Além das palavras: explorando a leitura literária através das histórias em quadrinhos

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Durante a aplicação da pesquisa pedimos para que ao término da leitura de cada conto que os alunos transformassem o conto lido em história em quadrinhos. Para isso, foi disponibilizado aos alunos folhas de papel A4, canetinhas hidrográficas, lápis de cores e réguas. A imagem a seguir é um exemplo das produções das histórias em quadrinhos dos estudantes. Vejamos um exemplo de um trecho de uma história em quadrinhos do conto A Cartomante de Machado de Assis, produzida por um estudante do 9º ano, durante a aplicação da pesquisa.

Figura 16. HQ produzida por aluno durante a pesquisa.

A leitura de clássicos literários em formato de histórias em quadrinhos em turmas de 9º anos é uma estratégia para a formação de leitores literários. Entretanto, para se formar leitores é preciso que eles sintam vontade de ler. Assim, considerando que a escola é em muitas vezes o principal agente incentivador dos estudantes à leitura literária é preciso que se busque formas que despertem este sentimento nos estudantes. Por isso, a sugestão de se utilizar o gênero história em quadrinhos.

Destarte, podemos afirmar que as HQs são uma ferramenta literária que, segundo Cirne, acaba por produzir “uma narrativa gráfico-visual, impulsionada por cortes que agenciam imagens rabiscadas, pintadas ou desenhadas”. Além disso, é um gênero que agrada o público infanto-juvenil e proporciona um contato mais profundo com o texto já que para confeccionar a própria história em quadrinhos ele precisa conhecer a fundo o conto que será trabalhado. Em harmonia Collomer (2017) afirma que:

Assim, pois, a imagem pode confirmar, expandir, analisar, contradizer, resumir ou acrescentar novos significados àquele contado pelo texto. E pode fazê-lo especificamente um ou outro dos elementos construtivos. (COLLOMER, 2017,p.286)

Assim, o trabalho com contos de Machado de Assis associado ao gênero histórias em quadrinhos auxilia o professor de Literatura em sua função de apresentar textos literários aproveitando de suas características estéticas e estimulando a leitura em sala de aula de forma constante, já que o conto é uma narrativa breve e por isso pode ser lido com frequência. Desse modo, democratiza o acesso à leitura literária e aos bens culturais. Em consonância:

A exploração didática bem planejada pelo profissional docente no trabalho com a leitura por meio da linguagem verbal atrelada à linguagem não verbal presente no gênero HQ possibilita o uso desses materiais na sala de aula, com vistas à formação do leitor competente, conforme é desejável e esperado. (SILVÉRIO E REZENDE, 2017, p.231)

Não obstante, ao analisarmos as histórias em quadrinhos produzidas pelos estudantes, e que no total foram mais de 200 exemplares, foi possível perceber que entenderam a história narrada no conto. E que através das imagens expressaram sua percepção sobre ele. O personagem principal do Conto de Escola é Pilar, aqui representado por um meme da internet que é este boneco de meia conhecido como “Flork”. Este personagem apareceu em várias outras histórias em quadrinhos entregues pelos estudantes da escola campo, tanto das turmas de 9º anos, quanto da turma da disciplina eletiva com estudantes do Novo Ensino Médio. O que representa a multiculturalidade, já que a experiência literária permite identificar-se com personagens em contextos diferentes. Vejamos o exemplo a seguir o trecho da história em quadrinhos sobre Conto de Escola de Machado de Assis produzida por estudante 9º ano:

Figura 17. HQ produzida por aluno durante a pesquisa.

No que diz respeito a compreensão da história narrada o gênero história em quadrinhos é uma importante ferramenta mediadora da leitura literária. Posso afirmar com muita certeza de que um dos contos mais difíceis trabalhados durante a pesquisa foi A sereníssima República, de Machado de Assis. Durante a leitura houve muitas dúvidas principalmente na sequência de ações do conto, mas no final todos entenderam a história. Entretanto, durante a confecção da história em quadrinhos os estudantes engajaram-se bastante a ponto de ter uma HQ produzida com arte gráfica.

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O uso da linguagem não verbal no texto literário permite variadas construções de significação e efeito, e está sujeita a modificações influenciadas pelo contexto de produção, mudanças sociais e culturais. Conforme Cagnin (1975), quando se juntam dois ou mais quadrinhos pode se formar uma série, na qual os quadros permanecem independentes, ou uma sequência, no caso de os quadros representarem uma unidade significativa. Em consonância o quadrinista e estudioso norte-americano Scott McCloud define:

Nada é visto entre dois quadros, mas a experiência indica que deve ter alguma coisa lá. (...) Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada”. (MACLOUD,1995, p.67)

O fio condutor é a sequencialidade que cada quadrinho possui para que a história possa fazer sentido. Nas imagens acima pode-se perceber que há a presença da sequencialidade, pois o enredo de A sereníssima República inicia com o Cônego Vargas anunciando para as pessoas que descobriu aranhas que podem falar e que além disso elas vivem em uma sociedade organizada. Pode-se observar a relação que entre cada quadro que compõem a HQ, e que é feita a partir das semelhanças e diferenças é que dará o aspecto sequencial e significativo da narrativa gráfico-visual. Em consonância Cagnin (1975) afirma que:

Para que duas imagens possam se unir, é necessário que tenham algo em comum. É a identidade. Para que sejam distinguidas, é necessário que sejam diferentes. É a não-identidade. A identidade entre as imagens ou figuras que compõem os quadrinhos é uma espécie de fio condutor da narrativa. A articulação entre duas ou mais unidades-quadrinho tira a imagem do seu estatuto analógico, da representação pura e simples do objeto e a transforma num elemento do discurso. (CAGNIN, 1975, p.157 – 159)

A HQ deixa a aula mais leve, as imagens ajudam na interpretação da história, uma vez que as cores e as ilustrações prendem a atenção do leitor, e os balões indicam sentimentos ou sensações diversos dos personagens. É importante destacar que por meio do uso do balão o leitor absorve mais informações sobre o texto o que facilita a compreensão do texto. Entretanto, para fazer a leitura de clássicos literários em formato de HQ é preciso que haja uma estratégia para que a leitura seja efetivada. Quando pensamos no PNLD Literário devemos ter em mente que nem sempre temos vários exemplares de determinada obra literária. Por isso, durante a pesquisa utilizamos o Datashow para que todos pudessem ter contato com a obra.

A história em quadrinhos é uma linguagem que pode conter uma imensa gama de simbologia, ditada pela estrutura narrativa, pela temática e, claro, por suas especificidades, tão particulares. A principal delas, a nosso ver, é a forma como se dá o relacionamento entre leitor e autor, sendo este último não somente um leitor, coadjuvante, mas um coautor, de forma muito mais decisiva do que outras manifestações artísticas. (BARROSO,2011, p. 14)

Para Barroso (2011), a união entre literatura e quadrinhos potencializa as características do autor. Ele exemplifica isso com Machado de Assis: “os quadrinhos maximizam uma característica já muito presente em Machado de Assis, com suas frequentes “interpelações ao leitor”, lançando hipóteses, dúvidas, premissas”. Realmente, esta característica da HQ estreita a relação autor/ leitor.

Interpelar o leitor, interagir com ele dentro das variedades desconhecidas dos múltiplos leitores nos leva a pensar nas linguagens – literária e quadrinística – como uso que melhor sintetiza a “obra aberta” sugerida por Umberto Eco, ou, numa visão mais poética (ou literária) a “obra inacabada” que Borges propõe, brilhantemente, em “Pierre Menard, o autor de Dom Quixote” e outros tantos não menos inventivos. (BARROSO, 2011, p.15)
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Dessa forma, a leitura do clássico literário em formato de HQ é uma importante ferramenta para a formação do leitor literário na Educação Básica. Isso porque a leitura de um clássico pode apresentar eventuais dificuldades, como a linguagem utilizada o que prejudica a compreensão do texto. Ler um clássico literário em formato de HQ é uma estratégia de ensino de literatura que contribui para formação do leitor, já que traduz a obra literária para uma linguagem com a qual o aluno já tem familiaridade, isso sem perder a grandeza literária, uma vez que não mude o texto original, além de ser uma manifestação artística. Sobre a união entre literatura e histórias em quadrinhos Moacy Cirne (2000) afirma que:

Alguns preferem a literatura; outros, os quadrinhos. Nós preferimos os dois. Em alguns momentos, a literatura nos diz mais, ou muito mais; em outros, o bom quadrinho nos é mais significativo. Aqueles que só preferem a literatura (e o cinema) deixam de fora uma parte do saber cultural; aqueles que só preferem os quadrinhos perdem a possibilidade de se enriquecerem culturalmente. (CIRNE,2000, p.23)

Com certeza, há HQs que não perdem de vista a obra original e há outras que se descolam dela tanto que deixam de ter com ela alguma relação. Além disso, ao se unir literatura e histórias em quadrinhos grandes talentos são revelados, talvez quem sabe futuros quadrinistas. Veja um trecho da história em quadrinhos do conto O enfermeiro a seguir produzida por um estudante do 9º ano.

Figura 18. HQ produzida por aluno durante a pesquisa.

Assim, ao observar a história em quadrinhos produzida por um estudante matriculado em uma turma de 9º ano, é possível perceber que ele possui um traço muito firme para o desenho, o que revela seu dom artístico, ao mesmo tempo a sequência das imagens revelam sua forma de enxergar o conto O enfermeiro, de Machado de Assis. Os personagens têm semblantes fechados e tristes, ao perguntar para ele sobre o porquê desenhar assim ele respondeu que achou a história “sinistra” e que Procópio era “frio e calculista”. Sobre esta relação entre autor e texto Barroso afirma que

A história em quadrinhos é uma linguagem que pode conter uma imensa gama de simbologia, ditada pela arte, pelo ritmo, pela estrutura narrativa, pela temática e, claro, por suas especificidades, tão particulares. A principal delas, a nosso ver, é a forma como se dá o relacionamento entre autor e leitor, sendo este último não somente um leitor, um coadjuvante, mas um coautor, de forma muito mais decisiva e participativa do que em outras manifestações artísticas. (BARROSO,2013, p.23)

Vejamos mais um trecho de uma história em quadrinhos produzida por uma estudante do Ensino médio sobre o conto A sereníssima República, de Machado de Assis.

Figura 19. HQ produzida por aluno durante a pesquisa.

A partir das análises e ponderações elencadas, acima percebe-se a riqueza dos contos de Machado de Assis, tanto em relação aos temas, quanto às características literárias, oportunizando aos professores da educação básica levar textos literários de extremo apuro estético e que, ao mesmo tempo, levantam reflexões profundas sobre a complexidade da alma humana. Dessa forma, contribuem para que o educando tenha seu direito à literatura respeitado e tenha experiências literárias que o estimulem no caminho da formação literária. Além disso, o contato com o clássico literário oportuniza que o aluno tenha o sentimento de pertencimento à sua cultura por meio da literatura brasileira, um bem incompressível a que tem direito (CANDIDO, 2000, p.173).

Por fim, ao explorar os contos de Machado de Assis por meio de histórias em quadrinhos, os alunos têm a oportunidade de refletir sobre questões universais, como a condição humana, a moralidade e a ética. A análise dos personagens, dos conflitos e das mensagens presentes nas obras contribui para o desenvolvimento do senso crítico, da empatia e da compreensão do mundo ao redor.