluno possuía o seu devidamente personalizado. Confeccionaram suas carteiras (de dinheiro) com embalagens de leite revestida de diferentes materiais disponíveis. O “reutilizar” estava instalado e as crianças comportavam-se como formiguinhas estocando em seus formigueiros. Tudo era trazido para a sala de aula e discutido no grupo; foram feitas listas de compras, cartazes de promoção e muitos cálculos.

A turma foi dividida em grupos de trabalho e, enquanto uns precificavam as mercadorias, outros organizavam as prateleiras, compravam e atendiam ao grupo. Surgiram situações-problema, como: mesmo artigo com dois preços diferentes, troco, preferência por algum item e outros com baixa procura. Esse momento foi decisivo para se repensar a política de vendas. O que fazer com dois preços diferentes? Como vender os itens de baixa procura? Como lidar com a alta demanda de algum produto? Questões como essas foram debatidas, soluções foram propostas, leis pesquisadas, e o “mercadinho” só crescia.

O projeto não se esgotava; houve diversos desdobramentos: alunos de outras turmas desejavam participar e contribuíam com diversas mercadorias; os responsáveis ficavam “desesperados” com a interferência dos filhos nas finanças das famílias; crianças se apresentavam como verdadeiros empreendedores e a cobrança da aprendizagem formal foi diminuindo devido à força dos argumentos, tanto dos professores quanto dos alunos.

Houve momentos em que a coordenação preocupava-se com o rumo que tal empreendimento estava tomando. Afinal, não havia muitas produções escritas a serem apontadas na pasta individual de atividades dos alunos. Mas eles se identificaram tanto com a proposta que a professora de artes cedeu às solicitações das crianças e trabalhou plasticamente alguns itens que não poderíamos viabilizar nas embalagens. Surgiu a parte de hortifruti e açougue. O “mercadinho” agora era da escola toda e a curiosidade dos demais alunos não podia ser contida.

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3.2 Avaliando avaliações

Em 2014, em uma turma do último ano do Ensino Fundamental, foi realizado experimento avaliativo. Propôs-se aos estudantes a prova individualizada na qual cada um produziria cinco problemas com o gabarito comentado para a aula seguinte. Havia mais um pedido: além do conteúdo combinado, os estudantes deveriam escolher questões que conseguiriam acertariam, ou seja, cada um criaria uma avaliação na qual sua nota seria máxima, isto é, dez.

Os estudantes ficaram ansiosos com essa avaliação, ainda assim produziram o que a professora pediu, mesmo sem saber o que aconteceria. Na aula seguinte, a professora começou a chamar um por um à sua mesa. Ela ainda não havia decidido que eles fizessem a prova na qual tirariam dez. A intenção era interagir com cada aluno e sua respectiva avaliação, construindo um ambiente avaliativo que a envolvia e também o aluno, buscando-se inferir o que ele achava que sabia. Esse foi um processo longo; durou várias semanas. A proposta da professora era sempre, com curiosidade, analisar as provas nota dez de cada aluno e realizar perguntas do tipo “e se”:

  1. E se mudássemos este número de lugar, você ainda tiraria dez?
  2. E se acrescentássemos esta potência aqui, você ainda tiraria dez?

Essas perguntas eram respondidas prontamente: sim, o que era verificado na semana seguinte com o gabarito refeito. Dessa forma, a professora sentia-se uma verdadeira investigadora, tentando compreender como o estudante matematizava. É interessante pensar que os estudantes também estavam investigando/avaliando o seu saber matemático.

Como um dos tópicos da avaliação era produtos notáveis, um dos estudantes criou a seguinte questão: calcule (1 + 1)² . Em seu gabarito ele mostrava sua maneira de calcular:

(1 + 1)² = 1² + 2*1*1 + 1 = 1 + 2 + 1 = 4

A professora respeitando o raciocínio do estudante, disse que resolveria este cálculo de outra maneira:

(1 + 1)² = (2)² = 4.

Depois disto perguntou: e se colocássemos um x no lugar deste 1 – já que sabe fazer para o 1, saberia fazer para uma variável qualquer, conjecturava a professora –, você ainda tiraria dez?; e se colocássemos um y no lugar do outro número 1, você ainda tiraria dez? Sempre obtendo respostas afirmativas, isto durou semanas, até que o aluno afirmou que tiraria dez na questão “repaginada”: calcule (x + 3y²)²

A experiência foi lúdica, uma vez que o jogo avaliativo tinha suas regras próprias e “tirar dez” era a única opção. A professora atuava como a “colaboradora do ainda tiraria dez, se...”. O término do jogo se dava quando os estudantes finalmente realizavam sua prova e atingiam a nota máxima. Era o dez mais consciente de todo o processo avaliativo.

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4. Resultados

Como o objetivo desta pesquisa era analisar a presença de ações de insubordinação criativa de docentes que trabalham o lúdico em sua sala de aula, faremos inicialmente uma análise de cada narrativa. Em seguida, discutir-se-ão os resultados encontrados nesta análise, engendrando o que foi observado nas duas práticas.

A prática do mercadinho remonta a um tempo no qual a educação financeira ainda estava começando a ser proposta nas escolas, assim como a educação ambiental. Ambas com suas preocupações e com uma economia mais sustentável que valoriza o “repensar, reduzir, reusar e reciclar”, ou seja, os 4 R’s.

A ludicidade está presente em todo o projeto, no qual as crianças bem jovens são transportadas para outro ambiente, este recheado de tomadas de decisões. Vale salientar que o envolvimento das famílias no processo fez com que a educação se desse de forma estrutural.

Pudemos observar inúmeros atos de insubordinação criativa na narrativa da professora, sendo: o envolvimento das famílias; o projeto Mercadinho em si; a discussão de educação financeira e educação ambiental de forma lúdica; o enfrentamento à resistência da coordenação, inclusive trazendo mais uma professora aliada para o projeto; a interdisciplinaridade; a confecção de sacola ecológica em um tempo no qual não era prática corrente; a criação de uma moeda e um cartão de crédito próprios; o engajamento e a valorização de ideias dos alunos; a não-aderência ao currículo proposto linearmente; a tomada de decisões por crianças pequenas estimulando sua autonomia.

Quanto à narrativa do jogo avaliativo, Cury (2018) traz a análise das respostas dos alunos como metodologia de ensino, encarando o temido erro como algo natural e intrínseco ao processo de ensino-aprendizagem. Para a pesquisadora, uma solução correta pode ocultar incompreensões, um erro pode mostrar aquilo que o aluno compreendeu até o momento, ou seja, a sua matemática viável. Indo além da dualidade do certo ou errado, analisar as produções escritas dos alunos nos permite valorizar o percurso e não apenas o resultado final.

Ao ler uma produção escrita do aluno, o professor “ouve a sua voz” e pode optar por “ouvir acreditando” que há algo de viável, buscando compreender o raciocínio lógico desenvolvido. Essa escuta possibilita ao professor construir modelos baseados na matemática viável do discente, instigando-o de maneira que viabilize a construção do conhecimento mais amplo (D’AMBROSIO, 2013). Ao sugerir mudanças na proposta de avaliação feita pelo aluno, a professora desafia-o pouco a pouco, permitindo-lhe perceber o quanto ele sabe.

A investigação da matemática viável do aluno também permite que ele se sinta participante ativo do processo e que suas produções sejam valorizadas; libertando-o do receio em compartilhar seus pensamentos e tornando-o mais orgulhoso, cuidadoso e confiante ao expô-los. Além do desenvolvimento pessoal do aluno, o “ouvir acreditando”, ação essa proposta como subversiva, contribui para um ambiente mais agradável e respeitoso em que todos podem se expressar sem julgamentos, buscando novas compreensões e caminhos.

Para essa prática, listaremos as ações de insubordinação criativa observadas: produção da própria avaliação; falta de preocupação com nota; avaliação como processo e não como fim em si mesma; valorização da produção escrita dos alunos; professor como pesquisador da matemática viável do seu estudante; aluno como investigador do seu próprio conhecimento; professora como colaboradora do processo; criação de um jogo avaliativo diferenciado; autoavaliação do estudante; valorização do erro como etapa de aprendizagem.

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A insubordinação criativa vem sendo investigada desde 2013 na Educação Matemática. Há muitas situações relatadas na literatura sobre profissionais que assim diagnosticam: frequentemente, para realizar um bom trabalho junto aos alunos, é necessário exercer a autonomia tomando atitudes subversivas responsáveis.

A educação não parece combinar com engessamentos e padronizações. Consideramos que as ideias devem fluir e encontrar espaço amplo de debate para que sejam estimuladas a se desenvolverem. Para Beatriz D’Ambrosio (2015), o que as crianças precisam é serem encorajadas a participar do mundo de forma ativa, colaborando para a resolução dos problemas que afligem a humanidade.

Quando vemos duas professoras em um contexto mais autônomo optarem por quebrar seus próprios paradigmas em suas práticas educativas, rompendo gaiolas profissionais, percebemos ações de auto-insubordinação criativa (BRIÃO, 2017). Elas afirmaram considerar os episódios narrados como de subversão responsável. Essas quebras internas podem ser uma boa explicação para os atos das professoras, que não viram tanta dificuldade em lidar com autoridades burocráticas. As docentes ousaram inaugurar uma nova sala de aula, até mesmo para elas próprias.

Conseguimos encontrar diversas evidências de insubordinação criativa nas ações das narradoras. Talvez a criatividade das professoras tenha encontrado lugar propício para aflorar; talvez a relação com seus alunos tenha se dado com tanta riqueza que fez surgir a ideia de um trabalho assim. O processo educativo é complexo (D’AMBROSIO; LOPES, 2015) e não se pode encapsulá-lo em uma bolha. Elas optaram por deixar fluir, com a colaboração ativa dos estudantes; foco na relação professor-aluno, sem dúvida, tem um potencial enorme para a criação de possibilidades de aprendizagem (BRIÃO; PAIVA, 2017).

Vimos que, para Gutiérrez (2013), os processos de insubordinação criativa docente estão mais ligados à luta política por justiça social. Para D’Ambrosio e Lopes (2014), estas ações se dão em ambientes com muita cumplicidade entre professor-aluno, com escolhas éticas pelo que se entende como a melhor ação educativa para o grupo. De toda forma, as ações de subversão responsável dão-se em contexto conflituoso, no qual existem forças limitantes buscando padronizações e, como já dissemos, deveria valer o julgamento do professor junto aos alunos. Este é sempre um processo em construção entre o professor e seus alunos, no qual há revisões, adequações, valorizações, escuta.

No relato do “Mercadinho” observamos o desenvolvimento de um projeto que desconsiderou a supremacia de alguns conteúdos em detrimento de outros; problematizaram-se situações diversas e valorizaram-se os interesses dos alunos seguindo a cultura infanto-juvenil, o que pode ser percebido nas intensas demonstrações de interesse pela escola como um todo (D’AMBROSIO; LOPES, 2015).

Na narrativa sobre o jogo avaliativo, a professora valorizou as diferenças de aproveitamento dos alunos conferindo nota máxima para todos de antemão. Sem dúvida, houve um questionamento quanto às formas de apresentação da Matemática em uma sala de aula. Houve também um desafio expresso a discursos discriminatórios sobre os alunos, posicionando-os como autores da matemática, para dar espaço à produção de forma escrita das próprias questões que saberiam resolver (GUTIÉRREZ, 2013).

A pesquisa superou nosso objetivo inicial ao demonstrar ações subversivas responsáveis não-sinalizadas na literatura seminal brasileira sobre o tema. Observamos ações que buscam identificar e resolver problemas de nossa sociedade nas aulas de matemática, o envolvimento da comunidade escolar extrapolando os muros da escola e a promoção de autorreflexão do processo avaliativo meritocrático que valoriza notas, em vez de ideias.

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5. Conclusão

Compete observar que, por se tratar de criatividade para agir ao encontro de métodos e conteúdos ensinados na licenciatura, assim como de autoridades burocráticas, a insubordinação criativa é subordinada ao olhar do agente. Este, sob sua perspectiva, pode considerá-la insubordinação ou não. Deve-se atentar para o seguinte: que o que é uma insubordinação criativa para uns, pode ser corriqueiro para outros dada a complexidade da tarefa educativa.

O objetivo deste trabalho foi buscar indícios de práticas docentes insubordinadas criativas quando utilizada a ludicidade como metodologia de ensinagem. Foram analisadas duas narrativas de professoras que afirmam considerar os episódios descritos como insubordinação criativa ao que está posto. A partir daí, evidências encontradas foram cruzadas com outras categorizadas na literatura pertinente. Acreditamos que este trabalho traga não somente relatos de práticas insubordinadas criativas, como também a possibilidade de compreender o processo da docência mais autoral, considerando-se a narrativa de seus agentes.

Podemos dizer que é difícil capturar momentos tão criativos quanto aqueles construídos em uma sala de aula respaldada pela valorização do grupo. Encontramos diversos indícios de insubordinação criativa, mas estes não foram unanimidade para o grupo de autores da pesquisa. Ao finalizar, gostaríamos de acrescentar que este trabalho foi construído de forma colaborativa por todos os pesquisadores.

Referências

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