3. Da leitura literária à escrita de fanfics: relatos da experiência em sala de aula

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Conforme mencionado anteriormente, a intervenção pedagógica aqui proposta foi vivenciada com 90 alunos dos 9ºs anos do Ensino Fundamental do Colégio Estadual Parque dos Buritis, de 1º de novembro a 9 de dezembro de 2023. Desses, 86 assinaram, juntamente aos responsáveis, os termos de consentimento e assentimento livre esclarecidos previstos pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás (CEP/UFG) e permitiram que os instrumentos coletados na pesquisa pudessem ser mencionados e publicados.

O Colégio Estadual Parque dos Buritis, apesar de não possuir biblioteca escolar, possui condições favoráveis para o trabalho em prol da formação do leitor literário, com livros ‘físicos’ (mais de três mil obras) e possibilidades junto ao meio digital para se trabalhar com a leitura literária.

Quanto à escolha das obras, como essas turmas já haviam lido ‘O gato preto’ e outros contos de terror, de Edgar Allan Poe, no primeiro semestre, o corpus literário escolhido para o trabalho foi, inicialmente, ‘Missa do Galo e outros contos de Machado de Assis’ (Assis, 2018) com roteiro e ilustrações de Francisco Vilachã, obra que foi adaptada para quadrinhos, o que já pressupõe um maior interesse do jovem leitor. Além disso,

[...] a intergenericidade presente na obra adaptada, proposta aqui como objeto de trabalho, parte do cânone literário para um universo multimodal, possibilitando aos alunos uma fruição estética por meio de uma leitura significativa. O projeto gráfico do livro adaptado em quadrinhos se configura como uma forma de mediação, na qual o aluno-leitor se reconhece na leitura literária (Batista; Silva, 2023, p. 229).

Não obstante o livro físico ser em quadrinhos, os alunos tiveram contato com o texto original por meio dos contos baixados no site Domínio Público, os quais foram encaminhados para o grupo de WhatsApp das turmas. Através dos seus aparelhos celulares e dos notebooks recebidos pelo governo estadual, puderam acompanhar a leitura dos textos originais também.

No entanto, como na pesquisa-ação (Thiollent, 2011) as decisões são flexíveis de modo a colaborar com o bom andamento da pesquisa, em reunião com a orientadora do trabalho, foi sugerido utilizar também o livro ‘Laços de família’ (2008), de Clarice Lispector, ideia que foi prontamente aceita. Assim como a escrita machadiana que dialoga diretamente com o leitor, a escrita clariciana traz muitos vazios a serem completados pelo leitor, sendo possível trabalhar vários aspectos da humanidade que constituem as personagens e travar um processo de identificação entre o leitor e a leitura. Ressaltando que esses livros fazem parte do acervo da escola que os possui em grande quantidade, tendo sido possível trabalhar com o livro físico com todos os alunos, assim como a versão digital.

Assim, foram previstos 16 encontros com os alunos para a realização do que foi denominado intervenção pedagógica, ou seja, aulas direcionadas para a leitura literária e produção de fanfictions, intencionalmente organizadas dentro dos movimentos pedagógicos referidos pela Pedagogia dos Multiletramentos. Esses encontros não compuseram apenas o que corresponde a uma aula de 50 minutos, como ocorre na rede estadual, mas por vezes duas ou três aulas foram necessárias para perfazer o planejamento de cada encontro.

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No Quadro 2 está a síntese do planejamento realizado e executado. Este quadro demonstra o planejamento de ações que venham a ativar conhecimentos prévios, instigar o aluno ao conhecimento novo e por fim avaliar o que foi aprendido.

Quadro 2 - Procedimentos didático-metodológicos para a leitura dos contos de Machado de Assis

Fonte: Elaborado pela autora (2022).
Procedimentos didático-metodológicos para a leitura de ‘Missa do galo e outros contos de Machado de Assis’ – Roteiro e Adaptação de Rodrigo Vilachã
PRÁTICA SITUADA 1º Encontro (1 aula)
  • Esclarecimentos sobre a pesquisa;
  • Aplicação do questionário 1.
2º Encontro (1 aula)
  • Conversa inicial: Ativação dos conhecimentos prévios sobre Machado de Assis e suas obras por questionamentos do estilo: quem é Machado de Assis, o que se sabe sobre ele, já leu algo que ele escreveu, etc.
  • Orientação sobre como acessar o site Domínio Público e ter acesso gratuito a obras de vários autores de literatura brasileira e clássicos da literatura universal.
  • Disponibilização dos contos ‘Missa do galo’, ‘Contos de escola’, ‘Umas férias’ e ‘O espelho’ em formato PDF no grupo de WhatsApp da turma.
  • Orientação para levar os chromebooks na aula seguinte com o conteúdo baixado.
3º Encontro (2 aulas)
  • Leitura protocolada (com inferências) do conto ‘Missa do galo’;
  • Leitura do texto original em voz alta feita pela professora e acompanhamento dos alunos pelo chromebook ou smartphone;
  • Entrega dos livros para os alunos;
  • Interface entre o texto original e a adaptação em quadrinhos e expressão das opiniões.
4º Encontro (2 aulas)
  • Leitura protocolada (com inferências) do ‘Conto de escola’;
  • Leitura do texto original em voz alta feita pela professora e interface com o conto adaptado em quadrinhos: no mesmo momento da leitura pela professora, os alunos acompanham a adaptação e são convidados a solicitar pausa a cada vez que o texto adaptado se fizer muito diferente;
  • Compartilhamento das impressões sobre a leitura.
5º Encontro (2 aulas)
  • Leitura protocolada (com inferências) do conto ‘Umas férias’;
  • Leitura do texto adaptado feita pelos alunos em voz alta, no qual cada aluno foi convidado a ler uma página;
  • Comentários sobre a leitura;
  • Solicitação para a leitura do texto original em casa e também do conto ‘O espelho’.
ENQUADRAMENTO CRÍTICO
6º Encontro (1 aula)

Roda de conversa guiada por três questionamentos iniciais:

  1. Pela época em que as histórias ocorreram, o que se esperava do enredo e personagens?
  2. Qual efeito de sentido o narrador em 1ª pessoa gera na recepção da narrativa?
  3. Você se identifica com alguma história e/ou personagem? Justifique.

Momento para questionamentos, dúvidas e comentários;

Reforço sobre as características do gênero conto, do contexto de produção e estilo machadiano.

INSTRUÇÃO ABERTA 7º Encontro (1 aula)
  • Aula expositiva e interativa – o gênero fanfiction: o que é, quando surgiu;
  • Indicação do site https://fanfiction.com.br ‘Nyah! Fanfiction’;
  • Utilização do Chromebook ou smartphone para acessarem o site e lerem fanfics; sugestão da leitura de fanfics de ‘Dom Casmurro’ e o ‘Diário de Anne Frank’ (obra que eles leram no início do ano).
  • Brainstorm (tempestade de ideias) para a criação das fanfics: quais vazios nos textos induzem você a querer continuar ou dar outra versão para a história?
PRÁTICA TRANSFORMADA 8º Encontro (2 aulas)
  • Orientação para a escrita das fanfics (capa, referência, título, desenho);
  • Produção inicial dos textos;
  • Orientação e revisão em sala (individual ou em pares);
  • Entrega das fanfics.
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Como a pesquisa-ação é flexível, o planejamento da segunda parte das leituras foi adaptado de acordo com o que foi positivo e/ou negativo na primeira fase. As mudanças estão registradas no Quadro 3.

Quadro 3 - Procedimentos didático-metodológicos para a leitura dos contos de Clarice Lispector

Procedimentos didático-metodológicos para a leitura de ‘Laços de família’, de Clarice Lispector
PRÁTICA SITUADA 9º Encontro (1 aula) Aplicação do questionário 2.
10º Encontro (aula 1)
  • Preenchimento do quadro SQA: Sei – Quero Saber – Aprendi sobre Clarice Lispector e suas obras (o ‘aprendi’ fica para ser preenchido na reta final como avaliação do que foi aprendido por meio das aulas). Esse quadro é uma forma de ativar conhecimentos prévios, instigar o aluno ao conhecimento novo e por fim avaliar o que foi aprendido;
  • Compartilhamento das impressões iniciais e dos anseios para com a leitura;
  • Disponibilização do livro digital em grupos de WhatsApp das turmas;
  • Entrega do livro físico;
11º Encontro (2 aulas)
  • Leitura protocolada (com inferências) do conto ‘Feliz aniversário’;
  • Leitura em voz alta feita pela professora e acompanhamento dos alunos;
  • Compartilhamento de impressões sobre o conto.
12º Encontro (2 aulas)
  • WordCloud: Produção de nuvem de palavras sobre o que vem em mente quando se fala em família, por meio do aplicativo Mentimenter;
  • Leitura protocolada (com inferências) do conto ‘Os laços de família’;
  • Leitura em voz alta feita pelos alunos, cada um lendo uma página;
  • Compartilhamento de impressões sobre o conto.
13º Encontro (2 aulas)
  • Leitura protocolada (com inferências) do conto ‘O búfalo’;
  • Leitura em voz alta feita pelos alunos, cada um lendo uma página;
  • Compartilhamento de impressões sobre o conto;
  • Orientação para a leitura de demais contos contidos no livro ‘Laços de família’, em casa.
ENQUADRAMENTO CRÍTICO 14º Encontro (2 aulas)
  • Roda de conversa através do resultado da nuvem de palavras sobre ‘família’;
  • Compartilhamento de experiências: processos de identificação com as relações familiares abordadas nos contos;
  • Diferenças na estrutura dos contos: tipos de narrador e os efeitos de sentido provocados por essa escolha, estilo clariciano (epifania, nojo);
  • Comparação com a escrita machadiana.
INSTRUÇÃO ABERTA 15º Encontro (2 aulas)

Reforço do padrão das fanfics;

Orientação mais explícita para a entrega dos trabalhos seguindo o roteiro:

ORIENTAÇÕES PARA A PRODUÇÃO DAS FANFICS

  • Agora que você já leu os contos do livro ‘Laços de família: contos’, de Clarice Lispector, escolha a história/personagem/situação com a qual você mais se identificou e crie uma nova história a partir dela.
  • Faça uma fanfic bem criativa! Não se esqueça de dar título à sua história.
  • Escreva primeiro um rascunho, leia com atenção observando se há muitas repetições ou erros na escrita.
  • Você pode usar a criatividade e ilustrar seu texto.
  • Faça uma capa bem bonita seguindo as instruções abaixo.
  • Na parte interna, ao final, coloque a referência do livro, conforme explicado a seguir.

CAPA

  • Faça a capa em folha de papel almaço sem pauta (conforme desenho feito no quadro);

PARTE INTERNA

  • Faça em folha de papel almaço com pauta;
  • Escreva o título da sua fanfic em destaque na primeira linha e na linha de baixo, à direita, coloque o seu nome.
  • Salte uma linha e comece seu texto.
  • Escreva à caneta (azul ou preta), de forma legível e organizada, separando os parágrafos e usando a pontuação corretamente.
  • Ao terminar seu texto, escreva:

REFERÊNCIA:

  • LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: JPA, 2008.

Brainstorm (tempestade de ideias) para a criação das fanfics: quais vazios nos textos induzem você a querer continuar ou dar outra versão para a história?

Início da escrita das fanfics.

PRÁTICA TRANSFORMADA 16º Encontro (2 aulas)
  • Finalização e entrega das fanfics;
  • Aplicação do questionário final;
  • Finalização do preenchimento do quadro SQA;
  • Compartilhamento das impressões.
Fonte: Elaborado pela autora (2022).
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Assim, de forma intencional e organizada, da prática situada à prática transformada, a intervenção pedagógica objetivou proporcionar a leitura efetiva de contos, em um contato intrínseco entre leitor e leitura, levando o aluno a compreender as intencionalidades discursivas dos autores, as escolhas dos narradores, os vazios deixados nos textos, a identificação com as personagens e/ou enredos e a ressignificação das leituras por meio da produção das fanfictions. Como já foi mencionado, não se trata de uma sequência didática, tampouco de uma forma infalível para se formar leitores literários, mas um modelo de organização das aulas voltadas para esse propósito, que pode facilmente ser adaptado de acordo com as necessidades de ensino e aprendizagem de cada contexto escolar.

Através dessa proposta, foi possível levar uma estratégia de leitura literária de clássicos unida à cultura de base dos alunos circundada pelo universo midiático das fanfics, alcançando mais de 90% dos alunos das turmas trabalhadas, os quais se envolveram na leitura dos contos e na escrita dos textos (159 fanfics foram produzidas!).

Por meio dessa intervenção, passaram de leitores a autores, mas justamente porque envolvidos na prática situada, leram os livros; imersos no enquadramento crítico, analisaram os contos e deles depreenderam sentidos pela identificação com essas histórias; imbuídos por uma instrução aberta, começaram as produções que, por meio dos vazios deixados nos textos originais, trabalharam com a imaginação aguçada e efetivaram a prática transformada. Nesse ínterim, tiveram acesso aos clássicos, seja na forma original dos contos, seja em uma linguagem multimodal e multissemiótica, por meio das histórias em quadrinhos. Tiveram acesso ao livro físico e ao livro digital, aprendendo a buscar obras literárias em domínio público de distribuição legal e gratuita. Puderam interagir com os autores e as leituras, buscando, no meio midiático das redes sociais informações sobres os autores, vislumbrando possibilidades de releituras/redesenhos através de um gênero que nasce com o advento das tecnologias da comunicação e se expande com as tecnologias da informação, que são as fanfics. A expectativa para a construção do livro digital que irá compartilhar os textos produzidos (segunda parte deste e-book) também foi um grande incentivador para a efetivação de todo esse processo.

O trabalho, em um viés de multiletramentos, é válido pontuar, não implica necessariamente um grande aparato digital para ser realizado, o importante é que os jovens leitores tenham contato com o universo (multi)midiático que os circunda e aprendam a ser tanto receptores quanto produtores de conteúdo (designers). Neste caso, os multiletramentos se deram através do contato com o universo literário, por meio das obras originais e completas (não fragmentadas), em livro físico e digital, tanto em texto original, como em adaptação em quadrinhos (multimodal e multissemiótico) e, minimamente, com o universo tecnológico que os circunda, visto que

[...] trabalhar com multiletramentos pode ou não envolver (normalmente envolverá) o uso de novas tecnologias de comunicação e de informação (‘novos letramentos’), mas caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado [...] e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático – que envolva agência – de textos/discursos que ampliem o repertório cultural, na direção de outros letramentos (Rojo, 2012, p. 8).

Outros letramentos estes que neste trabalho foram materializados em um processo de letramento literário e no redesign/redesenho dos contos dentro do universo das fanfics.

Em conclusão, o processo de redesign/redesenho dos contos de Machado de Assis e Clarice Lispector confirmou a relevância dessa escolha didático-metodológica, pautada na Pedagogia dos Multiletramentos, dada a interação que os alunos tiveram com as leituras em meio a um processo de identificação entre o texto e o leitor, que procurou, pelos vazios dos textos, provocar novas leituras com a escrita das fanfics e por esse motivo essa estratégia está sendo disseminada para que possa inspirar outros professores e/ou mediadores da leitura literária em suas práticas cotidianas.

Mas, falamos tanto dessas fanfics... É hora de conhecê-las! A segunda parte, apresentada a seguir, trará os textos produzidos pelos alunos e os desenhos feitos por eles para que sirvam de inspiração para que outros leitores conheçam melhor os contos de Machado de Assis e Clarice Lispector. Vamos lá?!

Notas

7. O texto de autoajuda e best seller até pode estar inserido em uma proposta pedagógica interessante, mas não deve ser utilizado para preencher uma lacuna da ausência de um texto literário.

8. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp