Toda ação pensada no viés da formação do leitor literário precisa ter como foco principal a leitura do texto literário de forma integral. Assim, o objetivo aqui é propiciar condições para o trabalho com a leitura literária em sala de aula, possibilitando que esse aluno possa vir a se tornar um leitor desse específico estilo de leitura, dadas as contribuições para a formação escolar e humana proporcionadas por esse ensino já mencionadas. Ensino esse que precisa ser intencionalmente organizado e planejado para atingir tal propósito. Por não ser o famoso ‘vamos ler’, mas como vamos ler e como vamos trabalhar essa leitura em um processo de letramento literário, é preciso construir pontes para perpassar por esse caminho. Para tal, faz-se necessário pensar no que ler, em como ler e depois com o que fazer com essa leitura.
De início, normalmente, a escolha das obras literárias a serem trabalhadas em sala de aula devem obedecer a alguns critérios de seleção, pautando-se sempre no direito do aluno de ter acesso a obras que normalmente não conheceria por sua livre e espontânea vontade e que tenham qualidade estética. Segundo Cosson (2016),
[...] ao selecionar um texto, o professor não deve desprezar o cânone, pois é nele que encontrará a herança cultural de sua comunidade. Também não pode se apoiar apenas na contemporaneidade dos textos, mas sim em sua atualidade. Do mesmo modo, precisa aplicar o princípio da diversidade entendido, para além da simples diferença entre os textos, como a busca da discrepância entre o conhecido e o desconhecido, o simples e o complexo, em um processo de leitura que se faz por meio da verticalização de textos e procedimentos (Cosson, 2016, p. 35-36).
Como o objetivo é o de levar a leitura literária para a sala de aula de uma escola sem biblioteca escolar, o que limita a escolha do material a ser trabalhado, em primeiro lugar, é a falta de possibilidades, a restrição de materiais ou dificuldade de acesso à obra. É sempre válido ressaltar que não há a mesma eficácia que os textos na íntegra, o trabalho com fragmentos de textos, excertos de livros didáticos quase sempre descontextualizados ou utilização de outros materiais menos instigantes do ponto de vista formativo como um texto de autoajuda, um best seller, afinal é imprescindível levar em consideração que o trabalho com a leitura literária necessita se pautar em bons livros e um bom livro precisa oferecer riscos, desconforto, ambiguidades, precisa ser capaz “de nos fazer entrar em conflito com nós mesmos” (Andruetto, 2012, p. 151), precisa ativar “a perplexidade, o desejo, o desequilíbrio, a procura de indícios e a construção de sentidos” (Montes, 2020, p. 237). E assim, na falta de oferta de material, essa escolha necessita ser intencionalmente adequada ao processo, fazendo-se importante considerar, em segundo lugar, qual gênero literário é propício para o contexto e como o aluno terá acesso a essa leitura, visto que ele não tem a possibilidade de adquirir a obra (pelo menos, no contexto das escolas públicas).
Por suas características, neste trabalho utilizou-se o gênero conto, pois tem uma boa aceitação junto ao público escolar. De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró-Livro, 2020), 23% dos alunos declaram gostar de ler contos literários. Além do alcance positivo junto às crianças e jovens, o conto possui uma tensão narrativa desenvolvida em um pequeno espaço de tempo por girar em torno de apenas uma unidade de ação (Moisés, 2006), o que gera um forte interesse no leitor e possibilita a sua leitura em sala de aula.
O conto nasce de uma tradição oral e passa para o registro escrito como um misto de relato e ficção, sendo que é a ficção, unida ao fator estético, que garante seu caráter literário, pois “a voz do contador ou registrador se transforma na voz de um narrador: o narrador é uma criação da pessoa” (Gotlib, 1990, p. 9). O conto, portanto, trata-se de “uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação” (Moisés, 2006, p. 40), o que prende a atenção do leitor. Junto à extensão, vem sua qualidade estética. Para Cortázar (2006),
[...] [o] conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal [...]; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. Só com imagens se pode transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica também por que há tão poucos contos verdadeiramente grandes (Cortázar, 2006, p. 175).
Por fim, um bom conto é composto, portanto, por “um recorte de tempo e de espaço por meio do qual se vê o drama da existência. Um recorte, uma cena, que é sempre uma metáfora da vida. Recorte, gargalo de uma garrafa pelo qual passa o drama da existência” (Andruetto, 2017, p. 74).
Respaldados, assim, pelas importantes definições dadas por grandes mestres no assunto, a escolha dos contos a serem lidos em sala de aula precisar seguir alguns critérios:
Assim, as escolhas precisam dar legitimidade à qualidade que o trabalho exige, atender à demanda de oferta do material seja em meio impresso ou digital e possibilitar, dessa forma, o contato, por meio da leitura literária, com aspectos da humanidade que constituem nossos alunos. É sabido que, no compartilhamento da leitura literária,
[...] cada pessoa pode experimentar um sentimento de pertencer a alguma coisa, a esta humanidade, de nosso tempo ou de tempos passados, daqui ou de outro lugar, da qual pode sentir-se próxima. Se o fato de ler possibilita abrir-se para o outro, não é somente pelas formas de sociabilidade e pelas conversas que se tecem em torno dos livros. É também pelo fato de que, ao experimentar, eu um texto, tanto sua verdade mais íntima como a humanidade compartilhada, a relação com o próximo se transforma. Ler não isola do mundo. Ler introduz no mundo de forma diferente. O mais íntimo pode alcançar neste ato o mais universal (Petit, 2008, p. 43).
Todorov (2009, p. 33) é corolário da mesma ideia, posto que defende o contato direto com a leitura das obras literárias na escola, “para nelas encontrar um sentido que lhes permita compreender melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo”.
“Selecionado o livro, é preciso trabalhá-lo adequadamente em sala de aula. Já sabemos que não basta mandar os alunos lerem” (Cosson, 2016, p. 36), é preciso orientá-los através das leituras, sendo fundamental, para tal, um processo de mediação bem planejado. Para tal, propõe-se levar a leitura para a sala de aula por meio dos movimentos pedagógicos dispostos pela Pedagogia dos Multiletramentos: prática situada, enquadramento crítico, instrução aberta e prática transformada, lembrando que essa ordem não é estática, pode perfeitamente ser modificada a serviço dos intentos pedagógicos.
É importante ressaltar que esta proposta não está sob o viés da sequência didática, tal como disposto por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Apesar de aqui também se desenvolver o trabalho por meio de um “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (Dolz; Noverraz, 2004, p. 96), pretende-se demonstrar a opção de um trabalho com a leitura literária através da prática situada, da instrução aberta, do enquadramento crítico e da prática transformada pelo redesign (redesenho) dos textos literários, por meio da produção do gênero fanfiction.
O gênero multimodal fanfiction nasce com a cultura midiática, iniciada pelo advento das séries televisivas ainda na década de 1960. Segundo Vargas (2015), as fanfictions nascem a partir do interesse dos fãs de interagirem com a ficção, estando diretamente relacionadas ao surgimento dos fandoms (comunidade de fãs) e das fanzines (revistas feitas e compartilhadas por fãs). Para a autora, a série Star Trek, de 1967, foi a inauguradora do universo das fanzines, a partir das quais o gênero fanficition se popularizou. Com a expansão das mídias, com o advento e explosão das redes sociais, esse universo se difundiu junto ao público jovem.
O termo fanfiction – fan (fã) e fiction (ficção) –
[...] designa uma história fictícia, derivada de um determinado trabalho ficcional preexistente, escrita por um fã daquele original [...]. A fanfiction é, assim, uma história escrita por um fã, envolvendo os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no original, sem que exista nenhum intuito de quebra de direitos autorais e de lucro envolvidos nessa prática (Vargas, 2015, p. 21).
A fanfiction trata-se, portanto, de um redesign, ou seja, um redesenho da obra original, como uma resposta dialógica aos vazios do texto.
Eis o começo do leitor, do leitor incipiente: o vazio [...]. Esses vazios são aqueles que nos levam a fabricar, a construir sentido, a colonizar os limites, a fronteira. Ler é, antes de tudo, isso: construir sentido. Uma pirueta para extinguir o vazio. Assim que chegamos ao mundo, começamos a ler e continuamos lendo até o fim, incansáveis (Montes, 2020, p. 169).
Como os contos de mestres da literatura brasileira como Machado de Assis e Clarice Lispector deixam muitas indagações nos leitores, muitos vazios a serem preenchidos com uma imaginação efervescente dos nossos alunos, eles motivam a escrita das fanfics, não como um exercício de escrita literária, mas de tentativa de uma leitura mais intrínseca dos textos, mais particular e minuciosa, buscando-se uma intimidade com o texto literário. A escrita não deve ser o objetivo final, mas sim a leitura, e, como aponta Montes (2020), a escrita é um tipo de leitura.
Assim, a escrita de fanfictions nesse trabalho de letramento literário, dentro da Pedagogia dos Multiletramentos, é bem propícia, pois é, a partir de um forte envolvimento entre o leitor e a leitura, em um processo de identificação com o texto, que essa escrita ocorre. Tal identificação é o elo mais importante, pois
[...] os autores de fanfictions dedicam-se a escrevê-las em virtude de terem desenvolvido laços afetivos tão fortes com o original, que não lhes basta consumir o material que lhes é disponibilizado, passa a haver a necessidade de interagir, interferir naquele universo ficcional, de deixar sua marca de autoria (Vargas, 2015, p. 21-22).
Assim, por mais que a prática transformada traga como produto final a produção de um gênero textual escrito, o objetivo principal da pesquisa é efetivar a leitura literária perpassando por um movimento de identificação entre leitura-leitor, através de um trabalho cuja finalidade é criar situações propícias para o desenvolvimento de um letramento literário, de uma situação intencionalmente planejada para que os alunos se identifiquem através da leitura dos textos.
Com a escrita, nossa velha e eterna atividade de busca de chave e construção de sentido se amplia extraordinariamente. Não só podemos, como escritores, deixar registradas nossas buscas e nossos achados – isto é, nossas leituras – e, assim, embarcar em empreitadas de sentido mais complexas e ambiciosas, mas como leitores, podemos compartilhar essas buscas e achados de outros; ficar perplexos ou nos deleitar com os universos de sentido que os outros construíram e torná-los parte do nosso, isto é, reescrevê-los (Montes, 2020, p. 71).
Tal viés não pretende desprestigiar, jamais, o importante trabalho realizado por meio das sequências didáticas que embasam a prática de muitos professores, mas defende uma nova proposta para esse universo cada vez mais multissemiótico e multicultural, do qual se faz parte, de uma forma que venha a inspirar novos tipos de mediação da leitura literária adaptados a cada contexto escolar.
Após o percurso pelas bases teóricas, é hora de conhecer o planejamento metodológico orientado pelos movimentos pedagógicos dispostos a seguir. Nesta proposta, foi escolhido o gênero textual conto e os autores Machado de Assis e Clarice Lispector.
Destarte, é sempre importante ressaltar que esse planejamento pode ser utilizado para o trabalho com outros gêneros textuais – não somente o conto –, apresentados através de suportes físicos ou digitais e com diversas outras propostas de prática transformada e compartilhamento das produções. O mais importante, sempre, é privilegiar a leitura literária em sua integridade, dando ênfase tanto ao conteúdo quanto à forma em que os textos se apresentem.
No Quadro 1 está a esquematização da proposta didático-metodológica.
MOVIMENTO PEDAGÓGICO | FINALIDADE |
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PRÁTICA SITUADA |
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ENQUADRAMENTO CRÍTICO |
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INSTRUÇÃO ABERTA |
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PRÁTICA TRANSFORMADA |
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A Pedagogia dos Multiletramentos aqui fornece as condições para o trabalho com a leitura literária direcionada para a formação do leitor literário através de um trabalho com textos que podem se apresentar também em multimodalidades, como as adaptações de clássicos em histórias em quadrinhos, mas se preconiza que sempre seja apresentado ao aluno o texto original.
O gênero textual conto pode ser trocado por outros gêneros literários sem nenhum prejuízo e o redesign (redesenho) também pode ocorrer de outras formas mais criativas, como a produção de HQs, minicontos, e até (multi)midiáticas, como a produção de memes, vídeos curtos, podcasts. O que se espera é que aos alunos da escola pública também sejam destinados os clássicos da literatura, inseridos por meio de abordagens que sejam significativas para esses estudantes, que propiciem e instiguem neles o cultivo da leitura literária, o prazer estético e a fruição por meio dessas leituras.
É válido ressaltar que apesar dessa proposta estar consonante com a BNCC em nível nacional e com o Documento Curricular Ampliado (DCGO Ampliado) em nível estadual, ela apresenta também um posicionamento crítico a esses documentos, objetivando trazer uma metodologia de abordagem ao texto literário que busque mitigar alguns problemas que envolvem o ensino de literatura e a formação do leitor literário na Educação Básica. Segundo Soares e Abreu (2022), o ensino de literatura na BNCC está diluído
[...] no campo das artes e das dimensões lúdicas, e têm sua importância confundida com a de gêneros textuais diversos, muitas vezes em prol de um ideal conservador de apreciação literária que ignora tanto o embasamento teórico dos estudos literários quanto o potencial crítico-transformador do texto (Soares; Abreu, 2022, p. 249).
Por esse motivo, é imprescindível que “professores/as se apropriem de instrumentos metassemióticos para preparar, selecionar e/ou adaptar recursos didáticos que superem as limitações estabelecidas pelas competências e habilidades da BNCC” (Szundy, 2019, p. 148).
Mas, propostas temos muitas! É preciso saber se elas realmente funcionam! Portanto, a seguir, teremos contato com a intervenção pedagógica feita através de uma pesquisa-ação participante realizada no Colégio Estadual Parque dos Buritis, de novembro a dezembro de 2022, levando a proposta de leitura de contos de Machado de Assis e Clarice Lispector mediada pela Pedagogia dos Multiletramentos para alunos dos 9ºs anos do Ensino Fundamental, trabalho que logrou muito êxito, dada a participação direta de 86 dos 90 alunos matriculados naquele período e que gerou a produção de 159 fanfics, as quais, após passarem por uma avaliação e uma mínima revisão ortográfica, compõem a segunda parte deste e-book.
7. O texto de autoajuda e best seller até pode estar inserido em uma proposta pedagógica interessante, mas não deve ser utilizado para preencher uma lacuna da ausência de um texto literário.
8. http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp