História, cultura e biodiversidade no cerrado
- AUTORES
- Ana Isabel Ribeiro
- Maria Izabel Barnez Pignata
1. Apresentação
A pesquisa que, em parte, apresentamos nestas páginas, nasceu de múltiplas inquietações que fazem parte da nossa constituição enquanto sujeitos. Esse é um trabalho carregado de subjetividade porque nele assumimos a nossa postura enquanto sujeitos que habitam uma região de Cerrado bastante castigada pelas investidas do capital que destrói a natureza, penetra na cultura e expulsa campo. Mas, sobretudo, aqui nos colocamos como sujeitos de resistência que usam a educação como alternativa de diálogo, problematização, crítica e, quiçá, transformação.
A proposta de ensino que apresentamos aqui faz parte de uma pesquisa desenvolvida durante o mestrado profissional do programa de pós-graduação em Ensino na Educação Básica do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicado à Educação da Universidade Federal de Goiás (Cepae-UFG). Esta proposta compõe o produto educacional da pesquisa e foi aplicada no Colégio Estadual Maria Benedita Velozo, na cidade de Orizona, Goiás.
A escolha desse objeto de estudo guarda forte relação com a nossa preocupação, enquanto professoras da Educação Básica, em relação à abordagem que é dada ao tema durante o ensino médio, especialmente quando se analisa a matriz curricular do estado de Goiás (GOIÁS, 2013). Consideramos a necessidade de o ensino-aprendizagem problematizar melhor o tema Cerrado, valorizando os aspectos da sociedade e da sua biodiversidade e, durante este estudo, foi feito um esforço nesse sentido.
O suporte teórico da pesquisa vem especialmente da pedagogia de Paulo Freire, que defende que a indagação, a busca e a pesquisa fazem parte da prática docente (FREIRE, 1996). E assim como Freire (2016), entendemos a educação como uma forma de liberdade e humanização que parte do diálogo na busca pela liberdade. Nesse contexto, portanto é fundamental a discussão sobre o meio ambiente em que estamos inseridos. Entender o mundo, na nossa visão, é antes de tudo entender as relações culturais e ambientais das quais fazemos parte e é por isso que a intervenção que aplicamos e que propomos enquanto produto educacional traz o aluno como um sujeito ativo no processo de ensino aprendizagem.
Diante da preocupação com a degradação dos recursos ambientais e com a desvalorização da cultura, a pergunta de pesquisa foi se seria possível que uma abordagem pedagógica que relacionasse a cultura e a biodiversidade do Cerrado poderia contribuir para a aprendizagem crítica dos alunos do ensino médio.
A dissertação de mestrado apresenta na sua introdução as justificativas que nos levaram à escolha do objeto de estudo, o estado da arte da pesquisa sobre o Cerrado no ensino médio e os objetivos da pesquisa. Ademais, há quatro capítulos: no primeiro, discutimos a importância ecológica e social do Cerrado; no segundo, argumentamos a respeito da interferência do mercado na educação brasileira e goiana, além de tratarmos da pedagogia crítica e defendermos o seu uso no ensino de ciências; no terceiro, apresentamos a metodologia utilizada na intervenção pedagógica que é o produto educacional da pesquisa e, no quarto, apresentamos os resultados da pesquisa.
63A sequência didática é baseada na proposta metodológica de Delizoicov e Angotti (1990), que propõem uma dinâmica metodológica chamada: Três Momentos Pedagógicos, baseada nas concepções de educação de Paulo Freire. Os três momentos da dinâmica são: Problematização inicial, Organização do Conhecimento e Aplicação do Conhecimento.
1.1 Intervenção Pedagógica: a aplicação do produto educacional Sequência Didática-Cultura e Biodiversidade no Cerrado
Ciclo de Palestras: Duração - 3 aulas
Inicialmente pretendíamos sensibilizar os estudantes a respeito do objeto de estudo. Como era objetivo abordar o Cerrado sobre aspectos biológicos, geográficos, históricos e culturais, convidamos palestrantes de diferentes áreas para ministrarem palestras que abordassem esses aspectos. Além disso, conversamos previamente com os palestrantes para que buscassem a participação dos estudantes, instigando perguntas e esclarecendo dúvidas.
Todas as palestras foram ministradas no segundo horário (7h45 às 8h35) e, quando não coincidia com os horários de aula dos envolvidos no projeto, o professor responsável cedia seu horário para que os estudantes participassem.
A primeira palestra do ciclo foi ministrada no dia 5 de fevereiro, pela professora de Biologia, mestre em Recursos Naturais do Cerrado. Foi abordado o tema Biodiversidade do Cerrado, e, ao final, foram respondidos aos questionamentos sobre o tema. A palestrante deixou os estudantes bem à vontade e, mesmo durante a explanação, permitiu perguntas. Os alunos fizeram perguntas relativas à vegetação, quando foi mencionado ser o Cerrado uma floresta invertida, e ao fogo (Figura 1).
A segunda palestra do ciclo foi ministrada por um geógrafo, especialista em meio ambiente, no dia 6 de fevereiro, e o tema abordado foi Geografia do Cerrado. Inicialmente foi mostrado mapa dos biomas e discutiram-se os estereótipos associados ao Cerrado, muitas vezes descrito como uma “vegetação feia”. Ao falar das características do clima, citou o regime de chuvas, desmatamento, poluição e assoreamento.
Ao citar o rio Corumbá, como exemplo de rio que está sendo prejudicado pelas hidrelétricas, foi contestado pelos alunos e, diante disso, a questão se alongou. Ao final da palestra, falou rapidamente da nova área de desmatamento do Cerrado conhecida como Matopiba, área que engloba Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e da água no Cerrado e alertou para o risco de extinção do bioma e dos recursos hídricos (Figura 2).
A terceira palestra foi ministrada por um historiador, especialista em História do Brasil. Abordou a colonização do estado de Goiás e o povoamento do município de Orizona, bem como a formação dos povoados e a influência de algumas famílias e da Igreja católica no município. Nessa palestra, os estudantes fizeram muitas perguntas, especialmente relacionadas às famílias tradicionais que reivindicam a fundação da cidade (Figura 3).
Em todas as palestras houve participação dos estudantes, porém, na palestra sobre a história e cultura do município, eles se mostraram muito interessados e questionaram o palestrante. Devido a isso, a palestra, cuja duração estava prevista para 50 minutos, alongou-se por mais 20 minutos.
631.2 Visita ao Memorial do Cerrado.
Duração: 1 dia de campo
A visita ao Memorial do Cerrado, museu da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), foi acompanhada pela coordenadora da escola, os professores de biologia, geografia e por mim. Dos 77 estudantes participantes da pesquisa, apenas 47 viajaram à Goiânia para a visita ao museu.
Durante a visita, fomos acompanhados por uma monitora, estudante de geografia, que ficou responsável por apresentar-nos os espaços do museu. Optamos por iniciar a visitação pelo Museu de História Natural. A monitora narrou a história da evolução na Terra, enquanto mostrava painéis, fósseis, imagens que caracterizam as eras geológicas e aspectos sobre a evolução de animais e plantas. O cenário que mostra animais taxidermizados chamou bastante atenção dos estudantes, que quiseram fotografar e ficaram interessados em saber a espécie e como é feito o processo para deixá-los da forma como estão expostos no museu (Figura 4).
Já na Vila de Santa Luzia, enquanto a monitora apresentava os espaços e falava a respeito da história da colonização do Brasil e das cidades históricas do estado de Goiás, passamos por espaços que mostram casas antigas, escolas, comércio, jornais, igreja e bordel. A monitora falou da diferença entre o centro das vilas e a periferia (Figura 5).
Depois de conhecer a parte urbana da vila, fomos conhecer as réplicas das fazendas. Enquanto falava de como era o trabalho rural feito pelos escravos, com auxílio de animais, a monitora mostrava construções e objetos que representavam esse período da história de Goiás (Figura 6).
Posteriormente, fomos levados ao quilombo, onde pudemos ter uma ideia, a partir das explicações, de como era a vida dos negros que fugiam da escravidão. E, por fim, visitamos a aldeia indígena, que é uma réplica da aldeia Timbira, onde as ocas eram construídas formando um círculo (Figura 7).
Ao final, nos reunimos embaixo de uma mangueira, no final de uma trilha, onde agradecemos à monitora e conversamos a respeito daquilo que vivenciamos no museu.
1.3 O Cerrado na visão da população local
Preparação das entrevistas
Duração: 1 aula
Após as palestras com especialistas de diferentes áreas e visitado o Memorial do Cerrado, os estudantes já haviam tido contato com várias informações, de fontes científicas, sobre o Cerrado. Por tratar-se de uma pesquisa voltada para o mundo dos estudantes, a etapa seguinte levou-os a campo para dialogar com a população da cidade onde vivem.
65Nos dias 26 de fevereiro, nas aulas de biologia das três turmas participantes da pesquisa, o professor e eu conversamos com os estudantes sobre as etapas do projeto que já haviam acontecido e explicamos que a ideia agora seria entrevistar uma pessoa que morasse no município há mais de 40 anos, para que os questionassem sobre o Cerrado e a cultura local.
Posteriormente, pedimos que os alunos formassem grupos de até cinco estudantes e formulassem perguntas que seriam feitas durante a entrevista. Ao final da aula, reunimos os estudantes novamente para que as questões fossem socializadas e para elaboração de um questionário a ser usado em todas as entrevistas. Esclarecemos que, durante a entrevista, eles poderiam fazer novos questionamentos caso surgisse curiosidade sobre algum assunto abordado pelo entrevistado.
Explicamos aos estudantes para fazerem o convite à pessoa que gostariam de entrevistar e marcar um horário no contraturno das aulas para realizar a entrevista. Alertei-os de que os acompanharia nessas entrevistas. Terminadas as entrevistas, deveriam ser transcritas e editadas para apresentação em pôster para os colegas.
Foi entregue para cada grupo um modelo de pôster com uma formatação padronizada. A apresentação dos trabalhos foi marcada para o dia 18 de março de 2018.
1.4 Entrevistas
Duração: O prazo para a apresentação das entrevistas foi de três semanas.
No período entre 26 de fevereiro e 18 de março foram feitas e editadas para apresentação em pôsteres 17 entrevistas. Nesse período, acompanhei os estudantes nas entrevistas, realizadas de acordo com o roteiro prévio feito em sala de aula. Conforme nossa orientação, no decorrer da conversa, os estudantes faziam outras perguntas (Figura 8).
Além de acompanhar os estudantes nas entrevistas, os professores de biologia, geografia e eu nos dispusemos a orientá-los na edição delas e na formatação dos pôsteres. Alguns estudantes apresentaram mais dificuldades com os equipamentos (celulares e computadores), mas, ao final, todos conseguiram apresentar o trabalho no modelo proposto (Figura 9).
Os trabalhos foram apresentados no dia 19 de março de 2018, entre o 4.º e o 6.º horário de aula, no período entre as 9h35 e 12h para as turmas do 2.º ano. Os trabalhos foram apresentados por turma, iniciando com o 2.º ano “A” fazendo sua apresentação para os colegas do 2.º “C” e 2.º “B”. Em seguida, o 2.º “B” fez apresentações para os colegas do 2.º “A” e 2.º “C” e, por fim, os segundos anos “A” e “B” assistiram à apresentação do 2.º “C”. A socialização do trabalho foi importante para que os estudantes pudessem observar que os relatos sobre a ocupação dos espaços de Cerrado pela agricultura são coincidentes, assim como aqueles que dizem respeito às manifestações culturais do município.
1.5 Plantio de mudas
Quantidade de aulas: 1 aula
O plantio de mudas estava previsto para ocorrer como a última atividade, porém resolvemos antecipá-la por temer o fim do período de chuvas. Por isso, essa atividade foi feita no dia 22 de março, no segundo horário (entre 7h45 e 8h35). As mudas foram adquiridas em um viveiro da cidade.
66Os alunos foram reunidos na área escolhida e a professor de biologia recordou a palestra sobre biodiversidade do Cerrado e a importância daquela atividade, uma vez que as plantas que seriam plantadas naquele local são exemplares de espécies do Cerrado e serviriam para sombrear a área, diminuir a sensação térmica no local e manter espécies importantes de nossa flora (Figura 10).
O terreno onde foram plantadas as mudas é uma área do Colégio Estadual Maria Benedita Velozo. As covas foram feitas com auxílio de um voluntário adulto e os estudantes fizeram o plantio. Foram plantadas 20 mudas das seguintes plantas: pequi (Caryocar brasiliense), guapeva (Pouteria ramiflora), cagaita (Eugenia dysenterica), caraíba (Tabebuia aurea) e ipê amarelo (Tabebuia alba). Durante o ano, o cuidado com as mudas ficou a cargo dos funcionários da escola responsáveis pela limpeza de pragas e controle de formigas.
1.6 Conservação do Cerrado
Duração: Esta atividade demandou uma aula para explicação de seus objetivos, uma semana de prazo para os estudantes confeccionarem o trabalho e uma aula para apresentação.
No dia 23 de março de 2018, na disciplina de Arte, nas três turmas do 2.º ano, a professora pediu que os estudantes fizessem uma apresentação com recursos de áudio e vídeo com o tema Conservação do Cerrado. A professora relembrou as atividades já desenvolvidas no projeto sobre a Biodiversidade e Cultura do Cerrado, como palestras, visita ao Memorial do Cerrado, entrevistas e o plantio de mudas e pediu que utilizassem o aprendizado dessas etapas para fazerem uma apresentação que tivesse uma mensagem de conservação. Ela sugeriu um programa do Windows, Windows Movie Maker, e promoveu uma oficina, em sala de aula, mostrando o funcionamento do programa. Os estudantes sugeriram a utilização de um aplicativo de celular (Viva Vídeo) que apresenta as mesmas funções do Movie Maker e o uso desse aplicativo foi autorizado por ela.
Os vídeos foram apresentados no dia marcado, e observamos que houve demonstração de grande preocupação com o desmatamento, as queimadas e com a água. Embora o material reproduza muitas imagens retiradas da internet e frases da internet, observamos que os estudantes demonstram preocupação com os problemas ambientais do Cerrado e propuseram diminuição do desmatamento, fiscalização e cuidado com o meio ambiente.
1.7 Forma de acesso
O produto educacional está disponível no portal eduCAPES, no link abaixo: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/554255
2. Considerações finais
O desafio a que nos propusemos era discutir a cultura e a biodiversidade do Cerrado tendo os alunos do ensino médio como participantes e protagonistas do processo de ensino-aprendizagem. Durante toda a pesquisa nos empenhamos no trabalho conjunto com os estudantes porque não pretendíamos, de modo algum, a reprodução do modelo bancário de educação. E, ao final da pesquisa, percebemos que a nossa proposta teve resultado positivo para a aprendizagem dos alunos.
Os próprios alunos, em entrevistas de grupo, avaliaram os recursos utilizados na sequência didática como importantes para a sua aprendizagem e consideraram que essa estratégia ajudou na conscientização a respeito do Cerrado.
67Acreditamos ainda que a sequência didática que foi proposta e que está disponível no link da eduCAPES pode ser desenvolvida em qualquer escola que esteja inserida numa região de Cerrado. Além disso, pode ser adaptada considerando os aspectos culturais e ambientais de outras regiões do Brasil que não sejam o Cerrado.
Referências
DELIZOICOV, Demétrio; ANGOTTI, José André. Metodologia do ensino de ciências. São Paulo: Cortez, 1990.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 62. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
GOIÁS. Secretaria de Estado da Educação. Currículo referência da Rede Estadual de Educação de Goiás: versão experimental. Goiânia, 2013.
- CONTATOS
- Ana Isabel Ribeiro •
- Mestre em Ensino na Educação Básica pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica do CEPAE/UFG •
- drosofilista@gmail.com
- Maria Izabel Barnez Pignata •
- Doutora em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências de Rio Claro / UNESP •
- mibabel@ufg.br