A leitura de narrativas literárias destinadas ao público infantil e juvenil pode desempenhar papel importante no desenvolvimento das crianças e dos jovens. Diversas narrativas literárias desafiam os estereótipos de gênero estabelecidos, apresentando personagens que não se limitam aos parâmetros sociais de masculinidade e feminilidade. O acesso a essas narrativas é capaz de ajudar a desconstruir ideias preconcebidas sobre o que é ser homem ou mulher, promovendo uma compreensão mais aprofundada e flexível quanto a identidades de gênero.
Ao promover o acesso dos/as estudantes a histórias que problematizam o machismo e a misoginia, por exemplo, a escola cumpre a importante função de investir para que se estabeleça um contexto social, no qual a discriminação e a violência de gênero sejam combatidas, o respeito à diversidade se torne uma realidade e todas as pessoas possam ter oportunidade de ser livres para viver conforme suas identidades de gênero.
O processo educacional, nesse sentido, compreende um conjunto de finalidades que extrapolam os currículos voltados, com exclusividade, aos conteúdos específicos das áreas do conhecimento, pois pressupõe abertura capaz de abarcar as mais diversas questões que dizem respeito à formação humana. Por esta razão, promover momentos de debates em sala de aula, com atenção às necessidades prementes dos/as estudantes, precisa constar sempre entre os principais objetivos da prática educacional. A leitura de narrativas literárias de recepção infantil e juvenil, cujas personagens suscitam discussões relacionadas a identidades de gênero, pode ser, enfim, um ponto de partida fundamental para se colocar em pauta a importância da desconstrução de estereótipos de gênero, da equidade entre homens e mulheres, do cultivo da empatia e do respeito à diversidade, como forma de prevenir e de combater a discriminação e a violência de gênero.
3.1 Algumas narrativas literárias e diálogos possíveis sobre a construção de identidades de gênero
A leitura literária, conforme já ressaltado neste trabalho, é essencial para que crianças e jovens ampliem sua consciência crítica sobre diversas questões da realidade, sobretudo quando é seguida de diálogos capazes de despertar reflexões relevantes. Em se tratando de relações de gênero, há enredos ficcionais que despertam questionamentos acerca dos papéis sociais atribuídos, historicamente, aos homens e às mulheres.
Desta forma, a introdução de uma literatura que problematize relações de desigualdade entre gêneros configura-se como papel político a ser desempenhado pela escola. Isso se fundamenta no reconhecimento da necessidade de proporcionar aos/às estudantes oportunidades de explorar outros universos, conhecer diversas perspectivas e, desde a infância, construir uma visão de mundo humanizada. A promoção da leitura literária na escola é, portanto, essencial, haja vista que, além de cumprir função estética, essa leitura pode abrir caminhos para diálogos fundamentais na formação de crianças e jovens.
Apesar das transformações sociais já ocorridas, observa-se, nas dinâmicas familiares, resquícios de uma visão marcada, em diferentes graus, por aspectos machistas em relação às interações humanas. A escola, por sua vez, embora ainda reflita muitos padrões presentes nas estruturas familiares, assume em grande parte a crucial função de apresentar aos/às estudantes perspectivas diferentes, pautadas na igualdade de gêneros, em contraste com a tradicional visão patriarcal.
Desse modo, ressalta-se neste trabalho a intenção de evidenciar que é possível a escola investir para que meninos e meninas compreendam a importância do cultivo de relações pautadas no respeito mútuo. Conforme destacado por Daniela Auad (2022), a escola deve desempenhar o papel de gerenciar as relações de gênero, questionando e reconstruindo as concepções em torno do feminino e do masculino.
Dito isto, sugerimos um trabalho pedagógico a partir da leitura de três narrativas literárias: Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado; Lute como uma princesa, de Rita Murrow; e A Moça Tecelã, de Marina Colasanti. Nos subtópicos seguintes, as referidas narrativas serão apresentadas, objetivando compartilhar, de forma breve, algumas possibilidades de diálogos a respeito da construção de identidades de gênero, por meio da leitura literária.
3.1.1 O papel histórico da mulher em Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado.
É possível perceber que a literatura reflete as mudanças que ocorrem em contextos sociais específicos. As personagens, nesse sentido, espelham as aspirações de cada época retratada e, por vezes, ilustram as lutas empreendidas no plano coletivo, como é o caso das que resultaram nas conquistas alcançadas pelas mulheres no decorrer da história da humanidade. Em narrativas como Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado, observa-se uma tensão entre valores e costumes de épocas distintas, fazendo com que os/as leitores/as sejam levados/as a refletir sobre a necessidade de se flexibilizar o olhar, quando se põem frente à frente gerações distanciadas entre si, no tempo histórico.
Bisa Bia, Bisa Bel, narrativa publicada inicialmente em 1982, traz para o nicho literário um protagonismo feminino que se atrela, mesmo de forma ficcional e dentro do universo infantil, às mudanças pelas quais a figura feminina passou na sociedade, especificamente, no decorrer do século XX. No livro, o tema da liberdade aparece em nuança específica: trata-se da liberdade de ser e agir, que as mulheres vêm conquistando ao longo dos anos, e que abre espaço para um tempo histórico que possibilita reflexões, especialmente para as crianças.
A narrativa apresenta a história envolvente da relação de uma menina chamada Isabel com sua bisavó Bia e, mais tarde, com sua bisneta Beta. É um encontro entre passado, presente e futuro, marcado por ternura e sensibilidade, repleto de representações sociais e históricas do universo feminino. Isabel representa as personagens femininas que ainda carregam características de uma sociedade patriarcal, contudo, por serem ativas, questionadoras e críticas, buscam romper com paradigmas conservadores. Representações como essa oferecem aos/às leitores/as oportunidades valiosas para se refletir acerca dos papéis sociais atribuídos às mulheres, na sociedade brasileira, desde a infância.
3.1.2 “Branca de Neve”: Uma análise comparativa entre a versão dos Irmãos Grimm e a narrativa em Lute como uma Princesa, de Rita Murrow
A análise comparativa aqui esboçada tem o objetivo de distinguir padrões de comportamento estabelecidos para mulheres, em períodos históricos distintos. São referências para a análise o conto “Branca de Neve”, versão dos Irmãos Grimm, e a narrativa sob o mesmo título do conto, publicada no livro Lute como uma Princesa, de Rita Murrow. São destacadas as diferenças entre as narrativas, verificando as mudanças nos ideais de feminilidade ao longo do tempo, situando a mulher em narrativas dirigidas ao público infantil e juvenil.
Em Contos dos Irmãos Grimm, de Dra. Clarissa Pinkola Estès (2005), a história de Branca de Neve tem início com a rainha expressando seu desejo de ter uma filha que possua características idealizadas: “Quem me dera ter uma filha tão alva como a neve, carminada como o sangue e cujo rosto fosse emoldurado de preto como o ébano!” (p.23). Este trecho inicial evidencia a busca pela perfeição, por parte da rainha. Essa concepção de beleza permeia toda a narrativa. No decorrer da história, Branca de Neve perde a mãe, o pai dela se casa novamente com uma bela mulher. A madrasta passa toda a narrativa preocupada em ser a mulher mais bela do reino. Por meio de um espelho mágico, descobre que Branca de Neve é mais bela que ela. Consumida pela inveja, a rainha ordena a execução de Branca de Neve, mas o caçador designado para a tarefa poupa a vida da jovem. A rainha tenta, de todas as maneiras, eliminar a princesa de seu caminho, mas nada dá certo. Ao final da história, a princesa se casa com o príncipe, dá um baile e convida a rainha, que é obrigada a dançar até a sua morte.
No livro Lute como uma Princesa, da autora Vita Murrow (2019), a versão de “Branca de Neve” apresenta uma abordagem contemporânea da clássica história. Por conta da ausência do rei, a rainha passa a executar os deveres reais. No entanto, a rainha logo percebe que as pessoas do reino estavam mais interessadas em sua aparência e nas roupas que vestia do que naquilo que ela fazia pelo reino. Assim, a rainha passa a buscar padrões de beleza impostos pela sociedade para estar sempre em evidência. A voz do espelho mágico também influencia os comportamentos e as ações da madrasta. Essa voz representa a sociedade, como que refletindo as normas de gênero do patriarcado. Nessa narrativa, a madrasta deseja impor, tal como sua sociedade lhe impôs, padrões de beleza a sua enteada Branca de Neve, que reluta em aceitar esses padrões, criando, assim, um atrito entre elas.
É possível perceber que a princesa é corajosa, que desafia as expectativas tradicionais acerca da figura feminina. A narrativa destaca valores de autoconfiança e autodeterminação, oferecendo uma perspectiva moderna para as crianças, desconstruindo estereótipos de gênero e promovendo a ideia de que as meninas podem ser protagonistas ativas de suas próprias histórias.
É importante observar que, nesta versão, em nenhum momento a madrasta tenta matar a enteada. Ela usa da magia para que a enteada fique feia e não seja vencedora do concurso de beleza. Apesar das atualizações para refletir valores contemporâneos, o reconto mantém elementos do conto original, incluindo a dinâmica da princesa, da madrasta, o espelho mágico e a ênfase na busca pela beleza. Nesta versão específica, Branca de Neve entra em um sono profundo, mas é resgatada pela própria rainha, que demonstra arrependimento e parte em sua busca. Convencida da inexistência da perfeição humana, a madrasta rejeita o idealismo associado ao corpo feminino, contradizendo a noção de um modelo perfeito e inatingível. Assim, tanto a princesa quanto a madrasta advogam pela valorização da beleza interior.
Ao apresentar as duas versões da história de Branca de Neve para crianças, estabelecendo um diálogo que põe em pauta os diferentes contextos das narrativas e a visão de mundo representada em cada uma delas, sobretudo no que diz respeito à condição da mulher, é possível despertar inquietações e questionamentos em relação à aceitação dos padrões de beleza que ainda prevalecem na sociedade. É possível também promover uma reflexão importante sobre a valorização da igualdade de gêneros, trazendo para um debate crítico questões relacionadas aos desafios assumidos por mulheres que, desde cedo, procuram ser independentes e bem-sucedidas na construção de suas próprias histórias.
3.1.3 Identidades de gênero à luz da narrativa: A Moça Tecelã, de Marina Colasanti
O propósito de apresentar o conto A Moça Tecelã, de Marina Colasanti (2004), é enfatizar a relevância da leitura literária na formação humana, considerando a capacidade universal de se identificar com narrativas e buscar transformações para a realidade. A protagonista é uma jovem habilidosa na arte de tecer, e seu tear mágico confere à narrativa uma atmosfera de contos de fada, de modo que tudo o que ela tece ganha vida. Nesse contexto, por meio de seu trabalho, a moça tecelã é capaz de construir e de desconstruir toda a realidade em torno de si, inclusive os rumos de sua própria trajetória.
A protagonista do conto detém o controle sobre as transformações ao seu redor, entrelaçando dois elementos simbólicos fundamentais: o desejo e a liberdade. Ela é capaz de influenciar o curso dos acontecimentos e iniciar e concluir ciclos, tanto universais quanto pessoais. É relevante destacar que a moça tecelã não apenas influencia nascimentos, mas também dita o curso dos dias e a sequência dos acontecimentos. Diante de seu poder e necessidades, decide criar uma companhia para si. A moça busca na sua imaginação as cores e as formas para tecer o seu amado. No início, tudo permanece em completa harmonia. Tanto que ela pensa, deitada no ombro dele, em como seria sua vida se ela aumentasse a família tecendo lindos filhos. Não demorou muito, até que o homem percebeu o poder que a mulher tinha e decidiu controlá-la. Dada à opressão do marido, a protagonista se vê obrigada a tecer incessantemente os desejos materiais insaciáveis dele, culminando no seu confinamento em uma alta torre.
A Moça Tecelã estabelece um paralelo com o tradicional papel feminino, subvertendo-o ao apresentar uma protagonista independente, corajosa e capaz de encerrar um relacionamento que não lhe traz felicidade, denunciando, assim, as estruturas patriarcais que subjugam as mulheres. A narrativa evidencia a liberdade de escolha da mulher e a coragem de romper com padrões opressivos, ressaltando a importância da conscientização sobre o papel individual na sociedade.
Apresentar essa narrativa às crianças e jovens é crucial para promover uma compreensão mais ampla e inclusiva das relações de gênero, incentivando a percepção e a capacidade de identificar e confrontar relacionamentos abusivos. Através da história da “Moça Tecelã”, os/as leitores/as são instigados a refletir sobre questões de liberdade, autonomia e igualdade de gênero, e isso contribui para uma educação que promova o respeito e a valorização de todas as identidades e escolhas individuais.