Tecendo Identidades de Gênero

Capítulo 4

Desbravando o Caminho para Abordar Questões de Gênero na Prática: o papel as narrativas de recepção infantil e juvenil

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A educação escolar desempenha papel fundamental na formação dos indivíduos, influenciando tanto na sua inserção crítica no mundo quanto na perpetuação de estruturas injustas. Conforme Paulo Freire (2000, p. 27) argumenta, a educação não é neutra, pois pode servir tanto à transformação social quanto à manutenção do status quo. Nesse sentido, é imprescindível reconhecer a importância da educação no processo de construção de identidades individuais, especialmente no que diz respeito às relações de gênero.

Guacira Lopes Louro (2014) ressalta a responsabilidade das instituições educacionais de promover uma abordagem inclusiva, que valorize a diversidade e permita a expressão autônoma das identidades dos indivíduos. Desse modo, a discussão sobre gênero e diversidade no âmbito educacional tornou-se uma necessidade premente na sociedade contemporânea. É preciso questionar as estruturas que perpetuam opressão, negação e silenciamento, as quais são frequentemente naturalizadas no ambiente escolar. A autora enfatiza a importância de se questionar o que é considerado “natural”, sugerindo a urgência em romper com determinados processos para possibilitar novas narrativas e configurações dentro de um novo contexto (p. 67).

Com o objetivo de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, a escola deve assumir o papel de facilitadora de discussões que ampliem o entendimento sobre identidades de gênero. Almeja-se formar cidadãos com pensamento crítico, capazes de imaginar novos paradigmas e livres de preconceitos, promovendo, assim, uma cultura de respeito à diversidade.

Promover discussões sobre relações de gênero, na prática educacional, a partir da leitura de narrativas literárias de recepção infantil e juvenil, envolve uma abordagem cuidadosa e deliberada. É necessário:

  1. escolher narrativas que apresentem personagens que desafiem estereótipos de gênero;
  2. realizar leitura crítica para identificar as questões de gênero que perpassam as narrativas, antes de compartilhá-las com os/as alunos/as;
  3. promover um contexto adequado para debates sobre as questões de gênero manifestas nas histórias, com atenção às necessidades e sensibilidades dos/as alunos/as e cuidado para que a discussão seja inclusiva e respeitosa quanto às diferentes perspectivas e experiências de gênero;
  4. promover atividades que incentivem os/as educandos/as a reconhecerem suas próprias identidades de gênero e a perceberem como elas são influenciadas pelos valores cultivados pela sociedade. Isso pode incluir discussões em grupo, escrita criativa, dramatizações e projetos artísticos;
  5. enfatizar a importância da empatia e do respeito em relação à diversidade de gêneros;
  6. incentivar os/as estudantes a pensarem em maneiras de se promover a equidade de gêneros em suas próprias vidas e comunidades. Isso pode incluir ações como desafiar estereótipos de gênero, apoiar organizações que trabalhem em prol da igualdade de gêneros ou criar projetos que promovam a inclusão e o respeito à diversidade.

Ao adotar essa abordagem, os/as educadores/as podem contribuir significativamente para a criação de um ambiente escolar que valorize a equidade de gêneros e respeite a diversidade de identidades, promovendo, assim, uma educação inclusiva e fortalecida para todos/as.

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4.1 Caminhos metodológicos para uma abordagem das narrativas literárias apresentadas

Com o intuito de desenvolver uma sequência didática abrangendo temas como o preconceito, a discriminação e a desigualdade de gêneros, optamos por promover, por meio de pesquisa envolvendo estudantes do Ensino Fundamental, discussões a partir da leitura de narrativas literárias direcionadas ao público infantil e juvenil. Conforme anteriormente mencionado, reconhecemos que a literatura pode ser uma poderosa aliada na problematização de estereótipos, desde a infância.

A análise das personagens presentes nas narrativas estudadas proporcionou aos/às estudantes a oportunidade de desenvolver a empatia necessária para a construção de uma sociedade mais inclusiva. A leitura das narrativas selecionadas constituiu-se como ponto de partida para discussões sobre gênero e feminismo, tornando o espaço da sala de aula propício para tratar, de maneira sensível e acessível, das complexidades dessas questões.

Conforme observado, o contato com personagens como Isabel, de Bisa Bia, Bisa Bel, Branca de Neve e a Moça Tecelã permitiu que as crianças compreendessem a importância de posturas que desafiam estereótipos de gênero, e isso contribuiu para a possibilidade de construção de identidades de gênero, livre de julgamentos e de preconceitos.

Aguiar e Bordini (1988) ressaltam que a exposição a uma variedade de textos pode favorecer a expansão do horizonte de compreensão dos/as educandos/as, permitindo-lhes uma melhor percepção do presente e do seu papel como sujeitos históricos. Nessa perspectiva, a sequência didática trabalhada procurou abarcar um corpus literário, cuja leitura pudesse ampliar a formação literária dos/as alunos/as e contribuir para o desenvolvimento de uma consciência crítica e socialmente responsável acerca de questões que dizem respeito a gênero e feminismo.

Para desenvolver a sequência didática, optamos pelo Método Recepcional, seguindo uma série de passos bem definidos e organizados. No primeiro encontro, buscando identificar os horizontes de expectativa dos/as estudantes e as possibilidades de recepção, na turma, de textos sobre o tema em questão, foi realizada uma roda de conversa, na qual todos/as puderam expressar suas compreensões e opiniões. Foi possível perceber que a maioria tinha conceitos equivocados e preconceituosos, mas todos/as demonstraram interesse pelo tema. Foi proposto aos/às estudantes que dialogassem com suas famílias para obter um entendimento das vivências de suas bisavós, avós ou mães, na infância, abrangendo aspectos como brincadeiras e oportunidades disponíveis na época. Além disso, as crianças foram incentivadas a levar para a sala de aula fotografias e objetos de época.

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No segundo encontro, tendo como objetivo ampliar o repertório cultural dos/as alunos/as, todos/as puderam apresentar suas expectativas, após o diálogo com a família. Desencadearam-se, a partir desse momento, debates focalizados na evolução histórica do papel da mulher na sociedade. Durante as conversas, houve reflexões sobre as mudanças ocorridas ao longo do tempo e sobre como isso moldou as experiências femininas.

No terceiro encontro, apresentaram-se, inicialmente, as biografias de Ana Maria Machado, de Rita Murrow e de Marina Colasanti. Em seguida, houve abordagens de suas respectivas narrativas Bisa Bia, Bisa Bel, Lute como uma princesa, com o conto da “Branca de Neve”, e A Moça Tecelã. As abordagens incluíram sessões de leitura e escrita coletiva, discussões em grupo, com alternância constante entre a leitura, interações e debates. Ao longo desse processo, os/as estudantes, gradualmente, passaram a discernir como as identidades femininas foram moldadas ao longo das décadas.

Em um quarto encontro, os questionamentos e as inquietações foram suscitados pelas novas leituras e discussões, partindo dos conhecimentos que as crianças já possuíam, gerando reflexões e novas possibilidades de reavaliar comportamentos e ideias acerca do universo feminino. As respostas variaram significativamente. Enquanto alguns/algumas manifestaram indignação e revolta diante das disparidades históricas, outros/as demonstraram indiferença.

Já no quinto encontro, concretizou-se o processo de ampliação dos horizontes de expectativas ou assimilação. Os/as alunos/as criaram e apresentaram cartazes, fundamentando-se nas discussões que ocorreram em sala de aula. Nesse encontro, ficou evidente que nenhum/nenhuma aluno/a ficou passivo diante das narrativas abordadas, todos/as participaram, ativamente, das discussões dos tópicos apresentados.

Notou-se que os/as leitores/as tiveram a oportunidade de assimilar novas ideias relacionadas ao mundo real, o que, possivelmente, suscitou mudanças comportamentais e uma expansão de suas perspectivas culturais. Mesmo entre aqueles/as que, inicialmente, demonstraram indiferença ou expressaram a visão de que o tema era dispensável, ao final do processo, de maneira discreta, relataram que nunca levaram em conta as diferenças históricas na atribuição de papéis sociais a homens e mulheres.

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Concluímos que a concretização da sequência didática trouxe contribuições significativas para o processo formativo dos/as estudantes envolvidos na investigação. A recorrência ao Método Recepcional, para criar um ambiente propício para debates sobre temas de tanta importância, revelou-se como uma estratégia complexa e necessária. A literatura, nesse sentido, confirmou-se como fundamental, em sua função estética, e como ponto de partida para que se pusessem em pauta questões essenciais referentes às relações de gêneros na sociedade atual.

Os/as alunos/as demonstraram receptividade quanto às narrativas apresentadas, muitos/as estabeleceram conexões entre elas e suas vivências cotidianas, inclusive, compartilharam relatos de seus familiares, o que lhes permitiu vislumbrar outras perspectivas para a construção de identidades de gênero. Nesse contexto, o processo não apenas abriu portas para uma reavaliação, por parte dos/as estudantes, de suas percepções acerca dos papéis atribuídos, socialmente, a homens e a mulheres, mas também os incentivou no sentido de uma participação ativa em debates sobre relações de gêneros.

As discussões que emergiram dessa abordagem confirmaram a importância da leitura literária no processo formativo das crianças e dos jovens, especialmente, quando se investe com o intuito de contribuir para a ampliação de seus horizontes de expectativas como leitores/as. O conjunto de estratégias que compreendem o Método Recepcional se revelou pertinente, nesse sentido, pois favoreceu a construção de um ambiente educacional inclusivo e consciente, capaz de levar ao desenvolvimento de perspectivas mais sensíveis, no que tange questões relacionadas a gêneros.

4.2 Práticas cotidianas na escola para promover igualdade de gêneros

Embora a presença de meninos e meninas na mesma escola seja um passo importante para a promoção da igualdade de gêneros, simplesmente reunir meninos e meninas não é suficiente para eliminar a desigualdade entre os papéis sociais atribuídos a eles e a elas. Isso porque se trata de um fenômeno complexo, enraizado em várias instituições e estruturas sociais, incluindo a educacional.

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Para que a igualdade de gêneros seja promovida, são necessárias ações específicas, voltadas para o combate de todas as formas de preconceito e discriminação manifestas no cotidiano, assim como para a desconstrução de estereótipos que persistem em muitas sociedades. Nessa perspectiva, é importante envolver toda a comunidade escolar, incluindo professores/as, servidores/as administrativos/as, pais, mães e alunos/as, em debates que põem em pauta a importância do reconhecimento, da valorização e do respeito à diversidade de gêneros.

Algumas mudanças simples que fazem a diferença:

  1. Demonstrar que não existem carreiras e profissões para meninos e outras para meninas;
  2. Vincular em todos os momentos mensagens de que não existem coisas de meninos, de um lado, e coisas de meninas, de outro;
  3. Desvincular as cores rosa, para meninas, e azul, para meninos. Afinal, todas as cores são para todos/as, independentemente de gênero;
  4. Perceber que valores e comportamentos como: afetividade, organização, força, carinho, racionalidade, coragem, correr, pular, gritar, chorar, lutar são movimentos igualmente aceitos para meninos e meninas;
  5. Evitar fazer filas de meninas e filas de meninos, pode-se pensar em filas mistas;
  6. Implementar currículos inclusivos que abordem questões de gênero de maneira sensível e adequada;
  7. Promover programas de conscientização sobre os direitos das mulheres e dos homens, por meio de um currículo que busque a equidade de gênero, com debates sobre sexualidade em todas as disciplinas;
  8. Buscar conhecer, em diferentes áreas de atuação, mulheres que tiveram destaques, por exemplo: na ciência, na história, na literatura, na física e em tantos outros campos que muitos acreditam que apenas homens tiveram destaque. É necessário conhecer a história de diferentes mulheres para que elas possam ser valorizadas e que outras mulheres e meninas se inspirem nelas;
  9. Estimular, em sala de aula e no pátio da escola, trabalhos e brincadeiras para serem desenvolvidas em conjunto;
  10. Encorajar meninos e meninas, igualmente, a serem líderes em grupos, brincadeiras e a falarem em público;
  11. Discutir e eliminar piadas racistas, machistas e misóginas;
  12. Sempre intervir e buscar fazer reflexões quando meninos e meninas estiverem sendo preconceituosos;
  13. Estimular a cooperação entre meninos e meninas, desencorajando a competição de gêneros, inclusive, evitando jogos com times de meninos contra time de meninas;
  14. Promover rodízio de atividades entre meninos e meninas, para que todos/as entendam que, independentemente de serem meninos ou meninas, todos/as podem desenvolver as mesmas atividades, como: servir lanche, carregar uma caixa, passar um pano na mesa que sujou, arrumar os brinquedos que espalhou etc.;
  15. Investir na capacitação e formação profissional da comunidade escolar, por meio da promoção de debates e reflexões sobre a importância de uma educação que busque a equidade de gêneros;
  16. Na hora de escolher livros didáticos, é importante observar como são apresentadas as imagens de mulheres, meninas, meninos e homens. Buscar por material didático que apresente uma educação igualitária;
17 Desenvolver ações que busquem trabalhar, de forma permanente, uma educação comprometida com a equidade de gêneros, entendendo que as ações devem ser desenvolvidas ao logo do ano e não apenas em datas comemorativas, e acima de tudo, precisam estar contempladas no Projeto Político- Pedagógico da escola.

É fundamental efetivar políticas e práticas que promovam a equidade de gêneros na escola, com medidas para prevenir e responder ao assédio sexual e à violência de gênero. Em suma, é essencial implementar ações específicas e intencionais para acabar com a desigualdade de gêneros na escola e na sociedade como um todo. Isso requer um compromisso contínuo e colaborativo de todos os setores da comunidade escolar e além dela.

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4.3. Reflexão

Na abordagem do tema de que trata este Produto Educacional, na escola campo da pesquisa empreendida, foi possível perceber o apreço que as crianças demonstraram pela maneira como apresentamos as histórias, destacando, especialmente, a apreciação da narrativa de Bisa Bia, Bisa Bel. A maioria também manifestou interesse pelo conto A Moça Tecelã. Os/as estudantes compartilharam que, muitas vezes, ao chegarem em casa, conversavam com seus responsáveis sobre as histórias e enfatizavam a importância de tratar as mulheres com respeito, destacando seus direitos iguais aos dos homens. Muitos/as estudantes observaram que alguns pais, embora surpresos, concordaram com os/as filhos/as. Em outros momentos, compartilharam suas reflexões sobre relacionamentos, expressando sua consternação diante do tratamento desrespeitoso e preconceituoso que as mulheres ainda enfrentam.

Os relatos apresentados reforçam a ideia de que a leitura literária leva o/a leitor/a a refletir sobre as próprias experiências, posto que a literatura tem natureza complexa e aberta. Conforme Aguiar e Bordini (1988) discutem, a pluralidade de significados dos textos literários indica que eles podem ser interpretados de diversas maneiras. Cada leitor/a pode extrair significados distintos de um texto, dependendo de suas experiências, perspectivas e contexto sociocultural. Assim, é válido ressaltar que o texto literário não se restringe a uma única interpretação; ao contrário, oferece múltiplas camadas de significado. Essa característica possibilita uma ampla variedade de reflexões e conexões pessoais, como evidenciado nas observações dos/as estudantes. Dessa forma, a experiência estética, a partir da leitura literária, além de enriquecer o repertório individual do/a leitor/a, capacita-o/a para reavaliar sua própria realidade e a ressignificá-la.

É válido ressaltar ainda que a abordagem de narrativas femininas na educação, tanto para meninas quanto para meninos, desempenha um papel crucial para a compreensão da importância da mulher na história e na sociedade contemporânea. Essa prática não só valoriza as contribuições das mulheres, mas também promove conscientização sobre questões de gênero e desigualdades que precisam ser rompidas. Para isso, é necessário reconhecer que a história da humanidade tem sido contada, predominantemente, do ponto de vista masculino, muitas vezes ignorando ou minimizando as experiências e realizações das mulheres. Em se tratando da literatura, é incontestável o fato de, ao longo da história, ela ter reunido mais títulos de autoria masculina do que de autoria feminina, em reflexo de uma trajetória de desvalorização da capacidade da mulher para ocupar espaços de poder e status social reservados para os homens. Ao incluir narrativas femininas no currículo educacional, os/as alunos/as têm a oportunidade de se familiarizar com uma variedade de vozes e perspectivas femininas, o que contribui para uma visão mais abrangente e equilibrada da história e da sociedade.

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Além disso, ao estudar narrativas femininas, tanto meninas quanto meninos podem desenvolver empatia e compreensão acerca das experiências e desafios enfrentados pelas mulheres, ao longo da história e na atualidade. Isso é fundamental para se promover a equidade de gêneros e combater o sexismo e a discriminação de gêneros.

Quanto à importância de demonstrar o privilégio da mulher branca em relação à mulher negra, é essencial que as discussões na escola sejam capazes de promover o reconhecimento de que o feminismo precisa ser inclusivo e interseccional. Mulheres brancas e negras enfrentam diferentes formas de discriminação e opressão, e é importante que as mulheres brancas reconheçam e confrontem seu próprio privilégio racial. Ao estudar narrativas escritas por mulheres negras e discutir questões como o racismo sistêmico e a interseccionalidade, os/as alunos/as podem desenvolver uma compreensão mais profunda das interconexões entre gêneros, raça e outras formas de opressão. Isso contribui para uma abordagem mais abrangente e inclusiva do feminismo, que busca não apenas a igualdade de gêneros, mas também a justiça social para todas as mulheres, independentemente de sua raça, etnia ou origem socioeconômica.

Em suma, proporcionar a leitura de narrativas literárias em que se ressaltam questões relacionadas ao universo feminino é essencial para que o repertório literário dos/as estudantes seja ampliado e a equidade de gêneros possa ser vislumbrada. E ao reconhecerem o privilégio da mulher branca em relação à mulher negra, os/as jovens leitores/as podem desenvolver uma compreensão mais profunda das experiências das mulheres na história e na sociedade contemporânea, tornando-se capazes de contribuir para um movimento feminista mais inclusivo.