VOLTAR À COLEÇÃO ISBN: 978-65-86422-79-5
Volume 2

Ações e reflexões pedagógicas:

Produtos educacionais para o ensino na educação básica

Contribuições filosóficas a partir da utilização de mitos em atividades pedagógicas

AUTORES
Ana Maria Siqueira Silva
Evandson Paiva Ferreira
43

1. Apresentação do contexto geral da pesquisa realizada, o problema, a metodologia e os principais resultados e conclusões

Esta pesquisa visou ampliar o repertório de ideias e aprimorar hábitos de leitura e escrita de estudantes do ensino básico, tendo como sustentação o universo dos mitos, que naturalmente instigam crianças, como também adultos, à busca pelo conhecimento. Pretendi considerar a questão sobre a possibilidade do lógos no mito por meio de pesquisas, leituras e debates, tendo em vista desvelar um quadro referencial de símbolos, de imagens e de temas para a ampliação dos horizontes da existência humana.

A hipótese inicial partiu do caráter propedêutico da poesia e do mito, supondo que, num sentido importante, representam uma preparação, talvez necessária, do pensamento para a filosofia. Concebo, então, que o mito está, de alguma forma, relacionado a uma intenção cognitiva e, por meio de atividades pedagógicas, pode-se aprimorar habilidades como leitura, escrita, análise e capacidade de argumentação em estudantes do ensino básico.

Este projeto não teve a pretensão de ensinar Filosofia a jovens, mas de utilizar-se de estratégias próprias desta área durante as atividades desenvolvidas. O ensino de Filosofia é tema relativamente polêmico, talvez porque a maioria dos problemas nessa área de estudo não tenham resultados consensuais. Contudo, Murcho (2008, p. 82) afirma que “o caráter aberto da filosofia em nada diminui o seu valor cognitivo ou social, a sua seriedade acadêmica ou escolar, ou a sua importância existencial”. Penso, então, na possibilidade de contribuições filosóficas, tendo o mito como meio para aprimorar a capacidade de argumentação e a autonomia de pensamento, habilidades necessárias para qualquer pessoa.

O objetivo geral desta pesquisa foi demonstrar a possibilidade de contribuições filosóficas a partir da utilização da poesia e do mito como agentes de transformação de práticas pedagógicas. E como objetivos específicos, estudar e analisar a origem da poesia e do mito como formas de ver o mundo num movimento racional em direção à filosofia, como também determinar até que ponto se pode falar de uma natureza racional proto ou pré-filosófica da poesia e do mito; identificar passagens em que a poesia, a criação poética ou os mitos recebem alguma menção ou tratamento por parte de Aristóteles para tentar compreender, em alguma medida, o que esse filósofo pensava sobre eles e que motivos filosóficos tinha para incluí-los nas suas obras; ampliar as práticas de leitura de estudantes das turmas Fs da Escola Municipal Brice Francisco Cordeiro, em Goiânia, Goiás, por meio de proposições de análises filosóficas a partir do mito e da poesia; identificar contribuições na utilização de poesias e mitos na constituição de ideias que podem orientar a prática pedagógica; interpretar as informações coletadas durante a realização da proposta para subsidiar a discussão e interpretação no confronto com o referencial teórico que fundamenta o estudo.

44

Apesar de sua crítica sistemática aos poetas, a ponto de expulsá-los da Pólis, Platão utiliza-se da mitologia em diversas passagens de sua obra, contudo, parece não ter a intenção de utilizar-se do mito destituído do lógos, porque ambas, mitologia e filosofia, são formas de interrogar o mundo e o que ocorre nele.

É sugestivo, no campo da Filosofia, que Platão critique os poetas, mais especificamente Homero e Hesíodo, pelas concepções que resultam de suas obras, quando ele mesmo se mostra alguém que respeita a tradição cultural e religiosa dos helenos, como podemos conferir em várias passagens de sua obra.

Após concluir a construção de uma cidade perfeita, na qual vislumbrou a questão da justiça e da injustiça, passa a tratar da questão da poesia, já abordada no segundo e no terceiro livro da sua República:

− Assim, disse eu, muitas outras coisas me fazem pensar que estabelecemos a cidade de modo reto, dentre as quais não me parece menor o que dissemos sobre a poesia.
− O quê? disse ele.
− De modo algum aceitar aquela que for mimética. E agora, que separamos cada uma das formas (eíde) da alma, parece-me ainda mais claro em tudo o argumento de sua recusa.
− Que queres dizer?
− Aqui entre nós, para não me difamares com os poetas trágicos e com todos os outros imitadores, toda ela parece-me ser a mutilação do discernimento (diánoia) do ouvinte que ainda não dispõe do remédio (phármakon) para saber o que ela é. (PLATÃO, 594a-b).

Podemos, então, fazer um questionamento à posição de Platão, quando diz que certos mitos não são bons para a educação das crianças: a educação dos jovens deveria ter apenas determinados exemplos a serem seguidos, quando, inevitavelmente, ter-se-á que conviver com toda a espécie de conduta? Há, nesse ponto, uma contradição, ou ao menos uma tensão, que precisa ser mais bem compreendida. Talvez não seria o mito que Platão critica, mas a forma como este é utilizado na educação de crianças. Seria possível, por acidente, construir algo assim, capaz de provocar as reações que provocam até hoje? E mais, se fossem obras medíocres, não teriam se tornado clássicas e admiradas até a atualidade.

Aristóteles distancia-se de seu mestre, dando relevância aos poetas, mais especificamente na Poética, no que concerne à mímesis no âmbito da espécie humana. Para Aristóteles “imitar é congênito no homem” (POÉTICA, 1448b 6-9). Portanto, há no homem a tendência natural para o imitar e ele se utiliza da imitação para adquirir as primeiras noções, para aprender. Mas, em Aristóteles, a poesia vai muito além da simples imitação. Para ele, a poesia toma os fatos (reais ou criados) e os transfigura ao tratá-los e vê-los sob o aspecto da possibilidade e da verossimilhança, o que, de certo modo, dá ao mito um significado de universalização do objeto. Aristóteles chega a dizer que “o impossível verossímil deve ser preferível ao possível não acreditável” (POÉTICA, 1460a 28-9).

45

Em relação às artes miméticas, Castoriadis extrapola Aristóteles, dizendo que a arte é capaz de proporcionar o vislumbre do caos, como que por uma janela. E mais, criar um cosmos a partir do caos, sendo o seu contrário. Diz ainda, quando trata de criação por meio da arte, que “a dança, a arquitetura, a música não imitam nada, elas criam um mundo” e que “a grande literatura, assim como a grande pintura, faz ver alguma coisa que está aí e que ninguém via; e, ao mesmo tempo, às vezes ela faz existir o que nunca esteve aí e que não existe senão em função da obra de arte” (CASTORIADIS, 2009, p. 106).

Sabemos que entre a antiguidade clássica e o conhecimento da tragédia pelo mundo moderno estendem-se inúmeros fatores de distorção na concepção e no tratamento do que seja o mito e o trágico, mas é inquestionável que ainda hoje essas obras têm um profundo efeito na dimensão existencial humana e talvez um resgate dessas histórias, no interior das práticas de sala de aula, possa contribuir significativamente para a formação dos estudantes. Talvez o mito tenha um papel mediador, ou seja, um elemento que facilita a compreensão daquilo que o lógos pretende ensinar. Portanto, servindo ao lógos, o mito pode funcionar como um importante elemento pedagógico e contribuir para o aprimoramento de funções cognitivas de estudantes do ensino básico.

Para esta pesquisa, adotei um método de natureza qualitativa, tendo como procedimento técnico uma pesquisa-ação, que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e na qual os pesquisados e participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 1986, p. 14).

Referindo-se à abordagem qualitativa, Severino (2001, p. 8-9) enfatiza que o que interessa ao pesquisador são “as significações concretas e particulares que os indivíduos atribuem às suas ações singulares, nos ambientes particulares em que se desenrola sua existência”. Sendo assim, o pesquisador mergulha por inteiro no ambiente pesquisado, para poder observá-lo, vivenciando sua dinâmica. Quanto ao tipo, utilizei a análise descritiva, uma vez que foram analisadas as características de um grupo, estabelecendo relações entre características variáveis, com o objetivo de contribuir para a solução das problemáticas educacionais. Quanto à coleta de dados, foi utilizada a observação direta dos fenômenos e as aulas foram gravadas e transcritas para análise.

Com relação aos participantes e à instituição pesquisada, os sujeitos desta pesquisa foram alunos do agrupamento F (equivalente ao 6º ano) da Escola Municipal Brice Francisco Cordeiro, em Goiânia, Goiás, no ano de 2018.

Tratando-se de um Programa de Pós-graduação Profissional, pensamos o produto educacional a partir da experiência realizada em sala de aula. Primeiramente, realizamos a leitura de fragmentos da Teogonia de Hesíodo, como um primeiro contato com o tema: “origem do mundo” e “origem do homem”. Em um segundo momento, houve produção de textos com diferentes propostas, a partir de mitos lidos, para explorar a linguagem narrativa. Aproveitei esses momentos de produção para trabalhar também aspectos estruturais de um texto, tais como: elementos de uma narrativa, legibilidade, ortografia, coerência e coesão textual.

46

As aulas foram orientadas por uma sequência didática com os fragmentos da Teogonia, de Hesíodo, escolhidos para o projeto, imagens ilustrativas dos deuses e da narrativa, bem como sugestões de atividades a serem feitas pelos alunos. Este material pode ser ponto de partida ou exemplo para professores que se interessem pelo tema ou por atividades afins.

Espera-se que, a partir da sequência didática e das discussões obtidas por meio do desenvolvimento deste projeto, uma contribuição significativa refletida na melhoria da capacidade argumentativa dos estudantes, como também na disponibilização de sequência didática que auxiliará na prática pedagógica interdisciplinar de professores.

2. Apresentação da concepção do produto e sua relação com a pesquisa

Produto educacional é um termo exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica (PPGEEB) do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (Cepae) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO. De acordo com o Edital 001/2019 – Processo Seletivo para turma 2019.2 (2ª turma de 2019), Produto Educacional é a apresentação da proposta de desenvolvimento de um produto ou processo educacional a ser implementado em condições reais de ensino. Por exemplo, uma sequência didática, um aplicativo computacional, um jogo, um vídeo, um conjunto de videoaulas, um equipamento, uma exposição, entre outros. Nos editais anteriores, o produto educacional é exigido da mesma forma.

Esta pesquisa teve como produto educacional uma sequência didática elaborada como roteiro para a realização das aulas, que pode ser acessada no portal EduCapes, pelo seguinte identificador: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/553427, bem como as próprias discussões obtidas durante realização das aulas podem ser consideradas um produto que surgiu a partir desta pesquisa.

3. Relato da experiência de aplicação do produto contendo a apresentação de imagens, vídeos, fotos, áudios, links, sites, etc.

As aulas práticas foram realizadas em três salas de turma F (F1, F2 e F3), referentes ao 6º ano do Ensino Fundamental II, com alunos e alunas com idade entre 10 e 12 anos, em uma escola localizada na Vila Itatiaia, Goiânia, Goiás, no período de abril a junho do ano de 2018. Lecionei aulas de língua portuguesa para estas turmas e, no período citado, ministrei as aulas da sequência didática elaborada para este estudo.

Segundo dados colhidos no PPP da escola campo, os responsáveis pela maioria dos alunos são prestadores de serviços domésticos em residências ou para empresas. Há alguns que lidam no comércio informal, além daqueles que são aposentados ou que estão desempregados.

O perfil socioeconômico é bem diversificado, mas boa parte recebia, na época da pesquisa, auxílio de programas do governo federal, como o Bolsa-Família, demonstrando que a renda da maioria das famílias é baixa. A maioria mora no próprio bairro Itatiaia ou nos setores circunvizinhos. Geralmente, iniciam e concluem seus estudos na escola, a não ser em casos de serem sorteados para o Cepae-UFG ou mudança de setor ou estado.

47

A escola campo, assim como todas da Rede Municipal de Educação (RME) da cidade de Goiânia, adota o sistema de Ciclos de Formação e Desenvolvimento Humano. Cada ciclo tem duração de três anos e não há interrupção entre os agrupamentos de um mesmo ciclo. Segundo o PPP (2018, p. 24) da instituição, “toda essa organização busca romper o modelo tradicional de escola, que enquadra os educandos em períodos anuais estanques, e também superar os processos educativos homogêneos e lineares, de caráter conteudista”.

É importante salientar que alguns fatores contribuíram para diferenças no desenvolvimento das aulas entre as turmas, como festividades escolares (Dia das Mães, festa junina), bem como os horários destinados às aulas. Na turma F1, as aulas aconteciam sempre antes do recreio, e a última é sempre destinada ao lanche dos alunos, o que consumia quase a metade de uma aula. Portanto, a realização das atividades nesta turma foi mais fragmentada do que nas demais.

Foi organizada uma sequência didática com 23 aulas programadas a partir de fragmentos da Teogonia de Hesíodo. Essas aulas constam de trechos do poema citado, comentários, contextualizações, como também foram inseridas várias imagens de artistas consagrados para representar os deuses e os acontecimentos mais marcantes da narrativa com o objetivo de, a partir de elementos visuais, facilitar a compreensão e interpretação do poema hesiódico.

A escolha do corpus literário ocorreu a partir de estudos, como também de discussões com o orientador. Havia dúvida entre as obras de Homero e Hesíodo, e a opção pelo segundo deu-se com base no tema origem dos deuses, que poderia ser alicerce para outros assuntos e histórias.

A coleta de dados foi realizada a partir da gravação das aulas dadas, as quais posteriormente foram transcritas, o que gerou um relato de experiência. Nesse relato, foram identificados alguns elementos que considerei relevantes, como contribuições filosóficas para o ensino de Filosofia, a partir de atividades como elaboração de narrativas, desenhos e debate a partir da mitologia grega.

Após a transcrição dos áudios das aulas, passei para a análise dos dados, e tendo como fundamento a Análise do Discurso de tradição francesa, com ênfase nos estudos de Michel Foucault, o qual considera os discursos como práticas formadoras de saberes que se articulam às práticas sociais não discursivas. Foucault separa os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais, que seriam grandes procedimentos de sujeição do discurso.

Para Brandão (2015), Foucault demonstra que o discurso exerce uma função de controle de limitação e validação das regras de poder em diferentes períodos históricos e grupos sociais. Assim, o discurso é o encadeamento entre significantes e outros discursos externos. Ou seja, o discurso não direciona seu foco no significado, mas no significante, portanto, no imaginário dos receptores desse discurso.

48

Assim, é necessário considerar a posição dos jovens em seu contexto e os elementos desse contexto que compõem o conjunto de representações e saberes que esses adolescentes põem no processo comunicativo. Além disso, o contexto condiciona o discurso, mas também é transformado por este numa relação dialética. Desse modo, os enunciados emitidos pelos alunos e alunas refletem o contexto em que vivem. Podemos dizer, então, que seu discurso é elaborado a partir de alguns elementos:

  1. com base nos moldes impostos pela estrutura de ensino, em um primeiro plano tendo como pano de fundo as regras construídas na escola ao longo do tempo, e em segundo plano, as relações de poder professor-aluno;
  2. suas vivências fora da escola, a cultura regional, local e familiar e discursos proferidos no meio religioso;
  3. filmes, jogos e a cultura gamer no geral, que os coloca em contato com uma cultura mundial, de certa forma, por meio da internet.

O poema foi lido lentamente com os alunos. Normalmente, linha por linha, com pausas para decifrar os sentidos das palavras mais difíceis para eles e para mim, com o objetivo de que todos compreendessem o enredo. Foi também feito um glossário, no qual os estudantes pesquisaram palavras desconhecidas no dicionário e anotaram em uma folha destinada a esta finalidade.

A aula 6 da sequência didática, por exemplo, após uma introdução ao tema por meio de filme, vídeos e imagens, foram apresentados, para os alunos, os elementos da narrativa. O texto sobre o assunto, contido na sequência didática, foi lido de modo colaborativo, ou seja, cada estudante leu uma parte, fiz explicações extras e respondi às suas questões. Iniciei perguntando o que eles acham que deve haver em uma história para ela ser boa. Na turma F2, quando falamos sobre o problema que deve compor uma narrativa, o aluno G2 fez uma boa intervenção, dizendo que “se numa história não tiver problema, fica sem graça”. Em seguida, contei rapidamente a história da Sherazade, para exemplificar a questão do clímax. Sherazade contava uma história todas as noites para o Sultão Shariar e pausava a sequência na hora do clímax, para não morrer. O rei tinha o costume de casar-se e matar as esposas ao amanhecer, mas Sherazade conseguiu ficar viva contando histórias.

Lembramos que os capítulos das novelas, geralmente, acabam também no clímax. Quando falamos do desfecho ou resolução do problema, alguém disse que então “é a hora do casamento”. Outro disse que “é ganhar na Mega-Sena”. Dessa forma, demonstraram ter compreendido bem a ideia do tipo de texto que iremos estudar. O aluno IF2, para exemplificar, quando dissemos sobre os tipos de narradores (participante e observador), afirmou que, como narrador participante, poderia iniciar um texto dizendo: “Eu sou o olho do Caos”. Achei poético e elogiei a perspicácia. Esse aluno, em especial, no período do desenvolvimento do projeto, apresentou facilidade para se expressar oralmente, mas dificuldades para registro. Utilizei também o exemplo do livro A Menina que Roubava Livros para demonstrar como a morte foi narradora participante daquela história.

49

Normalmente, todas as leituras foram feitas no coletivo. Os alunos liam, cada um uma linha e, em seguida, eu lia novamente, tentando dar mais sentido, parando, explicando, pesquisando palavras desconhecidas no dicionário. Considero que foi um trabalho de decifração do poema de Hesíodo e uma sequente transposição individual para narrativas.

Antes de iniciar a leitura do poema, expliquei questões referentes à tradução. Disse que cada língua tem um “espírito” próprio e que o grego tem o “jeitão” dele, assim como o espanhol, o inglês e assim por diante. Contei que o poema, no grego, continha rimas. E que talvez poderiam achar muito esquisito, devido ao jeito de escrever muito diferente do que estamos acostumados, mas que logo se acostumariam e poderiam, inclusive, achar muito interessante. Mencionei a questão do sentido e da forma do poema e que nem sempre as traduções conseguem manter a forma em versos e o conteúdo da história como o original grego.

Para iniciar e finalizar cada aula, sempre fazíamos um rápido resumo das informações colhidas. Perceberam a importância do uso do dicionário e das discussões sobre os significados e o sentido de cada palavra desconhecida no poema hesiódico.

Sempre lembrava também, nas ocasiões de escrita, que na narrativa a introdução deve ter marcações de tempo, personagens e lugar. No desenvolvimento deve haver o problema, para a história ficar interessante, com emoção. Frequentemente pedia também para lerem as próprias histórias e as dos colegas para verificarem se estavam boas ou poderiam melhorar.

Após a transcrição de todos os áudios o desafio foi eleger elementos de análise que, ao final, foram: 1. A elaboração de conceitos a partir de epítetos; 2. Discussões a partir dos Deuses Primordiais e a Castração de Urano; 3. Religião: Confrontos e afinidades; 4. Relações com o mundo; 5. Imagens - uma conversa por símbolos; e 6. Mnemósine e as Musas como garantia de dúvida.

Os epítetos são amplamente usados por Hesíodo na Teogonia e foram os maiores geradores de interesse e participação por parte dos alunos. Um dos seres mitológicos que mais gerou discussão e exaltação de ânimos foi Eros, cujo epíteto é “solta-membros”. Concluímos que o poeta usa a expressão “solta-membros” porque os apaixonados são pessoas que frequentemente não usam a razão e acabam deliberando mal porque só pensam no ser amado. Lembraram também que esse texto de Hesíodo nos mostra que as besteiras que se faz por amor não são coisas típicas da atualidade. Ao contrário, ocorrem desde muito tempo. Tanto que os gregos já falaram sobre isso, em forma de poemas, inclusive. Na parte que diz “Eros agia na decisão refletida”, os alunos concluíram que seria como se Eros agisse, na razão, no coração e na ação.

Em todas as turmas, em qualquer ocasião cujo assunto do poema inclui Eros, o assunto gerou muita agitação, com vários alunos querendo contar suas experiências ao mesmo tempo. Penso que esse comportamento dos alunos foi positivo, pois demonstrou interesse e envolvimento com o assunto, o que gerou uma certa disposição em favor da leitura de um poema que não é comum para eles.

50

Além do epíteto de Eros, Crono – Curva-astúcia, Afrodite – respeitada, bela deusa e grama em volta, o nascimento do astuto Zeus, Hades – Agita-a-Terra, ressoa alto, geraram discussões bastante interessantes que envolvem conceitos, discussões sobre vingança, justiça, tempo, beleza, dentre outros.

A castração de Urano (céu) era um assunto que eu, como professora e pesquisadora, de certa forma, temia, tendo em conta um contexto em que, movidas por ideias de um movimento que defende uma suposta “escola sem partido”, pessoas comuns passaram a acusar professores de, dentre outras coisas, manifestar em sala de aula o que chamam de “ideologia de gênero”. Contudo, penso que o aspecto mitológico e lúdico prevaleceu durante as aulas e não houve problemas em relação a isso, como podemos ver na transcrição de uma aula que abordou esse assunto:

Na aula seguinte, dando sequência às aulas 15, 16, 17 e 18, pedi ao aluno JPF1 para recontar o que lemos para rememorarmos a história. Ele disse que “a história começa quando Gaia estava muito brava com Urano, porque a barriga dela estava enorme. Então ela pegou o adamanto e fez uma foice. Pra matar o Urano”.

Então eu perguntei: “Era pra matar ele mesmo?”.

JPF1 respondeu:

Bom, era pra tirar ele de cima dela, né? Pros filhos poderem sair e terem uma vida normal. Aí ela fez essa foice e falou pros filhos dela que queria que alguém tivesse coragem pra tirar ele de cima dela. Crono se apresentou, porque ele já nasceu odiando o pai. Então ele foi e fez uma tocaia sem o pai dele saber. Aí ele foi e tirou aquelas partes do homem, sabe, tia, eu não vou falar.

Então completei: “As partes íntimas.”

JPF1: “É, as partes íntimas”.

A partir dessa frase, começa-se a narrativa do nascimento de Afrodite, que ocorreu nas três turmas, sem nenhum contratempo que eu temia.

Confrontos em relação às crenças religiosas particulares ocorreram em algumas aulas. Confesso que esta foi uma questão complicada, mas, de um modo geral, penso que os conflitos foram positivos, uma vez que colocam costumes e dogmas em questão. E, em se tratando de ensino de Filosofia, esta é uma contribuição consideravelmente importante.

Houve um episódio que considero bastante significativo a respeito do tema religião. Como questionaram sobre a origem do mundo, “de verdade”, perguntei se já ouviram algo a respeito da teoria do Big Bang. O IF2 respondeu que é sobre uma partícula que explodiu e gerou o universo. Nesse momento, o PF2 tapou os ouvidos, dizendo que sua religião não lhe permitia ouvir sobre ciência. Eu disse a ele que “não estou falando que é assim ou assado, mas que há cientistas que estudam isso e que, inclusive, Stephen Hawking já tem uma teoria diferente”. Ele respondeu que “esses cientistas só ficam inventando coisa”, de maneira bem ríspida. Nesse momento, esclareci que não é assim. Ao contrário, cientistas são pessoas que estudam, observam, escrevem e que nós não podemos simplesmente ignorar e dizer que eles ficam inventando coisas. Disse também que não podemos ter a cabeça fechada para os conhecimentos e não estudar porque achamos que já sabemos de tudo. Falei ainda que os mitos que estamos estudando apresentam o modo como os gregos acreditavam ser a origem do mundo há muitos anos antes de Cristo. Então, o aluno GF2 fez uma afirmação bastante perspicaz: “Esse era o Big Bang deles, né, professora?” Eu disse que sim e continuamos.

51

O fenômeno observado durante as aulas corrobora os resultados da pesquisa Wellcome Global Monitor 2018, um estudo realizado com pessoas de todo o mundo sobre como elas pensam e sentem sobre a ciência e os principais desafios de saúde. Esse estudo apresenta diversas variações, como: em países com maior desigualdade econômica, as pessoas tendem a confiar menos nos cientistas (GALLUP, 2019, p. 50).

Em âmbito global, entre as pessoas com afiliação religiosa, 55% concordariam com seus ensinamentos religiosos, em caso de desacordo entre a ciência e sua religião; 29% concordariam com a ciência e 13% disseram que depende do problema. Globalmente, 64% das pessoas que têm afiliação religiosa, dentre as que disseram que a religião é uma parte importante de sua vida diária, afirmaram que, quando há um desacordo, elas acreditam na religião, em detrimento da ciência. Em relação ao Brasil, dentre os que consideram a religião importante em suas vidas, 75% disseram que, quando ciência e religião discordam, escolhem a religião. Apenas 13% dos brasileiros entrevistados afirmaram ter "muita confiança" na produção científica (GALLUP, 2019).

É interessante notar, que mesmo os alunos que se revoltaram durante as aulas, o fizeram, na maioria das vezes, quando o assunto em pauta foi a própria ciência em contradição com suas crenças religiosas. Nos momentos em que entraram em conflito porque os seres mitológicos gregos diferem do que prega a sua religião, eles mesmos conseguiram meios para resolver o conflito, comparando Urano e Gaia ou Crono e Reia a Adão e Eva, dizendo que se “casaram” porque não havia mais seres no universo para se multiplicarem. Penso que podemos dizer que aceitaram e, mais do que isso, se envolveram lúdica e significativamente com as histórias e as atividades apresentadas, porque mitologia e religiosidade são da mesma natureza. São afins e aceitáveis do mesmo modo.

No item “Relações com o mundo” saliento o jogo God of War (um jogo eletrônico desenvolvido pela Santa Monica Studio e publicado pela primeira vez em 2005 para Playstation 2. É vagamente baseado na mitologia grega e tem a vingança como seu motivo central. O jogador controla o protagonista Kratos (personagem que não existe na mitologia de Hesíodo e Homero). Mais informações em: https://godofwar.playstation.com/) e o metal Adamanto, citado por Hesíodo quando narra a castração de Urano. Nas três turmas, os alunos, principalmente os meninos, identificaram o nome “adamanto” com o metal do personagem Wolverine, como também do filme do Pantera Negra. O JPF1 falou que no Capitão América também tem um metal com um nome parecido. Pesquisamos na internet para saber mais sobre esse metal e descobrimos que é um metal forte, com poderes mágicos que não existe na realidade. Aparece, frequentemente, nas histórias da mitologia e de super-heróis, que também são um tipo de mitologia. Vale ressaltar que o jogo também é mais conhecido e jogado pelos meninos, em detrimento das meninas, o que, aparentemente, causou um interesse pelo projeto bem maior por parte dos meninos.

52

Para auxiliar na compreensão de um poema extremamente “árido” para estudantes de 6º ano do ensino fundamental, recorri, em todas as aulas, ao recurso da utilização de imagens. Foi feita, para a produção do material didático, uma longa pesquisa de imagens referentes à Grécia antiga, como também de representações dos deuses presentes na Teogonia de Hesíodo por diferentes artistas em vários períodos históricos. Algumas foram escolhidas e inseridas na sequência didática e, a seguir, impressas e plastificadas em tamanho maior, coloridas, para que os estudantes pudessem ver detalhes e manuseá-las no decorrer das aulas. Elas ficaram sempre disponíveis para observação e foram de suma importância para a realização das atividades propostas na sequência didática.

4. Divulgação de sua forma de acesso/compartilhamento ou a própria disponibilização do produto

A sequência didática será publicada em forma de Ebook como também está disponível no repositório EduCapes, no seguinte identificador: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/553427

5. Considerações finais sobre o alcance do produto, a avaliação de sua aplicação, entre outras

Aos professores que se interessarem por este projeto, saliento que ele pretende não ser estanque. Ao contrário, com expectativa de flexibilidade, penso que as aulas programadas podem tanto ser aplicadas como foram planejadas, como também é possível adaptar de diversos modos. Podem ser utilizados outros poemas antigos (como a Ilíada e a Odisseia), como também poemas recentes que possibilitem a recriação do texto em forma narrativa; a execução de menor quantidade de aulas também é possível, como também podem ser suprimidas, acrescentadas e modificadas. Ao final da realização das atividades, os envolvidos poderão escrever um texto avaliativo a partir de suas impressões das experiências vividas, como também podem ter a oportunidade de exercer a livre criação a partir das aulas, como textos, desenhos, teatro, dança e experiências estéticas diversas. Proponho ainda que seja feita uma exposição dessas obras criadas por eles, dependendo da disponibilidade de espaço e tempo da escola para exercitar a capacidade criativa dos indivíduos.

Considero, como pesquisadora, que este trabalho é relevante por contribuir significativamente para o ensino de Filosofia, notadamente como possibilidade de aplicação no ensino fundamental, para o qual ainda não há variedade considerável de propostas desta natureza. A utilização do material poderá proporcionar a realização de atividades que envolvem a formação mais ampla do ser humano a partir da produção de narrativas sobre os mitos.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego e notas de António Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Col. Os Pensadores, vol. II).

BRANDÃO, Ramon Taniguchi Piretti. Resenha A Ordem do Discurso. InterEspaçoGrajaú/MA, v. 1, n. 3 p. 392-398, 2015. Ed. Especial. ISSN: 2446-6549.

CASTORIADIS, Cornelius. Fenêtre Sur Le Chaos. Édition préparée par Enrique Escobar, Mirto Gordicas et Pascal Vernay. Éditions du Seuil, janvier 2007.

53

CASTORIADIS, Cornelius. Janela Sobre o Caos. Tradução de Leandro Neves Cardin. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora UNESP, 1998.

ECO, Umberto. Sobre Algumas Funções da Literatura. Discurso no Festival dos Escritores, Mântua, setembro de 2000. Depois em Studi di estetica (“II perché della letteratura”), 23, 2001.

GALLUP. Wellcome Global Monitor 2018. How does the world feel about science and health? 2019. Disponível em: https://wellcome.ac.uk/sites/default/files/wellcome-global-monitor-2018.pdf. Acesso em: jul. 2019.

HESÍODO. Teogonia. Tradução e introdução de Christian Werner. São Paulo: Hedra, 2013.

HESÍODO. Teogonia a Origem dos Deuses. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003.

JAEGER, Werner Wilherlm. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira; adaptação do texto para a edição brasileira Monica Stabel; revisão do texto grego Gilson César Cardoso de Souza. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

KRAUSZ, Luis S. As Musas: Poesia e Divindade na Grécia Arcaica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.

MURCHO, Desidério. A Natureza da Filosofia e o Seu Ensino. Educ. e Filos., Uberlândia, v. 22, n. 44, p. 79-99, jul./dez. 2008.

PLATÃO. A República de Platão. J. Guinsburg organização e tradução. São Paulo: Perspectiva, 2006.

PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO da Escola Municipal Brice Francisco Cordeiro, 2018.

ROMILLY. J. D. A Tragédia Grega. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2008.

VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Murachco. 2. ed., I. Reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos: Estudos de Psicologia Histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. São Paulo, Difusão Europeia do Livro. Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. [por Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet. Tradução de Anna Lia A. de Almeida Prado, Maria da Conceição M. Cavalcante e Filomena Yoshie Hirata Garcia]. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

VIDAL-NAQUET, Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. 16. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006.

VIDAL-NAQUET, Pierre. O Mundo de Homero. Tradução Jonatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CONTATOS
Ana Maria Siqueira Silva •
Mestre em Ensino na Educação Básica pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica do CEPAE/UFG •
anasiqueira4@gmail.com
Evandson Paiva Ferreira •
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Goiás •
evandson@ufg.br