A necessidade de discutir e efetivar práticas pedagógicas voltadas para a formação do leitor em escolas públicas não é recente, tão pouco inédita. No entanto, dadas as condições em que se encontra grande parte dos alunos das escolas brasileiras, cujos dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) apontam para o nível mínimo de letramento em leitura – nível 2 – que esses estudantes deveriam adquirir até o final do Ensino Médio (Brasil, 2020, p. 70), a temática não cai em desuso. É fundamental que a reflexão, a defesa e o trabalho para que a formação do leitor profícuo, letrado, preparado para atuar socialmente por meio da linguagem em suas variadas manifestações, ocorra ainda na Educação Básica.
Se existe uma dificuldade em trabalhar o letramento em leitura com gêneros textuais disponíveis não somente nos livros didáticos, mas aqueles encontrados a todo momento nos contextos cotidianos da comunicação humana em uma sociedade altamente midiatizada (jornais, revistas, internet e outros), faz-se imprescindível refletir: em que lugar fica a leitura literária nas práticas de letramento ofertadas na escola, cujo objeto de estudo materializa-se no artefato livro?
Barboza, Teno e Sampaio (2019), no artigo ‘O letramento literário no Ensino Médio sob a perspectiva dos multiletramentos’, apontam alguns entraves que dificultam e muitas vezes impedem que as práticas de leitura literária se efetivem no Ensino Médio. São eles a falta de estrutura física nas escolas, a falta de bibliotecas escolares ou bibliotecas com acervo restrito, pouco diversificado e atrativo, carga horária reduzida para o ensino de literatura, falta de consciência metodológica por parte do professor, que muitas vezes privilegia o viés estruturalista da linguagem, com aulas pautadas em práticas que não propiciam a leitura literária efetivamente no contexto escolar, metodologia essa muito rechaçada por estudiosos e defensores do ensino da literatura, como Petit (2008, 2009, 2013, 2019), Zilberman (2008, 2012), Todorov (2009), Andruetto (2012, 2017), Montes (2020), e tantos outros autores que versam sobre a temática. Apesar do artigo citado referir-se ao Ensino Médio, essas dificuldades perpassam todo os níveis da Educação Básica, prejudicando o processo de formação do leitor literário que deveria ser desenvolvido durante as aulas de Língua Portuguesa, pois o letramento literário como “prática social e, como tal, responsabilidade da escola” (Cosson, 2016, p. 23) precisa ser construído desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, fazendo-se necessário, para tal, que o docente de Língua Portuguesa insira o texto literário, principalmente o livro literário, nas suas práticas de ensino, pois a literatura tem um papel importante na construção da identidade dos sujeitos e de sua forma de agir no mundo (Petit, 2019).
A leitura literária nos edifica e nos humaniza à medida que nos permite vivenciar situações, sentimentos e experiências que, ao serem vislumbradas pelo olhar de fora, contribuem para o “fortalecimento do imaginário de uma pessoa, e é com a imaginação que solucionamos problemas” (Zilberman, 2012, p. 148). Todorov (2009, p. 78) compartilha dessa mesma concepção, posto que considera que a “obra literária produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de associação e provoca um movimento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempo depois do contato inicial”. O papel ordenador da palavra processado no interior do texto literário propicia uma superação do caos interno vivenciado cotidianamente (Candido, 2004). Aqui, em um percurso em sintonia ao freiriano, a leitura da palavra possibilita uma organização da mente e dos sentimentos, para que se possa ‘ler’ o mundo também de uma forma organizada.
O acesso ao capital cultural (Bourdieu, 2007) – tendo a arte literária como uma de suas manifestações – faz parte dos direitos humanos, que, assim como os demais bens necessários à sobrevivência, não pode ser negligenciado, pois é “fator indispensável de humanização” (Candido, 2004, p. 175). Assim, os livros literários podem ser comparados a pontes que ligam, por meio da escrita e da leitura, pessoas e “condições de humanidade de uma cultura e as formas estéticas geradas a partir delas, entre o mundo íntimo de quem escreve e a sociedade à qual pertence, entre o ‘mais propriamente meu’ [...] e as vozes dos outros” (Andruetto, 2017, p. 28).
Como a literatura é concebida como “memória e, como tal, necessita construir com palavras um plus, uma distorção ou um deslocamento de sentido, uma fissura que nos permita ir em busca do que ainda desconhecemos” (Andruetto, 2017, p. 33), é necessário que seja acessada pelos alunos da Educação Básica, não em um viés estruturalista, preocupado com contextos e escolas literárias (Todorov, 2009), mas em um processo de identificação entre a leitura e o leitor (Petit, 2008), no qual se vislumbra no outro o que é essencial em nós (Andruetto, 2012). A mediação, importante meio para a formação de leitores, é o processo que proporciona esse encontro, é uma “ponte que une quem escreveu o livro e quem lê, uma ponte que editores e mediadores levantam” (Andruetto, 2017, p. 34). E é esse modo de conectar o livro ao leitor, a leitura literária ao leitor, que fará toda a diferença.
Uma das grandes mediadoras entre o livro e o leitor é a biblioteca escolar, lugar decisivo para a formação de leitores, cuja função é a de “propiciar práticas que fomentem o gosto pela leitura” e, para tal, precisa assumir “uma postura de agência de letramento, possibilitando que as pessoas se apropriem do conhecimento, façam usos efetivos da leitura e escrita em suas vidas” (Campos, 2018, p. 40). Montes (2020) ressalta que os frequentadores de bibliotecas não se tornam necessariamente especialistas, pessoas cultas, mas leitores, pessoas que caminham pela cultura. O fato de a biblioteca não ser um espaço impositivo ou vigiado, posto que fluido e constante, promove a formação de leitores. No entanto, a não utilização da biblioteca escolar como agência fomentadora da leitura literária e como uma agência de letramentos é um elemento agravante no processo de formação do leitor literário, visto que a realidade social brasileira não permite que a aquisição de livros literários seja algo corriqueiro na vida dos estudantes. Em uma visão local, temos que 20,53% das escolas da rede estadual de ensino de Goiás não possuem biblioteca escolar (Santos et al., 2017). Compreendendo o livro “como face material da literatura” (Zilberman, 2012, p. 195) e a biblioteca escolar como único local de acesso a ele para a maioria dos alunos da rede pública, indaga-se: como é possível formar leitores literários sem material autêntico de leitura – livros literários – que deveria ser disponibilizado nas bibliotecas escolares?
As ‘Diretrizes da IFLA para a Biblioteca Escolar’ definem a biblioteca escolar como “um espaço de aprendizagem físico e digital na escola onde a leitura, pesquisa, investigação, pensamento, imaginação e criatividade são fundamentais para o percurso dos alunos da informação ao conhecimento e para o seu crescimento pessoal, social e cultural” (IFLA, 2016, p. 19). A legislação educacional brasileira, por meio da Lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010 (Brasil, 2010), entre outras, também dispõe sobre a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do país, estabelecendo condições e prazos para que as bibliotecas escolares sejam implementadas nas escolas da rede pública e privada. Mas, lamentavelmente, nem todas as escolas possuem biblioteca e nem todas as que possuem a compreendem como agência fomentadora da leitura literária.
Por um lado, é extremamente importante cobrar do poder público o cumprimento efetivo da lei, garantindo a presença e a manutenção das bibliotecas em nossas escolas, por outro, não se pode cruzar os braços e aguardar que isso aconteça: “[...] o direito de ler na escola é inalienável, e além de direito do aluno, é dever do professor de Língua Portuguesa garanti-lo, apesar de todas as contingências contrárias” (Silva; Faria, 2018, p. 110). Independente do quadro que se apresente, entraves não podem inviabilizar a formação do leitor literário nas escolas públicas. Nesse sentido, entende-se que é preciso encontrar meios para se trabalhar a formação do leitor literário na Educação Básica com material literário autêntico, de modo a propiciar a ampliação das capacidades leitoras, a fruição e o letramento literário (Cosson, 2014, 2016, 2021) no ambiente escolar.
Além disso, Montes (2020) também aponta algumas condições para a formação do leitor literário na escola. A primeira é inserir a perplexidade, o enigma, ou seja, a leitura precisa nos causar uma estranheza, já que ela
[...] nos coloca diante do enigma. Ela, digamos, ‘perplexifica’ [...]. Deixa-nos à beira da iminência. E é esse enigma, essa iminência, essa primeira escuridão com a qual alguém, justamente, se confronta com o que o leva a ler. É esse vazio que deve ser preenchido. Esse silêncio que se enche com palavras. É assim que leitura respira. O ar não entra sozinho nos nossos pulmões, é o vazio que se faz nos pulmões que arrasta o ar para dentro [...]. E com a leitura é igual. Tem que haver um vazio que será preenchido lendo (Montes, 2020, p. 33).
A segunda condição está relacionada à diversidade de leituras que precisa ser ofertada, sempre se pautando no que a autora chama de ‘boa ficção’ e, por fim, na figura do ‘outro leitor’, do mediador. “O encontro leitor-leitor é um vínculo de grande transcendência. É mais que isso, creio que o vínculo entre professor e aluno deverá ser transformado em um encontro leitor-leitor” (Montes, 2020, p. 192), ressaltando a importância do professor (ou do mediador) ser um leitor.
Entender a formação do leitor literário na Educação Básica, desse modo, como um meio de garantir esse direito aos alunos, é pensar sobre como o livro chega até o aluno e como o livro parte com ele, considerando-se essa leitura um processo de letramento literário. Para Petit (2008, p. 185), “mesmo em contextos difíceis, não somos impotentes”, se dispusermos de uma margem de manobra. Porém, acrescenta que “em certos contextos é preocupante a estreiteza dessa margem” (Petit, 2008, p. 186). Portanto, é mister compreender como contornar os vários entraves que dificultam ou inviabilizam essa prática para instrumentalizar-se de modo a desenvolver um trabalho eficaz em meio a esse cenário, em que, de um lado, está a família que não consegue abastecer culturalmente suas crianças e jovens, e de outro, a escola com uma série de desafios para um trabalho eficaz com a leitura do texto literário.
Durante todo o percurso do livro ‘O jovem e a leitura: uma nova perspectiva’ (2008), Michèle Petit aponta para o espaço da biblioteca como agência de fomento à formação do leitor, à introdução ao universo literário e do bibliotecário como mediador; da biblioteca como espaço não só de formação, mas de manutenção desse leitor, visando a um processo de autonomia, uma vez que oportuniza o contato com diversas obras, autores e servindo a diferentes necessidades, sejam elas pessoais, culturais, de lazer ou até mesmo de trabalho. Entre o livro e o leitor está a biblioteca. Mas aqui, no nosso contexto, esse elo ou está empobrecido ou não existe. Essa ‘margem de manobra’ está bem mais estreita e frágil que se possa imaginar.
Por isso, para refletir sobre a formação do leitor literário na Educação Básica e situar essa prática realizada na escola, de modo a instrumentalizar o docente que trabalha diretamente com esse escopo, é necessário vislumbrar possibilidades didático-metodológicas em que o acesso aos livros literários por meio da biblioteca escolar é restrito ou inexistente.
Hodiernamente, o leitor faz parte de um mundo altamente midiatizado e influenciado pelas redes sociais, necessitando-se que o processo de mediação da leitura literária seja pensado para esse contexto. A Pedagogia dos Multiletramentos, termo inserido a partir de 1996 pelo manifesto publicado pelo New London Group (Cazden et al., 2021), defende a importância de se trabalhar com a língua de modo a considerar as importantes mudanças sociais ocasionadas pelo advento das tecnologias da informação e da comunicação, levando em consideração, no ensino, as multissemioses, multimodalidades e multiculturalidades presentes socialmente. Logo, caracteriza-se como uma proposta didática “de grande interesse imediato e condiz com os princípios da pluralidade cultural e de diversidade de linguagens envolvidos no conceito de multiletramentos” (Rojo, 2012, p. 30).
Pensada como estratégia didático-metodológica, a Pedagogia dos Multiletramentos constitui uma importante ferramenta de mediação para a formação do leitor literário em escolas sem biblioteca escolar, pois, além de contemplar as etapas para o letramento literário propostas por Cosson (2014), permite ao aluno experimentar novas semioses, novas modalidades e a leitura na tela do computador, talvez única forma de acesso à leitura em espaços onde não há livros, mas há internet.
Os mais conservadores podem considerar que a estratégia subjuga a função do livro e da biblioteca escolar, mas pelo contrário, encontra meios onde não há biblioteca física para o trabalho efetivo com a leitura literária em sala de aula. No mais, é
[...] indispensável introduzir essa hibridização das mídias na questão da leitura; mantê-las de fora é absurdo e pouco eficaz. E isso não vai contra a leitura da letra, da história, da poesia, da informação, que tem, do lugar da linguagem, um papel único, uma zona própria. Vai em favor de colocar o leitor na possibilidade, que deve ser lícita, explícita e estimulada, de aproveitar tudo o que seu tempo lhe oferece, de se infiltrar, com atitude de leitura, por toda parte (Montes, 2020, p. 206-207).
É mister defender que o compartilhamento de um patrimônio cultural tão valioso e necessário não seja deixado em segundo plano. A leitura literária deve ser garantida pela escola, principalmente a leitura dos clássicos (Calvino, 2007), compreendendo-se o clássico na escola como “o que se firmou como essencial” (Saviani, 2011), como uma experiência emotiva não correspondente à vida cotidiana, mas que, como “obrigação, é a chance que cada um tem de encaminhar-se para aquilo que ainda não atraía” (Snyders, 1993), buscando-se possibilidades para que os livros permaneçam na vida dos leitores, habitando suas memórias (Andruetto, 2017).
Então, vamos conhecer um pouco mais sobre a Pedagogia dos Multiletramentos? Para isso, antes, é necessário entender melhor os conceitos de letramento, letramentos, novos letramentos, multiletramentos e letramento literário.
A leitura em nossa sociedade possui uma tendência emancipatória. Enquanto ato de conquista, é “fundamentalmente uma forma especial de o homem relacionar-se com o mundo e com os outros homens, abrindo perspectivas para o aumento quantitativo e qualitativo do conhecimento” (Silva, 1994, p. 36). No entanto, o modo de ler o mundo não é o mesmo desde sempre. Se consideradas as primeiras línguas faladas, passando pelo surgimento da escrita e seu papel no controle social até as mudanças ocorridas na sociedade por meio do advento das tecnologias da comunicação/informação, presente nas primeiras línguas foi apagada pelo grafocentrismo, mas retorna fortemente com a ascensão das novas mídias (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020). Assim, considerar-se-á que todas as mudanças sociais provocam a necessidade de letrar os indivíduos de cada época para atuarem socialmente por meio da linguagem, cabendo à escola esse importante papel.
As novas demandas sociais, dadas as novas exigências relacionadas ao mundo do trabalho, à sociedade do conhecimento, às novas formas de se enxergar e de se participar da cidadania e da vida comunitária exigem mudanças nas abordagens metodológicas de ensino e aprendizagem. O acesso à educação enquanto “chave de oportunidade social” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 52) é a forma de mitigar e minimizar as desigualdades sociais. Ela contribui para que o sujeito possa perpassar por diferentes contextos de uso da língua, capacitando-o a “atuar em um mundo multicultural altamente interconectado e globalizado” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 53).
Na sociedade atual, o acesso à leitura e à escrita ocorrem por meio da alfabetização, ato pelo qual o indivíduo consegue reconhecer as correspondências fonéticas da língua por meio do código alfabético e ortográfico. Já o acesso ao letramento, ou seja, “ao saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente” (Soares, 2009, p. 20), se dá a partir do estímulo e da inserção nas práticas leitoras que circundam socialmente. Um sujeito não alfabetizado pode ser letrado, pois sabe fazer uso social da língua ao pegar um ônibus, ao fazer compras, ao usar um caixa eletrônico, por exemplo.
Street (2014) afirma que a escolarização passou a definir padrões de letramento e a marginalizar os letramentos chamados de não-escolares. Não obstante, mesmo que o letramento escolar se revele como um “produto de pressupostos ocidentais sobre escolarização, mais do que algo necessariamente intrínseco ao próprio letramento” (Street, 2014, p. 125), faz-se necessário considerar a importância da alfabetização e da escola nesse processo de democratização das práticas de letramento. À escola cabe letrar no sentido de “criar eventos [...] que integrem os alunos em práticas de leitura e escrita socialmente relevantes que eles ainda não dominem” (Rojo; Moura, 2019, p. 18), propiciando-lhes a participação em práticas letradas de esferas socialmente valorizadas como a escolar, a jornalística, a burocrática e a literária, por exemplo.
A amplitude, portanto, do termo letramento não propicia que seu conceito seja unilateral. Street (2014), Dudeney, Hockly e Pegrun (2016), Rojo e Moura (2019), Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) e Cazden et al. (2021) são unânimes em concordar que há muitos letramentos, demonstrando a necessidade de pluralizar a nomenclatura, já que todos os letramentos corroboram para o exercício de práticas sociais por meio da linguagem. Mas apenas a palavra letramentos também não sintetiza sua significação, tamanha a abrangência de seu alcance. Com o advento das tecnologias digitais da informação (TDICs) –, da web 2.0, emerge o conceito dos novos letramentos, os quais são múltiplos, multimodais e multifacetados, ou seja, são “mais participativos, colaborativos, distribuídos [...]. Os novos letramentos maximizam relações, diálogos, redes e dispersões, são o espaço da livre informação e inauguram uma cultura do remix e da hibridação” (Rojo; Moura, 2019, p. 26).
Desse modo, vêm à tona discussões a respeito de letramentos particulares como o letramento impresso, tendo como foco a linguagem; o letramento em pesquisa e em informação, tendo como foco a informação; o letramento em rede, com foco nas conexões e o letramento remix, com foco no (re)desenho. Todos esses novos letramentos estão relacionados ao impacto das novas tecnologias sobre a língua e sobre a necessidade de se trabalhar com o alunado habilidades próprias do século XXI, envolvendo as tecnologias digitais, como a “criatividade e inovação, pensamento crítico e capacidade de resolução de problemas, colaboração e trabalho em equipe, autonomia e flexibilidade, aprendizagem permanente” (Dudeney; Hockly; Pegrun, 2016, p. 16).
Toda a ampliação nos processos oriundos das “novas tecnologias, aplicativos, ferramentas e dispositivos viabilizaram e intensificaram novas possibilidades de textos/discursos – hipertexto, multimídia e, depois, hipermídia – que, por seu turno, ampliaram a multissemiose ou multimodalidade dos próprios textos/discursos” (Rojo; Moura, 2019, p. 26) e fizeram, assim, com que mais uma vez o termo letramento se ampliasse, passando, nesse contexto, a ser entendido como novos multiletramentos, os quais abarcam a necessidade de se interagir com as novas ferramentas que possibilitam o acesso à comunicação e à informação, que, por sua vez, são permeadas pelas multimodalidades, pelas multissemioses e pela multiculturalidade.
Os multiletramentos englobam, ao mesmo tempo, “a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se comunica” (Rojo, 2012, p. 13), trazendo uma nova ética que se baseia mais nos diálogos que na propriedade intelectual, produzindo novas interpretações (remixers/redesign/redesenho) e é fundamentada nos letramentos críticos. Mediante as novas mídias digitais, linguagens e semioses, os letramentos tornaram-se multi, para os quais ferramentas que vão muito além da escrita e do analógico se fazem necessárias, entrando em campo o audiovisual, o tratamento do som e da imagem, etc. Assim, a grande característica dos “novos (hiper)textos e (multi)letramentos é que eles são interativos” (Rojo, 2012, p. 23) e dependem diretamente da interação entre os usuários, perpassando por uma lógica interativo-colaborativa.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) compreende toda essa necessidade de se trabalhar o letramento, os letramentos, os novos letramentos e os multiletramentos na Educação Básica, orientando o ensino de Língua Portuguesa por meio de quatro campos de atuação: Campo Jornalístico-Midiático, Campo de Atuação na Vida Pública, Campos das Práticas de Estudo e Pesquisa e Campo Artístico Literário (Brasil, 2017). Para esse último, faz-se imprescindível a inserção do alunado em práticas de usos sociais da leitura literária por meio do letramento literário, o qual “não começa nem termina na escola, mas é uma aprendizagem que nos acompanha por toda a vida e que se renova a cada leitura de uma obra significativa” (Paulino; Cosson, 2009, p. 67), constituindo-se, portanto, mais uma forma de letramento.
O letramento literário pode iniciar antes do processo de alfabetização em casos nos quais a criança é inserida desde cedo no universo da contação de histórias e da fabulação. No caso de adultos não alfabetizados, há também aqueles que são exímios contadores de história, poetas, repentistas, autores de slams, entre outros gêneros, que transmitem oralmente seus saberes literários. No entanto, como aponta Zilberman (2012), é a alfabetização que propicia que o sujeito se torne um leitor autônomo, capaz de fazer suas próprias escolhas, e, assim como em outros processos de letramento de variedades prestigiadas socialmente, é preciso letrar-se literariamente.
Graça Paulino afirma que “o letramento literário configura a existência de um repertório textual, a posse de habilidades de trabalho linguístico-formal, o conhecimento de estratégias de construção de texto e de mundo que permitem a emersão do imaginário no campo simbólico” (Paulino, 2010, p. 143). Rildo Cosson, outro grande estudioso da área, define o letramento literário como um “processo de apropriação da literatura enquanto linguagem” (Cosson, 2014). Barboza, Teno e Sampaio (2019, p. 51) asseguram que “são as relações da leitura com a sociedade” que designam o letramento literário.
Letrar o indivíduo literariamente é, portanto, propiciar-lhe – através do contato com diversos suportes, gêneros, autores e estilos – que faça um uso intrínseco da leitura literária relacionando-a à vida, dado seu aspecto humanizador, mas sem desconsiderar a forma com que essa linguagem é trabalhada artisticamente. Por isso, esse processo depende tanto da alfabetização quanto do letramento e só se efetiva “quando acontece o relacionamento entre um objeto material, o livro, e aquele universo ficcional, que se expressa por meio de gêneros específicos – a narrativa e a poesia, entre outros – a que o ser humano tem acesso graças à audição e à leitura” (Zilberman, 2012, p. 130). O letramento literário é fruto de uma constante interação entre o sujeito e a leitura literária, de forma que essas leituras façam parte da sua vida, do seu imaginário, do seu discurso.
Para trabalhar todos esses letramentos aqui mencionados é imprescindível que o docente possua uma clareza teórico-metodológica que embase o ensino. Devido a essa necessidade, Cazden et al. (2021), entre outros autores, preocuparam-se em buscar uma Pedagogia dos Letramentos e posteriormente dos Multiletramentos como forma de direcionar o ensino de Língua Portuguesa de modo a contemplar os objetivos educacionais focados nesse viés. Por esse motivo, no tópico a seguir detalha-se a Pedagogia dos Letramentos e dos Multiletramentos.
O letramento e sua multiplicidade fez emergir uma pedagogia capaz de vislumbrar seus propósitos orientando a prática educacional para sua efetivação. Assim, a Pedagogia dos Letramentos visa “fornecer aos aprendizes os elementos efetivos para a construção de significados, o que está na base do conceito de letramentos” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 66). O termo pedagogia, “partindo de sua própria etimologia, significa não apenas a condução da criança, mas a introdução da criança na cultura” (Saviani, 2011, p. 66). Entende-se, no entanto, nesse contexto, por Pedagogia, “a relação de ensino e de aprendizagem que potencializa a construção de condições de aprendizagem que levem à equidade na participação social” (Cazden et al., 2021, p. 13).
Essa abordagem contribui para um desenvolvimento produtivo e intencional dos letramentos, podendo ser aplicada para a efetivação de qualquer um deles, inclusive o literário, e é realizada através de processos de conhecimento “que captam a variedade de diferentes tipos de atividade que os alunos podem realizar como parte de seu processo de aprendizagem” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 75), perpassando por quatro etapas: experienciando (o conhecido e o novo); conceitualizando (por nomeação e por teoria); analisando (funcional e criticamente); aplicando (apropriada e criativamente).
Rojo (2012) aponta que o surgimento de uma Pedagogia dos Multiletramentos ocorre a partir do manifesto publicado pelo New London Group. Esse manifesto, ainda em 1996, afirma a importância de se trabalhar o ensino da língua levando em consideração as modificações trazidas pelas tecnologias da informação e da comunicação, a multiculturalidade presente nos contextos escolares em um mundo cada vez mais globalizado e com dificuldades de se lidar com as diferenças. Nessa proposta, “o papel da pedagogia é desenvolver uma epistemologia do pluralismo que proporcione acesso sem que as pessoas tenham de apagar ou deixar para trás diferentes subjetividades” (Cazden et al., 2021, p. 33).
O que distingue a Pedagogia dos Letramentos da Pedagogia dos Multiletramentos é que essa última insere às multimodalidades e multissemioses dos textos a multiculturalidade social. No entanto, ambas possuem os mesmos objetivos que são instrumentalizar os educandos a participarem de maneira ativa, colaborativa e consciente do universo midiático no qual estão inseridos, de forma que possam alcançar, por intermédio dessa prática pedagógica, letramentos críticos. Para isso, “é necessário que eles sejam analistas críticos, capazes de transformar [...] os discursos e significações, seja na recepção ou na produção” (Rojo, 2012, p. 29) de textos.
Nesse viés, “não se trata de ensinar estruturas, formas, modalidades, gêneros ou discursos de cada espaço social concebivelmente relevantes, porque, dadas sua complexidade e sua diversidade, sobretudo no mundo atual, isso não faria muito sentido”, trata-se de “criar experiências de aprendizagem através das quais os alunos possam desenvolver conhecimento e estratégias para ler o novo e o desconhecido quando o encontram” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 178).
Os processos de conhecimento trabalhados na Pedagogia dos Multiletramentos – como apontado por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) –, são denominados movimentos pedagógicos por Rojo (2012); já as etapas para a efetivação da prática pedagógica são as mesmas para os autores, mas com a nomenclatura fiel à utilizada pelo New London Group, a qual também será privilegiada nesta proposta: prática situada (imersão); instrução aberta (análise sistemática e consciente – metalinguagem); enquadramento crítico (interpretação) e prática transformada (produção/distribuição – redesign /redesenho), meios pelos quais se efetiva a prática de ensino-aprendizagem no contexto atual (Cazden et al., 2021).
Então, vamos entender cada uma delas?
Prática situada: A prática situada é um processo no qual imerge-se nas práticas já conhecidas pelo alunado e inserem-se novas práticas dentro desse contexto (Rojo, 2012). Trata-se de experienciar o conhecido e o novo (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020), de um ‘mergulho’ no mundo das experiências já adquiridas para se direcionar às que ainda se irão adquirir. “Essa é a parte da pedagogia que se constitui pela imersão em práticas significativas dentro de uma comunidade de alunos que são capazes de desempenhar papéis múltiplos e diferentes com base em suas origens e experiências” (Cazden et al., 2021, p. 53).
Instrução aberta: A instrução aberta refere-se à instrução explícita (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020), às instruções que se utilizam da metalinguagem para melhor assimilação e compreensão do objeto em estudos. Para Cazden et al. (2021),
[...] o objetivo aqui é a percepção consciente e o controle sobre o que está sendo aprendido – sobre as relações intrassistemáticas do domínio que está sendo praticado. Um aspecto definidor da Instrução Aberta é o uso de metalinguagens, linguagens de generalização reflexiva que descrevem a forma, o conteúdo e a função dos discursos da prática (Cazden et al., 2021, p. 54).
Enquadramento crítico : O enquadramento crítico ocorre por meio da análise do objeto em estudos, seja ela uma análise funcional – pautando-se nos “processos de raciocínio, de estabelecimento de conclusões inferenciais e dedutivas, de relações funcionais (como entre causa e efeito) e de análise de conexões lógicas, em que os aprendizes desenvolvem cadeias de raciocínio e explicam padrões de conhecimento e experiência” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 79) –, ou seja ela de forma crítica, a qual “sugere avaliação das perspectivas, dos interesses e dos motivos daqueles envolvidos na construção de conhecimento, em que os aprendizes interrogam os propósitos relacionados aos significados ou às ações, com base na interpretação do contexto sociocultural” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 79).
Prática transformada: A prática transformada é o momento de considerar todo o processo adquirido e fazer um “uso mais inovador do conhecimento” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 79), produzindo novos textos que podem estar inseridos em um universo multimodal, multimidiático, multicultural do qual o aluno faça parte. Consiste, portanto, em uma “transferência na prática de produção de sentido que coloca o significado transformado para funcionar em outros contextos ou espaços culturais” (Cazden et al., 2021, p. 55). A prática transformada visa a uma reconstrução, uma ressignificação, um redesign /redesenho e um compartilhamento do conhecimento ora adquirido.
É válido ressaltar que a Pedagogia dos Multiletramentos leva em consideração que a aprendizagem ocorre por meio do design, a qual visa que os alunos não se tornem meros receptores ou repetidores de estruturas e conhecimentos já existentes, mas que sejam criadores de sentido (Rojo, 2012). Segundo Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 59), dentro das novas habilidades de aprendizagem hodiernas e futuras necessárias está a “mentalidade na perspectiva do design”, no entanto, o terno design aqui não é concebido como desenho ou projeto, traduções possíveis em língua portuguesa, mas como uma metalinguagem especializada utilizada pelo New London Group, o qual ganha um sentido de um
[...] tipo de inteligência criativa de que os melhores profissionais necessitam para poderem, continuamente, redesenhar suas atividades no ato da prática. Também se associa à ideia de que a aprendizagem e a produtividade são resultados de designs (estruturas) de sistemas complexos de pessoas, ambientes, tecnologia, crenças e textos” (Cazden et al., 2021, p. 34-35).
O termo design, para o New London Group, constitui-se um rico conceito pedagógico, já que pode referir-se tanto “à estrutura organizacional (ou morfologia) dos produtos quanto ao processo de criação” (Cazden et al., 2021, p. 35). Assim, toda atividade semiótica envolve os elementos dos Designs Disponíveis, do Designing e do Redesign, os quais juntos “enfatizam que a produção de sentidos é um processo vivo e dinâmico, e não algo regido por regras estáticas” (Cazden et al., 2021, p. 35).
Desse modo, os Designs Disponíveis estão relacionados aos “recursos para produção de sentidos”, o Design como “o trabalho desenvolvido sobre/com os Designs Disponíveis no processo semiótico” e o Redesign está ligado aos “recursos reproduzidos e transformados por meio do designing” (Cazden et al., 2021, p. 40). Assim, é possível afirmar que os movimentos pedagógicos, propostos pela Pedagogia dos Multiletramentos, trazidos pelo New London Group, partem da perspectiva da pedagogia do design para conceituar e explicitar da prática situada à prática transformada, visto que,
[...] nesse sentido, o processo de designing é um trabalho transformacional que, na vida do construtor de significado, representa a essência da aprendizagem, pois o ato de representar o mundo e as representações de outros no mundo transformam o aprendiz. Do mesmo modo, comunicar essas representações de volta para o mundo também transforma o aprendiz, pois, na medida em que este constrói significados, exerce sua subjetividade nos processos de representação e de comunicação. Como esses significados resultantes são sempre novos, o designer se refaz em seu trabalho de design. Essa é uma das principais proposições da teoria dos multiletramentos: que uma teoria do significado como transformação ou redesign é também a base para uma teoria da aprendizagem (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 174).
As características da sociedade atual requerem um sujeito que, desde a sua formação escolar, seja ativo, capaz não só de atribuir sentidos, mas de construir significados e de ressignificar os seus propósitos no mundo por meio de sua atuação. Tal fato pode ocorrer por meio de um ensino com base na Pedagogia dos Multiletramentos, a qual permite um trabalho em que se experienciem as aprendizagens, em que os alunos possam se desenvolver por meio da criação e recriação de signos, da transformação de significados, tornando-se sujeitos da aprendizagem, designers, ativos, produtivos, criativos, imbuídos sempre em uma prática significativa que propicie uma abertura às diversidades, com foco na solução de problemas, em constante atividade de inovação, propensos a atuar em um mundo em constantes transformações e repleto de pluralidades. Assim, é possível pensar em uma formação cidadã e emancipatória.
Destarte, a escolha da Pedagogia dos Multiletramentos para mediar o trabalho com a leitura literária se dá devido ao fato de que “essa proposta didática é de grande interesse imediato e condiz com os princípios da pluralidade cultural e de diversidade de linguagens envolvidos no conceito de multiletramentos” (Rojo, 2012, p. 30). No mais, contempla as quatro etapas para o letramento literário propostas por Cosson (2014): contato direto e interação com as obras literárias, espaço para o compartilhamento das leituras realizadas, ampliação do repertório literário e a oferta de “atividades sistematizadas e contínuas direcionadas para o desenvolvimento da competência literária, cumprindo-se, assim, o papel da escola de formar o leitor literário” (Cosson, 2014). Etapas essas a serem trabalhadas por meio dos quatro movimentos pedagógicos já mencionados. A mediação da leitura literária através da Pedagogia dos Multiletramentos também propicia o incentivo ao gosto pela leitura, a participação ativa dos alunos nesse processo, um vínculo de pertencimento, engajamento e acesso ao mundo multicultural e multimidiático em que estão inseridos (Lino, 2021).
Em face das reflexões e discussões expostas, uma ação pedagógica será proposta a partir da Pedagogia dos Multiletramentos, objetivando o trabalho em prol da formação do leitor literário, concebida, a priori, para escolas que não possuem biblioteca escolar, mas que pode ser adaptada a outros contextos e utilizando os materiais disponíveis, desde que possuam a qualidade necessária que a tarefa exige. O importante é que os professores se familiarizem com os elementos da pedagogia em questão e compreendam que não há uma ordem estática dos movimentos pedagógicos para sua execução, podendo usá-los da forma que mais se adeque aos seus intentos educacionais.
2. “No final do século 20, em 1996, um grupo de pesquisadores ingleses, americanos e australianos reuniu-se, na cidade de Nova Londres (EUA), para discutir as mudanças, então recentes, que estavam sofrendo os textos e, decorrentemente, os letramentos. Por isso, foi alcunhado como Grupo de Nova Londres (GNL - New London Group). Faziam parte do grupo pesquisadores como Bill Cope, Mary Kalantzis, Gunther Kress, James Paul Gee, Norman Fairclough, todos interessados em linguagem e educação linguística” (Rojo; Moura, 2019, p. 19).
3. “Uso combinado de diferentes modalidades de construção de significados: escrita, visual, audiovisual, espacial, tátil e oral” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 47).
4. “Web 2.0: nova geração de ferramentas baseadas na web como blogs, wikis e sites de redes sociais, focadas na comunicação, no compartilhamento e na colaboração, e que, portanto, transforma usuários comuns da internet, de consumidores passivos de informação, em colaboradores ativos de uma cultura partilhada” (Dudeney; Hockly; Pegrun, 2016, p. 18).
5. Entende-se por controle a avaliação do processo de aprendizagem.
6. Apesar de o termo ‘enquadramento crítico’ sugerir limitações e parecer paradoxal, ele traz na sua essência a possibilidade de que várias perspectivas e contextualizações sejam feitas em relação ao objeto de estudo. Para evitar distorções quanto ao termo, possivelmente oriundas de sua tradução, faz-se importante observar a terminologia utilizada por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) – analisando (funcional e criticamente) – em que vários tipos de abordagens e análises podem ser feitos, ao critério do professor, para que esse movimento pedagógico seja desenvolvido em face do intento educacional ao qual se propõe.