VOLTAR À COLEÇÃO ISBN: 978-65-86422-79-5
Volume 2

Ações e reflexões pedagógicas:

Produtos educacionais para o ensino na educação básica

Cartografias identitárias: estigmas e enfrentamentos vividos no espaço escolar por alunos do residencial orlando de morais – experiências em dois bairros

AUTORES
Profª Mª Sueli Alves de Sousa
Profª Drª Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva
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1. Introdução

O produto educacional que busquei desenvolver no Colégio Estadual da Polícia Militar de Goiás - CEPMG Waldemar Mundim (onde cinco estudantes integraram os personagens centrais da dissertação do mestrado) traz uma proposta de competências curriculares que contribuem para as ciências humanas tomar novo aporte teórico sobre os estigmas sofridos por alguns estudantes, em especial, os estigmas espaciais, que acabam acarretando pouca socialização dos alunos que moram em bairros categorizados como de população de baixa renda e, por isso, alguns deles quando chegavam atrasados eram apelidados pelos seus pares de “pé de toddy”.

Procurei demonstrar a importância da pesquisa aplicada à educação na formação dos professores, sabendo que essa experiência não pode ser vista como algo estanque, mas como algo em movimento, interdisciplinar, interativo, dinâmico e representativo da realidade de cada espaço educacional investigado.

O produto educacional que foi desenvolvido por mim como professora de Geografia do CEPMG Waldemar Mundim baseou-se principalmente em duas aulas de campo realizadas na Vila Itatiaia e no Residencial Orlando de Morais, percorrendo alguns pontos importantes retratados pelos estudantes do 7º ano A, e as leituras que eles têm desses espaços.

Apesar das dificuldades para executar uma aula de campo com estudantes de escola pública, enfrentei os desafios e foram cumpridas as etapas do planejamento inicial, principalmente o convencimento dos seus pais e do grupo diretivo da escola de que era preciso percorrer alguns pontos dos dois bairros onde morava a maioria dos estudantes do 7º ano A.

Larrosa (2002) colabora dizendo que a vivência com outras pessoas requer tempo para refletir, olhar as superfícies a serem atravessadas, escutar, contemplar e silenciar. Segundo o autor (2002, p. 21), as “[...] palavras criam sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação”. Larrosa diz que a humanidade raciocina através das palavras, é por meio delas que somos capazes de sentir e de elaborar o que somos.

Foi pensando nessa realidade de subjetividades que realizei duas aulas de campo com os alunos do 7º ano, turma A, turno vespertino. A Vila Itatiaia e o Residencial Orlando de Morais (conforme demonstrado no capítulo 1, da dissertação de mestrado intitulada Cartografias identitárias: estigmas e enfrentamentos vividos no espaço escolar por alunos do Residencial Orlando de Morais), os dois bairros que proporcionalmente tinham os maiores números de alunos matriculados no CEPMG em 2017 (ano da pesquisa de mestrado) e em 2019 (ano da escrita do produto educacional).

Para a descoberta e o reconhecimento dos olhares juvenis, a aula de campo necessita ser bem planejada, para que seja significativa em termos de uma formação humana mais sensível.

Corrêa Filho (2018) relata que é no bom planejamento que se determina o sucesso ou o insucesso de uma saída da escola. É preciso estar ciente de que esta não pode ser uma atividade isolada, mas sim uma que solicita um fechamento, um feedback.

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Para iniciar a aula de campo, no primeiro semestre de 2019, levei em conta ao escolher uma turma as características específicas de cada estudante, que somam os 41 alunos do 7º ano A, cujo percentual considerável morava no Residencial Orlando de Morais e no Antônio Carlos Pires se comparados aos 7ºˢ anos B, C e D.

Na perspectiva filosófica socrática, greco-clássica, precisamos reconhecer o nosso não saber de partida para a construção dialógica do conhecimento das outras ideias. A ação de olhar e escutar é um sair de si para ver o outro e a realidade, segundo seus próprios pontos de vista.

Diante das imagens acessadas apenas pela vida do consumo de bens e serviços, os estudiosos argumentam que alguns jovens vivem uma cegueira urbana em suas redes de sociabilidade. Para superar esta “cegueira”, o que se propõe é a educação de olhar e escutar em alguns dos seus espaços de vivência, “nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira” (WEFFORT, 1996, p. 1).

Jamais poderemos sair com a turma sem que se tenha feito uma sondagem antecipada do lugar a ser explorado. O professor precisa ter uma compreensão completa do trabalho que vai coordenar, isso porque nossas aulas precisam ter início, meio e fim e, portanto, cumprir o objetivo a atingir.

De acordo com o escritor Corrêa Filho (2018), não é bom que o professor esteja em igualdade com os estudantes na condição de conhecer o local, pois precisa responder aos questionamentos dos alunos. Por isso, a aula precisa ser bem planejada. Posteriormente, a aula de campo ajudará no desenvolvimento de outros componentes curriculares.

A avaliação da aula de campo se deu através das exposições das impressões e conclusões que os estudantes tiveram. Isso foi feito por meio de relatórios escritos em seus cadernos de campo, que aqui chamaremos de “caderno de bordo”.

2. O desenrolar da aula de campo

Primeiramente, escrevi o projeto “Aula de campo no Residencial Orlando de Morais e Vila Itatiaia”, logo no início do ano, para que ele pudesse ser incluído no Projeto Político Pedagógico (PPP) do CEPMG, em 2019. Esse projeto contempla os objetivos específicos, a metodologia, as disciplinas e a turma envolvida, os recursos materiais e humanos, o cronograma e a avaliação. O projeto é entregue, primeiro, para a apreciação da Comandante da Instituição e, depois, se organiza a saída com os estudantes, que são acompanhados de um militar.

No mês de março de 2019, ao trabalhar com os alunos do 7º ano A o Eixo Temático: Social-Cartográfico-Físico Territorial, nossas expectativas de aprendizagem eram observar, ler e interpretar diferentes textos para entender que o espaço geográfico é produto da atividade social sobre um substrato natural. A partir daí propomos discutir, em sala de aula, os espaços de vivência – como a escola e o bairro –, dos estudantes do 7º ano A, com base em suas reflexões sobre a subjetividade dos lugares, como porção do espaço vivido, onde se criam identidades e estabelecem relações cotidianas com a família, os amigos e os colegas.

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Procurei ilustrar a aula com a identificação, na planta urbana de Goiânia, do bairro de cada estudante como lugar de vivência, valores e referências espaciais do grupo social a que pertencem. Listei, a seguir, os bairros de moradia dos estudantes do 7º ano A, em 2019.

Gráfico 1. Bairros residenciais dos alunos do 7º ano A: preparação para aula de campo. Fonte: Acervo da autora, 2019.

Foi exposta, em sala de aula, a Planta Urbana de Goiânia, justamente para que o aluno pudesse localizar seu lugar de moradia e seu lugar de estudante no CEPMG. Cada um localizou, na planta de Goiânia, com uma estrela, seu lugar de moradia e fizeram seu trajeto casa escola. Desse modo, muitos conseguiram identificar os limites territoriais do município de Goiânia com os municípios de Nova Veneza e Santo Antônio de Goiás.

Mapa 1. Aula preparatória para campo, CEPMG, 7º ano A. Fonte: Arquivo de campo, 22/03/2019.

Solicitei que os estudantes encaminhassem mensagens ou fotografias para mim, via WhatsApp, das imagens que eles achassem marcantes nesse percurso casa escola e vice-versa.

Diante das informações recebidas, montamos um painel com as fotos e as trouxemos para debate. A partir daí eles realizaram uma escrita de suas impressões.

Figura 1. Imagem enviada para mim via WhatsApp da via não pavimentada do Residencial Orlando de Morais. Fonte: Foto registrada pelo (a) estudante do 7º ano A, em abril de 2019.
Figura 2. Imagem enviada via WhatsApp do percurso da Vila Itatiaia até o Colégio CEPMG Waldemar Mundim. Foto registrada pelo (a) estudante do 7º ano A, em abril de 2019.
Figura 3. Imagem enviada via WhatsApp do percurso do Colégio até os bairros São Judas Tadeu, o Jardim Pompéia e Goiânia 2. Fonte: Foto registrada pelo (a) estudante do 7º ano A, em abril de 2019.

O trajeto de casa até a escola e vice-versa era sentido, por uma parcela dos estudantes, como uma oportunidade de integração deles com o espaço público, e não apenas como um risco, considerando que muitos caminhavam a pé e se deslocavam de ônibus para o colégio. Dos 41 estudantes pesquisados nesta etapa da pesquisa, 13 disseram que esse trajeto era feito em grupo, a pé, raramente sozinho, salvo um colega que disse ir de bicicleta e outro de van; apenas oito deles pegavam ônibus. Infelizmente, esses deslocamentos se dão sem a supervisão de um adulto, expondo-os a riscos, pois atravessavam as ruas sem cuidado, não utilizando as faixas de pedestres. Só 13 participantes disseram ter medo de atropelamento.

Quando questionados sobre os problemas percebidos nesses percursos, como falta de faixa de pedestres, demora no ponto de ônibus sem proteção contra sol e chuva para quem fica esperando o embarque, falta de policiamento, ruas cheias de buracos etc., os adolescentes tendem a indicar preocupações coletivas e a “achar” possíveis soluções rapidamente, mesmo que elas sejam difíceis de serem adotadas pelo poder público e pelas empresas privadas.

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O equipamento de datashow da sala de aula foi conectado ao site da Prefeitura de Goiânia (http://portalmapa.goiania.go.gov.br/mapafacil/), na opção imagem de satélite, com exposição ampliada das paisagens naturais (rios, lagos, áreas verdes) e das modificadas (praças, clubes, escolas, shopping, campo ou quadra de futebol, plantações, etc.), tentando deixar mais visíveis as modificações nas áreas periféricas rurais e urbanas.

O desejo das pesquisas (tanto da dissertação quanto do produto educacional) foi e é o de construir uma prática geográfico-educativa, de conhecimento da história do bairro desses alunos com a intenção de que eles possam diminuir os estigmas espaciais - do local de moradia de alguns de seus colegas, mas parece que ainda não conseguimos esse objetivo.

Posteriormente às aulas teóricas em sala, para iniciarmos a excursão urbana formamos trios no local de encontro, que foi no CEPMG Waldemar Mundim. Foi sugerido que, quem tivesse câmera fotográfica ou gravador de áudio, levasse consigo a campo para registros, além do “caderno de bordo”. No dia 9 de abril de 2019, com o “caderno de bordo” em mãos, percorremos algumas ruas da Vila Itatiaia, e depois, no dia 16 de abril, o Residencial Orlando de Morais. Vale Lembrar que já tínhamos discutido em sala de aula alguns conceitos metodológicos para depois seguir para a aula de campo.

Precisávamos observar os seguintes pontos ou elementos:

3. Os desafios das aulas de campo

Figura 4. Aula de campo na Praça da Vila Itatiaia. Fonte: Foto registrada pelo (a) estudante em abril de 2019.

Só eu sei
As esquinas por que passei
[...]
E quem será
Nos arredores do amor
Que vai saber reparar
Que o dia nasceu
[...]
Só eu sei só eu sei
E quem será
Na correnteza do amor que vai saber se guiar
[...]
(Esquinas. Djavan)

Figura 5. Aula de campo no Residencial Orlando de Morais. Fonte: Foto registrada pela pesquisadora em abril de 2019.

Deixe-me ir preciso andar,
Vou por aí a procurar,
Sorrir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar,
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar
(Cartola/Candeia)

As análises e reflexões acerca das expressões orais e escritas dos alunos demonstraram que morar no Residencial Orlando de Morais:

“É ruim demais com aquele poeirão e quando estava chovendo, só barro demais e que àquelas casas doadas pela Prefeitura eram apertadas”; “Tudo é muito isolado aqui, perto do nada e a estrada para chegar é toda esburacada”; o “bom é que pelo menos pode brincar de bola, soltar pipa na rua, porque a rua é deserta”.

Retirar o corpo do educando do movimento por um momento, e submetê-lo a pensar, atrair a sua atenção por um momento, é algo que envolve a educação do olhar, envolve o raciocínio, envolve a observação geográfica. De acordo com a autora argentina Alderoqui (2006) entre a cidade vivida e a cidade pensada há uma descontinuidade. O lugar ou a cidade pode ajudar a educar o olhar dos discentes e revelar o que esse lugar já foi no passado, tornando esse discente intencionalmente curioso e questionador.

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Para isso é necessário que esse discente desenvolva algumas operações cognitivas da ordem não apenas sensíveis ou perceptivas, mas, sobremaneira, conceptivas, conceituais e a partir daí poder classificar, selecionar, ordenar, comparar, resumir, para assim poder interpretar ou instaurar significados lidos na cidade através da prática espacial das nossas caminhadas.

Na maioria das vezes, o imaginário do discente no seu jeito de olhar foi só o utilitário, com o olhar prático, mas objetivo, frio e quente. Viam e analisavam pelo gosto, não gosto. Ou pelo bonito ou feio. Serve para mim ou não. Olhar de piedade ou de inveja. O seu imaginário estava fora da realidade ou das lentes do mundo das desigualdades sociais, por isso procurei ressignificar os espaços percorridos, visto que alguns desses espaços de suas vivências têm suas funcionalidades negligenciadas pelos gestores.

Na intenção de mostrar-lhes que a vida na periferia é mais complexa, comecei a narrar a história da criação do Conjunto Itatiaia, e a partir daí traçamos parte da sua trajetória de lutas cheias de conquistas em prol do bem-estar da geração daquele momento. Entrevistamos na nossa caminhada antigos moradores que, inclusive, acabaram de se aposentar do tempo de trabalho no colégio Waldemar Mundim e recordaram que os moradores da época sofriam, pois o Conjunto se encontrava no início de seu surgimento, sem nenhuma infraestrutura. A partir das reinvindicações e da formação da Associação de Moradores da Vila Itatiaia (Amovita, criada em 1979), eles conseguiram, junto ao poder público, muitas obras estruturais, que são as mesmas que faltam para os orlandinos hoje.

As últimas ruas do residencial Orlando de Morais estão margeadas pelas fazendas de gado leiteiro, com seus espaços de florestas, cercas de arame farpado, cupins e pastos para alimentar o gado, elementos que não despertaram, nos discentes da aula de campo, nenhuma atitude de surpresa, essas cenas passaram despercebidas como cenário de vida rural no meio do urbano. Contudo, esse cenário me suscitou indagações, novas leituras da configuração espacial.

Dos 41 estudantes que nos acompanharam, nenhum identificou a transição da paisagem urbana para a rural. Poucos reconheceram, que no Residencial, existiam formas de vida sem alternativas de lazer, mesmo sem campo de futebol, quadra esportiva, espaços públicos de áreas verdes, lojas de roupas, lanchonetes. Porém conseguiram identificar que a localização do Residencial não era distante do Conjunto Itatiaia, mas se encontrava isolado e por isso parecia meio triste morar ali.

Os estudantes não identificaram os limites territoriais da área urbana de Goiânia e a localização de bairros periféricos como o Residencial Orlando de Morais e o Antônio Carlos Pires nos mapas. As falas de dois estudantes manifestaram que existe uma injustiça na forma de morar. Infelizmente, não fizeram nenhuma observação sobre o fato de o Residencial Orlando de Morais e o Residencial Antônio Carlos Pires serem os últimos loteamentos da região norte de Goiânia, ou seja, estarem inseridos nas franjas urbanas.

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Os quatro colegas de sala residentes no Orlando de Morais nos conduziram à Associação de Moradores, onde fomos recebidos e nos certificamos das várias reinvindicações para os dramas vividos pelos constantes assaltos e pela falta de transporte coletivo à noite e nos finais de semana. A realidade interpretada é a de que os estudantes visitantes reconheceram que são privilegiados por morarem na Vila Itatiaia, Goiânia 2 e em outros bairros mais centrais na visão deles.

A escola, em uma das suas várias funções sociais, deve promover a inserção dos estudantes às diversas realidades culturais. Assim, essa escola precisa ser repensada como um espaço integrador e acolhedor que reconheça, investigue e reforce a cartografia identitária da comunidade complexa em que está inserida.

Compreende-se que aulas de campo juntamente com a formação continuada dos professores pode ser uma forma de auxiliar a uma reflexão crítica com relação ao processo de ensino e aprendizagem de alunos migrantes ou não, estigmatizados ou não.

E cabe a nós, geógrafos, uma grande tarefa, pois o geógrafo não olha a cidade apenas com os seus olhos, ele aprende a vê-la ouvindo seus sons, apreciando seus aromas ou esquivando-se de seus odores, saboreia ele os seus ritmos.

4. Considerações finais

Compreendi que a vida dos sujeitos estava inseparavelmente ligada aos espaços em que eles moravam ou moram. Esses espaços são cheios de significado, são espaços “nutritivos” (GONÇALVES FILHO, 1979 p. 113), mas os avanços tecnológicos atuais alterariam essas relações com os lugares. Desse modo, os sujeitos acabam perdendo o enraizamento e o vínculo afetivo com eles, pois vivem no mundo moderno, sem as lembranças que nos propiciam a construção dos afetos necessários ao enraizamento.

Se fôssemos pensar em termos culturais, veríamos que a concorrência do mundo do trabalho, na atualidade, diminui nosso afeto relativo às pessoas, às relações que constroem nossas referências e até mesmo ao nosso lugarzinho. Em nome da sobrevivência e da empregabilidade tudo isso fica extinto.

Ficamos indiferentes ao que acontece aos nossos olhos narcísicos, não olhando para a pobreza, para a exclusão e para as relações sucateadas. Há tempos o sujeito civilizado perdeu a referência da terra como Gaia: percebe-se, a partir daí, o aumento do reconhecimento de um mercado imobiliário, do agronegócio e, de forma não pormenorizada, da construção de bairros nas periferias. São nos lugares das periferias urbanas que o migrante, por seu turno, vai chegando com as raízes partidas: “a liturgia poderia enraizá-lo, criar e reviver tradições, valores, lembranças que dão sentido à vida” (BOSI, 2004, p. 208).

De acordo com Deslandes et al. (2015), cada sociedade humana existe e se desenvolve em determinado espaço e se organiza de forma particular e diferente de outras. Aquelas que estão vivendo na mesma época histórica apresentam algumas semelhanças complexas, dado o fato de viverem num mundo marcado pela interferência das comunicações. Logicamente, os jovens vivem o agora, marcado por seus costumes, e é com tais imperativos que desenvolvem seu futuro, numa discussão constante entre o que já está pronto e o que será fruto de seu papel principal.

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É no espaço escolar que os conflitos vividos nos seus ambientes de intimidade e afetividade se realçam mais, principalmente para aqueles profissionais mais sensíveis à escuta e à observação.

Pelo exposto, é delegado, na atualidade, aos sistemas de ensino, o compromisso de oferecer uma educação inclusiva para todos, que propõe a inclusão dos considerados “diferentes”. Nessa perspectiva, a Declaração de Salamanca (1994, p. 10) é taxativa em afirmar que “as escolas regulares são os meios mais capazes para combater as atitudes discriminatórias, criando sociedades mais abertas e solidárias, construindo uma sociedade inclusiva”, que possa testar experiências dos diversos produtos educacionais.

A escola é o lugar, por excelência, da formação de indivíduos que aceitem relacionar-se com as diferenças, e não que apenas as observem como traço de fronteira, exclusão e discriminação. Para que isso aconteça é necessário que haja aulas que busquem estudar os espaços de afetividade de cada educando, reforçando o trabalho da experiência da escuta e do olhar com aportes interdisciplinares e transdisciplinares. Para maiores esclarecimentos da metodologia utilizada no desenvolvimento da pesquisa do produto Educacional visitem o site http://educapes.capes.gov.br/handles/capes/559623 e também o repositório da Biblioteca da UFG.

Nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, é negociada durante a vida toda por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros. Tanto a identidade pessoal quanto a identidade socialmente derivada são formadas em diálogo aberto. Estas dependem de maneira vital das relações dialógicas com os outros (GOMES, 2002, p. 3).

É a cultura e a sociedade que asseguram o desenvolvimento dos indivíduos, entretanto, é a convivência entre os indivíduos que consente a preservação da cultura e a autoestruturação da sociedade. Para Morin (2000, p. 52), “[o] homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura”. Todavia, podemos conceber que a integridade, a autonomia e o livre-arbítrio dos estudantes estabelecem nosso principal objetivo ético e pedagógico, procurando não deixar que a multidimensionalidade e a complexidade humana desses sujeitos se tornem invisíveis.

No Brasil, os indivíduos de baixo poder aquisitivo não possuem, muitas vezes, outra maneira de desenvolver seu aprendizado. De modo muito evidente, interpretamos, nas pesquisas de mestrado e na pesquisa do produto educacional, que as famílias do Orlando de Morais passam por convivências constrangedoras quando seus filhos dizem onde moram, vale ressaltar que isso acontece em vários lugares de suas trajetórias diárias, escola, trabalho, lazer, etc.

Existe um descompasso entre o discurso da inclusão, centrado primeiramente na diversidade cultural e econômica inerente ao ser humano, e o direito à igualdade de acesso às mesmas oportunidades.

Reforçando nossa ideia, ainda que alguns responsáveis obriguem os filhos a irem ao colégio, o motivo dessa ordem é da “boca para fora”, uma vez que a maioria deles não teve um aprendizado pessoal marcado pelo sucesso escolar; infelizmente, seus dramas começam em sua origem como classe desestruturada economicamente, classificada por alguns grupos de um “desvalor” existencial e moral, por esse motivo procuramos levar uma turma piloto ao Residencial Orlando de Morais apresentando um outro olhar para as diversas trajetórias desses moradores estudantes.

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As famílias desses alunos que moram em bairros mais afastados, como esses que visitamos, sofrem do mal da origem, já que não nasceram com o “bilhete premiado” de pertencer à classe média e sofrem discriminação no local de trabalho, no espaço escolar e dos agricultores da vizinhança; estão em uma fronteira do nem urbano e nem rural.

Alguns estudantes moradores do Residencial Orlando de Morais se veem com “desvalor” e sorriem quando falam de suas dificuldades diárias nesse percurso entre casa escola e vice-versa.

Pensando que as mudanças necessárias dar-se-ão a partir de uma sensibilização dessa comunidade escolar sobre a visibilidade dos estigmas sociais sentidos, proponho algumas alterações no currículo da escola e, a partir daí, divulgação, através dos planejamentos pedagógicos e das mostras pedagógicas, dos materiais sobre o histórico ambiental dessa vizinhança. A partir da proposta pedagógica-geográfica do diferente olhar dos lugares, será possível discutir temas como os fenômenos multicausais da violência e discriminação no espaço público escolar, buscando alternativas que fortaleçam a capacidade de diálogo entre os discentes, docentes e demais envolvidos no processo educativo.

Conclui-se que após a aula de campo na Vila Itatiaia e no Residencial Orlando de Morais os estudantes visitantes, nas suas manifestações, expressavam reconhecimento de que, mesmo com as diferenças, se viam como iguais nos problemas, alguns reconheceram que são privilegiados por morarem na Vila Itatiaia e bairros mais centrais na visão deles. Logo, aparentemente naquele momento ninguém projetava uma imagem desvalorizada das pessoas que residiam ali.

Referências

ALDEROQUI, Silvia. Ensenar a pensar la ciudad. In: ALDEROQUI, Silvia; PENCHANSKY, Pompi. Ciudad y ciudadanos: aportes para la ensenanza del mundo urbano. Buenos Aires: Paidós, 2006.

BOSI, Ecléia. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

CORRÊA FILHO, José Januário. Aula de campo: como planejar, conduzir e avaliar? Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

DECLARAÇÃO DE SALAMANCA: sobre princípios, políticas e práticas na área das necessidades educativas especiais. Salamanca, 1994. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf.

DESLANDES, Suely Ferreira et al. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Organização de Maria Cecília de Souza Minayo. 34. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

GOMES, Paulo César da Costa. O lugar do olhar: elementos para uma geografia da visibilidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

GONÇALVES FILHO, José Moura. Olhar e memória. In: O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1979.

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica de Edgar de Assis Carvalho. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.

WEFFORT, Madalena freire. Observação, registro, reflexão: instrumentos metodológicos I. 2. ed. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996.

CONTATOS
Sueli Alves de Sousa •
Mestre em Ensino na Educação Básica pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica do CEPAE/UFG
sugeoambiental@gmail.com
Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva •
Doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo •
rusvenia@gmail.com