Tecendo Identidades de Gênero

Capítulo 2

A Literatura na Construção das Identidades de Gênero

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Antonio Candido, em ensaio intitulado “O direito à literatura”, afirma que “a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação” (2012, p. 18). Nessa perspectiva, a literatura é entendida como um “bem incompressível”, ou seja, indispensável para a formação humana. O direito de acesso a ela não pode, portanto, ser negado.

Em se tratando da construção de identidades de gênero, é possível considerar que a importância da literatura consiste, especialmente, no fato de sua leitura proporcionar ao/à leitor/a oportunidade do encontro com diferentes experiências humanas, inclusive, quanto às relações de gênero. Em determinadas narrativas de recepção infantil e juvenil, por exemplo, a singularidade das personagens é um aspecto que se ressalta, de modo que há aquelas que desafiam os padrões de gênero tradicionalmente estabelecidos nas sociedades de origem patriarcal. Desse modo, no ato da leitura, pode ocorrer um processo de identificação por parte dos/as leitores/as, a partir da caracterização das personagens que, em suas especificidades, adquirem vitalidade e promovem a visibilidade de indivíduos de diferentes perfis.

A literatura explora as complexidades humanas, entre elas, as que dizem respeito às relações raciais, de classes sociais e de gênero. Dessa forma, as obras podem desvendar estereótipos de gênero, ao apresentarem personagens que problematizam noções tradicionais de masculinidade e feminilidade. Assim, a literatura se configura como aliada poderosa para a valorização de indivíduos que, em geral, são marginalizados ou sub-representados na sociedade. E ao lerem histórias cujos enredos são vivenciados por personagens com as quais os/as leitores/as podem se identificar, há probabilidade de uma conexão capaz de resultar em uma espécie de apoio e inspiração, especialmente para os/as que estão em processo de construção de suas identidades, como é o caso das crianças e dos/as adolescentes. Além disso, os mecanismos de identificação, por meio da leitura literária, podem promover a empatia, favorecendo para que os/as leitores/as se sintam no lugar de personagens com experiências distintas de gênero. A superação de preconceitos e estereótipos e maior aceitação e respeito à diversidade de identidades de gênero podem ser os benefícios finais da leitura.

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O escritor Hans Robert Jauss (1994), reconhecido por seus estudos acerca da estética da recepção de narrativas literárias, destaca a relação dinâmica entre o texto literário e o/a leitor/a. A discussão feita pelo autor considera a estética da recepção como uma abordagem que enfatiza o papel ativo do leitor na construção do sentido das obras. Sua argumentação rejeita a ideia de um sentido estático em uma narrativa literária e defende que, ao contrário, a construção de sentido é um resultado fluido da interação contínua entre o texto e o/a leitor/a. A leitura de uma narrativa literária pode ter, portanto, efeito transformador. Desse modo, o encontro com textos desafiadores é capaz de levar a uma mudança nos horizontes de expectativas do/a leitor/a, contribuindo para sua evolução intelectual e emocional.

2.1 Como o Método Recepcional da leitura de narrativas literárias de recepção infantil e juvenil pode contribuir para a construção de identidades de gênero na escola

O Método Recepcional da leitura de narrativas literárias destinadas ao público infantil e juvenil desempenha papel de destaque na formação de identidades de gênero na escola. Ao proporcionar um amplo contato dos/as estudantes com narrativas que apresentam personagens com diversas identidades de gênero, o/a professor/a, por meio desse método, abre espaço para ricas discussões no ambiente escolar e oferece oportunidades para se compreender a complexidade e a diversidade humana. Mediante uma análise crítica das narrativas literárias, os/as jovens leitores/as são motivados/as a identificar e a questionar estereótipos de gênero enraizados na sociedade e, por vezes, representados na literatura. Com isso, podem ser estimuladas reflexões valorosas sobre a perpetuação de certos padrões sociais, responsáveis pela definição de papéis distintos para homens e para mulheres, para meninos e para meninas.

Ao se engajarem na leitura de narrativas que abordam uma variedade de identidades de gênero, os/as alunos/as podem desenvolver empatia e compreensão em relação às experiências alheias. Isso promove um ambiente escolar inclusivo e tolerante, onde todas as pessoas são valorizadas e respeitadas, independentemente de sua identidade de gênero. E como o Método Recepcional tende a promover o encorajamento dos/as educandos/as para que participem, ativamente, de discussões críticas sobre aspectos que se ressaltam nos textos literários, quando estão em pauta questões relacionadas a gênero, pode haver incentivo para que eles/as expressem suas próprias experiências, opiniões e perspectivas. Essa abordagem do texto literário facilita a criação de um espaço seguro e aberto, no qual todos/as podem compartilhar dúvidas, preocupações e ideias sobre identidade de gênero.

O trabalho em sala de aula, baseado no Método Recepcional, tem como principal objetivo ampliar as expectativas dos/as jovens leitores/as. Organizado em cinco etapas, ele permite adaptar o conteúdo programático e os procedimentos metodológicos ao contexto de aplicação. Reconhecido como um método que valoriza a participação dos/as estudantes na leitura de diferentes gêneros textuais, a abordagem coloca o/a estudante como o/a agente principal da leitura literária, de forma sequencial e organizada.

Ao explicitarem o desenvolvimento do Método Recepcional, nos processos de leitura literária na escola, Vera Teixeira Aguiar e Maria da Glória Bordini (1993) destacam o papel crucial do/a professor/a na formação do leitor/a literário/a, oferecendo estratégias que ampliem o horizonte de expectativas dos/as alunos/as, por meio da leitura de textos diversos. Estes textos devem visar apresentar novos conhecimentos, desafiar preconceitos existentes e fomentar o desenvolvimento de leitores/as críticos/as e reflexivos/as.

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Nesse contexto, apresentamos a sequência proposta pelo método, fundamentada em cinco passos que direcionam a visão de mundo do/a leitor/a e contribuem para uma prática literária ativa, emancipatória e significativa para os/as estudantes. Em suma, o Método Recepcional da leitura de narrativas literárias para crianças e jovens pode desempenhar um papel crucial na construção de identidades de gênero na escola, proporcionando oportunidades para explorar a diversidade, desconstruir estereótipos, promover a equidade, cultivar empatia e tolerância, estimular o diálogo e a reflexão crítica sobre questões de gênero.

2.1.1 Análise dos horizontes de expectativas ou receptividade

O primeiro passo da aplicação do Método Recepcional é uma análise dos horizontes de expectativas dos/as estudantes. O/A professor/a faz uma investigação preliminar acerca dos conhecimentos que eles/as já acumularam ao longo das experiências de leitura, por meio de questionamentos, conversas e debates, permitindo que compartilhem suas impressões de leituras anteriores.

2.1.2 Expectativas existentes ou concretização

O segundo passo da aplicação do Método Recepcional tem o objetivo de atender as expectativas existentes. O/a professor/a já tem uma ideia do nível de expectativas dos/as estudantes e procura estratégias de ensino-aprendizagem que estejam conforme o contexto e o domínio deles/as. Para isso, são selecionadas narrativas literárias que dialoguem com o perfil social e cultural da turma, proporcionando experiências de leitura significativas e prazerosas.

2.1.3 Ruptura dos limites das expectativas

O terceiro passo da aplicação do Método Recepcional é a busca pela ruptura dos horizontes de expectativas dos/as estudantes, mantendo as táticas anteriores, disponibilizando textos que trazem temas, estruturas e linguagens habituais, mas também leituras capazes de propor novos desafios. Esta etapa requer maior cuidado por parte do/a professor/a, porque, nela, ao mesmo tempo em que os/as estudantes se veem diante de leituras cujo grau de dificuldades é maior que o das leituras com as quais já estão familiarizados/as, é necessário que os seus graus de evolução como leitores/as sejam considerados. Desse modo é que seguem avançando em relação a suas certezas e costumes e criando novos horizontes de expectativa.

2.1.4 Questionar os limites das expectativas

O quarto passo da aplicação do Método Recepcional consiste em questionar os limites das expectativas. É um momento de interação entre os/as estudantes, no qual são desenvolvidas atividades em grupo e são comparadas as impressões e os novos sentidos construídos acerca do texto lido. O/A professor/a assume a função de mediador/a das discussões.

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Conforme Bordini e Aguiar (1993), as práticas descritas e a busca por resultados satisfatórios somente serão alcançadas com o entendimento dos objetivos listados a seguir:

1. Efetuar leituras compreensíveis e críticas; 2. Ser receptivo com novos textos e as leituras de outrem; 3. Questionar as leituras efetuadas em relação a seu próprio horizonte cultural; 4. Transformar os próprios horizontes de expectativas, bem como os do(a) professor(a), da escola, da comunidade familiar e social (Aguiar; Bordini, 1993, p. 36).

Esses objetivos mostram que a proposta de trabalho é dialógica, envolve debates, discussões dirigidas, leituras compartilhadas e criticidade em relação às expectativas dos/as estudantes acerca do texto lido. Ela pode ser desenvolvida por meio da escrita e da oralidade, permitindo novos olhares sobre o texto.

2.1.5 Ampliação dos horizontes de expectativas ou assimilação

A última etapa dessa sequência organizada é a ampliação dos horizontes de expectativas dos/as estudantes, por meio de um processo no qual cada leitor/a estabelece um paralelo entre suas expectativas iniciais e seus interesses após a realização das leituras propostas. O confronto de expectativas durante esse processo resulta em uma tomada de consciência por parte dos/as estudantes, em relação ao aumento de suas exigências de leituras e suas capacidades de explorar diferentes textos literários. Leituras mais desafiadoras, esteticamente, e que correspondam aos novos horizontes de expectativas construídos passam, assim, a fazer parte das buscas dos/as jovens leitores/as.

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Aguiar e Bordini (1993) defendem que cada nova incursão na narrativa abre um leque de perspectivas para descobertas únicas, moldadas pelas transformações contínuas que ocorrem nas vivências dos/as jovens leitores/as. Nesse sentido, as pesquisas fundamentadas no Método Recepcional têm como objetivo compreender o progresso da formação leitora dos/as jovens, à medida que seus horizontes de expectativas sejam redefinidos e ampliados.

A abordagem do Método considera a diversidade de interpretações que podem ocorrer, a partir de experiências pessoais, de contextos culturais e sociais. Assim, é possível observar como diferentes leitores/as, em diferentes épocas e contextos, podem interpretar de modos diferentes uma mesma narrativa literária. Desse modo, é fundamental reconhecer que a ampliação dos horizontes de expectativas, entre um determinado grupo de estudantes, não ocorre de maneira uniforme, mas em ritmos e formas tão diversas quanto podem ser diversas as subjetividades presentes nesse grupo.