A Formação Continuada de Professores e a Construção de Identidades de Gênero em Sala de Aula da Educação Básica
124Resumo: A formação continuada no ambiente escolar emerge como uma ação significativa de mobilização que visa integrar formação, ação e reflexão, conferindo aos professores um papel central no protagonismo pedagógico. Dentre as temáticas que podem ser trabalhadas nesse momento formativo abordaremos a formação literária de professores da educação básica, especificamente explorando suas práticas de leitura em relação às identidades de gênero. A discussão dessas questões ainda é limitada no contexto escolar, apesar de sua relevância. Para ampliar essa discussão, a formação continuada de professores se faz necessária, pois se configura em uma mobilização que leva esses profissionais a exercerem o protagonismo de sua prática, por meio da ação-reflexão. O/a educador/a é o sujeito que aprende e ensina na relação com o mundo e também nas relações sociais e interpessoais, ou seja, num processo de formação continuada construído socialmente. Assim, nos indagamos sobre a importância de discussões sobre a construção de identidades de gênero nos processos de formação continuada dos docentes atuantes na Educação Básica, uma vez que, conforme comprovado com a Pesquisa Descritiva aqui apresentada, alguns desses profissionais demonstram dificuldades em discutir a questão em sala de aula. O instrumento utilizado na coleta de dados foi o formulário on-line do Google, ao qual cinquenta e um professores/as responderam. As questões eram voltadas à construção de identidades de gênero e ao modo como o tema é abordado no ambiente escolar, visando a quebra dos estereótipos impostos pela sociedade, onde apenas o heterossexual é considerado “correto”. Para fundamentar as análises e discussões, são referências estudos de Louro (2008; 2014), Scott (1990), entre outros.
Palavras-chave: Identidades de gênero. Educação Básica. Formação continuada de professores
1. Introdução
A partir da década de 1980, o conceito de gênero foi incorporado aos estudos históricos como uma categoria de análise para se pensar a questão da diferença sexual como uma construção social e também a noção relacional entre homens e mulheres no processo histórico. No Brasil, os estudos sobre as relações de gênero se ampliaram a partir de meados da década, mais especificamente, no interior de diversos espaços sociais – entre eles, a escola. Entretanto, as discussões relativas às questões de identidade de gênero no espaço escolar, com a perspectiva de valorização da igualdade de gêneros e de promoção de uma cultura de respeito e reconhecimento da diversidade, são recentes.
As pesquisas sobre questões de gênero no ambiente escolar justificam-se, sobretudo, no atual momento da história brasileira, em que movimentos que tentam impedir uma educação pautada na pluralidade e diversidade têm ganhado força com um discurso equivocado sobre a doutrinação nas escolas, a partir de uma suposta “ideologia de gênero”. A falta de conhecimento sobre o tema é perceptível quando muitos professores estão em uma posição defensiva, de resistência, e falar de gênero é assunto proibido. Temos a materialização da barbárie na educação, com a impossibilidade de ter a liberdade de ensinar e aprender, o desprezo à ciência e ao conhecimento e o acirramento das desigualdades educacionais, ferindo, assim, conquistas fundadas no âmbito dos direitos humanos.
125Para a historiadora norte-americana Joan Scott (1990), o conceito de gênero é entendido como um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos. Segundo Louro (1997), o termo serviu para demarcar as diferenças entre homens e mulheres, pois não são apenas de ordem biológica e física. Ainda conforme a autora, não se pode pensar a diferença sexual anatômica isoladamente das construções sociais e culturais. Portanto:
Uma compreensão mais ampla de gênero exige que pensemos não somente que os sujeitos se fazem homem e mulher num processo continuado, dinâmico [...]; como também nos leva a pensar que gênero é mais do que uma identidade aprendida, é uma categoria imersa nas instituições sociais (o que implica admitir que a justiça, a escola, a igreja, etc. são “genereficadas”, ou seja, expressam as relações sociais de gênero). (Louro, 1995, p.103).
Tais discussões são necessárias para serem compreendidas as relações de poder sobre os indivíduos, que reforçam o padrão da heteronormatividade e, consequentemente, geram a exclusão social e a violência.
O objetivo da pesquisa aqui apresentada é identificar os conceitos de gênero internalizados pelos profissionais da educação que responderam ao questionário proposto, se já tiveram alguma formação sobre o tema e se estão preparados para abordá-lo em sala de aula, em uma perspectiva capaz de subverter as relações desiguais e acolher os anseios dos/as alunos/as.
Partimos do pressuposto de que a atuação docente ocupa um espaço de relevância na educação escolar, de forma a contribuir para, além da formação humana integral, com mudanças de paradigmas em uma sociedade ‘dominada’ por concepções e práticas neoliberais que tomam, inclusive, o espaço escolar, subvertendo as práticas educativas às práticas mercadológicas.
Com a preocupação de articular o debate educacional, na perspectiva de promoção da equidade de gênero, e considerando as articulações de pesquisas interdisciplinares e a formação do/a educador/a, Louro (2002) comunga com a visão:
126[...] a Educação está implicada, seja qual for a perspectiva que se assume, num processo de construção de sujeitos. Gênero pode ser, pois, um conceito relevante, útil e apropriado para as questões educacionais. Pondo em xeque o caráter “natural” do feminino e do masculino, o conceito indica que há processo, uma ação, um investimento para “fazer” um sujeito “de gênero” (e não se duvida que a educação tenha a ver com isso). Por outro lado, nessa área, como ocorreu em tantas outras, os estudos e as práticas preocupados com tais questões concentraram-se, por muito tempo, exclusivamente, nas meninas e nas mulheres ou, em alguns casos, utilizaram, de forma muito limitada, o novo conceito, tomando-o como um mero substituto para o termo mulher e desprezando, assim, suas potencialidades analíticas mais radicais (Louro, 2002, p. 229).
A educação precisa cumprir um papel de destaque no enfrentamento dos desafios que se apresentam em cada contexto histórico, entre eles, os que demandam investir para a desconstrução de mitos e preconceitos, promovendo valores democráticos de respeito ao outro e de transformação social.
2. Metodologia
Para investigar a construção de identidades de gênero nos processos de formação continuada de docentes que atuam na Educação Básica, realizamos uma Pesquisa Descritiva (Gil, 1999). Optamos por utilizar um questionário on-line como instrumento de coleta de dados. Este questionário foi registrado no Google Formulários, permanecendo disponível por uma semana aos docentes participantes da pesquisa. O universo da pesquisa foi composto por professores/as de instituições de ensino municipais, estaduais e particulares de Goiânia. Após os profissionais da educação terem respondido ao questionário, as respostas foram analisadas e compiladas de forma que ficassem claros os aspectos relacionados à necessidade da formação continuada para uma prática docente que vise ao respeito às múltiplas identidades existentes no ambiente escolar.
1273. Resultados e Discussões
A pesquisa foi enviada para 85 professores/as e 51 responderam ao questionário, correspondendo, portanto, a 60% da totalidade. No que diz respeito ao sexo, 43 se identificaram como feminino, correspondendo a 84,3%, e 8 como masculino, sendo 15,7% do total. Em se tratando da formação inicial dos profissionais da educação que participaram da pesquisa, os dados coletados foram os seguintes: 23 pedagogos (45,1%), 10 professores/as formados em Letras (19,6%), 8 em Educação Física (15,7%), 3 em Matemática (5,9%), 2 em Biologia (3,9%), 1 em História (2%), 1 em Geografia (2%), 1 em Arte (2%) e 1 em Inglês (2%). Houve a participação também de 1 bibliotecário.
É importante perceber que abordar questões de gênero compete a todos os profissionais da escola, em todos os componentes curriculares e nas diversas circunstâncias do cotidiano em que essa abordagem se fizer necessária, para o processo formativo dos/as estudantes.
Sobre a formação continuada dos profissionais entrevistados, 3 não possuem nenhuma pós-graduação (5,9%), 43 (84,3%) disseram ter pós-graduação em nível de especialização, 4 fizeram mestrado (7,8%) e apenas 1 disse ter doutorado (2%). Quando questionados se em algum momento tiveram formação profissional para lidar com questões relativas a gênero, 42 profissionais disseram que não (82,4%) e apenas 9 disseram que sim (17,6%). Estes ainda relataram que a orientação recebida foi de maneira superficial, portanto, não sentem segurança para abordar o tema em sala de aula.
Ao serem perguntados se a escola colabora para o desenvolvimento de habilidades e interesses diferentes em alunos e alunas, 47,1% informaram que não, 41,2% disseram que sim e 11,8% não souberam responder. Os que relataram ter diferença entre meninos e meninas informaram que existe cobrança comportamental, na maneira de sentar, no modo de vestir, as meninas devem ser sempre educadas, não correr, não sujar, falar baixo, manter os materiais sempre limpos e organizados. Já em relação aos meninos, não há preocupação com a maneira de vestir, de comportar, as atividades físicas geralmente são voltadas ao interesse dos alunos.
A escola desempenha um importante papel na construção do conhecimento, inclusive, em se tratando da formação de identidades sociais, que também se dá por meio da interação e de práticas discursivas entre alunos e professores. É possível perceber nos relatos apresentados pelos participantes da pesquisa a importância de estudos e de cursos de formações para que as questões de gênero sejam abordadas de forma clara e coerente nas escolas, pois estas podem e devem cumprir a função de descontruir conceitos equivocados.
127Objetivando identificar o quanto é importante a inclusão nas atividades escolares de discussões sobre a questão de gênero, constatamos que 44 (86,3%) dos participantes da pesquisa responderam que a escola deve, sim, promover discussões sobre gênero e equidade de gênero, pois é um espaço fundamental das relações humanas e primordial no desenvolvimento dos sujeitos. Os outros 13,7% da amostragem ainda acham que as discussões de gênero devem ser feitas superficialmente, sem dar ênfase ao debate, uma vez que é um tema delicado e muitas famílias não aprovariam discussões sobre ele na escola.
É indispensável salientar que incluir o tema no currículo e debatê-lo apenas em certas datas não é suficiente, é preciso estudar, compreender a dimensão da temática. Além disso, em muitos casos, faz-se necessária uma reestruturação curricular, passando por uma revisão das teorias que fundamentam as práticas educativas e das normas que definem a organização dos espaços e das atividades cotidianas na escola.
A violência de gênero tem raízes nesses valores e é aquela oriunda do preconceito e da desigualdade entre homens e mulheres e que se apoia no estigma de virilidade masculina e de submissão feminina. Perguntando aos professores qual seria a reação deles ao presenciarem alguma situação, no ambiente escolar, em que alguém fosse alvo de machismo ou violência de gênero, chegamos à constatação de que a maioria (80,4%) se sente capaz de fazer intervenção no sentido de desconstruir o preconceito ou discriminação; porém, existe uma certa insegurança, pois acreditam que a situação merece muita atenção e responsabilidade e a formação que possuem ainda não é suficiente. Os outros 19,6% relataram que não teriam condições de fazer as intervenções por falta de conhecimento sobre o assunto.
Foi indagado aos profissionais acerca de como educar meninos e meninas para a igualdade de direitos e oportunidades, alguns disseram que essa educação deve partir de casa, outros informaram não saber como pode se dar esse tipo de educação. Mas, também houve professores que relataram que devem conhecer o tema, para, assim, poderem descontruir em si mesmos aquilo que está enraizado sobre o que é educar meninas e educar meninos e intervir, pedagogicamente, sempre que perceber atitudes de preconceito e discriminação, foram posturas apontadas por alguns dos participantes da pesquisa.
Todavia, é possível observar que, infelizmente, ainda não temos formação para lidar com assuntos relacionados ao preconceito, à construção de identidades e à violência de gênero. Concluímos, desse modo, que estamos engatinhando, na busca para conhecer o assunto, nos despir de preconceitos baseados na formação religiosa e patriarcal que recebemos.
4. Considerações Finais
É possível perceber que há uma lacuna na formação inicial de professores, que dificulta a realização de um trabalho voltado para as questões de gênero em sala de aula. Desse modo, investir na formação continuada é imprescindível, para que esse trabalho passe a fazer parte, efetivamente, das atividades escolares, mediadas por atitudes e práticas pedagógicas comprometidas com a formação integral dos estudantes e sensíveis à pluralidade. Faz-se, enfim, necessário um trabalho baseado no diálogo, com o intuito de contribuir para a desconstrução de concepções sexistas e patriarcais, que além de manter arraigados a desigualdade, o preconceito e a discriminação de gênero, sustentam a intolerância e geram o desrespeito à diversidade sexual, dentro e fora desse espaço que é a escola, ainda tão carente de estudo e análise, no que se refere às relações humanas.
1285 Referências
GALVÃO, A. C.; LAVOURA, T. N.; MARTINS, L. M. Fundamentos da Didática Histórico-Crítica . Campinas: Autores Associados, 2019.
Gil, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social / Antonio Carlos Gil. - 6. ed. - São Paulo: Atlas, 2008.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação : uma perspectiva estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
SACCOMANI, M. C.; COUTINHO, L. C. S. Da formação inicial de professores à formação continuada : contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica na busca de uma formação emancipadora. Germinal, Salvador, v. 7, n. 1, 2015.
SCOTT, Joan. Gênero : uma categoria útil para análise histórica. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-19, jul./dez. 1990.
Notas
1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica (PPGEEB-Cepae/UFG);