Metáforas Conceptuais no Ensino-Aprendizagem de Português: aula como acontecimento
53Resumo: O presente estudo objetiva descrever metáforas conceptuais sobre o medo produzidas por estudantes em redações do tipo dissertativo-argumentativo. Além disso, propõe sugestões de ensino de metáforas, pautadas na investigação e na concepção de “aula como acontecimento” (Geraldi, 2010). O estudo foi dividido em duas fases: uma investigativa e outra propositiva. As metáforas foram identificadas e classificadas de acordo com Lakoff e Johnson (2002) e Kövecses (1990). Os resultados mostraram que as projeções metafóricas encontradas nas redações são, sobretudo, ontológicas. O medo é conceptualizado como SUBSTÂNCIA ou ENTIDADE. Como substância, MEDO É FLUIDO e está dentro de um CONTAINER. Concebido como entidade, há conceptualizações do MEDO COMO OBJETO, RECURSO, OBSTÁCULO TRANSPONÍVEL ou INTRANSPONÍVEL, ENTIDADE INDESEJADA, SER VIVENTE, OPONENTE e SUPERIOR. A investigação auxilia no levantamento de conceptualizações do medo e das emoções em geral. Também traz contribuições para o ensino de metáfora.
Palavras-chave:Metáfora Conceptual. Ensino. Educação Básica.
1. Introdução
No ensino de língua portuguesa, as metáforas são amplamente trabalhadas como figuras de linguagem associadas a gêneros literários. Um estudo de Gil (2012) sobre o uso e trabalho com metáforas em livros didáticos demonstra essa realidade, apresentando dados sobre a localização das abordagens do assunto “metáfora” nesses manuais, o qual aparece, geralmente, em capítulos relacionados a fábulas, contos, romances, crônicas e, principalmente, poemas. A autora também destaca a classificação da metáfora como uso conotativo da linguagem nos livros didáticos analisados, demonstrando uma abordagem tradicional no ensino de construções metafóricas para alunos da Educação Básica.
Apesar da predominância de uma perspectiva tradicional a respeito da metáfora no ensino de língua materna no contexto da Educação Básica, a Linguística Cognitiva, a partir da Teoria da Metáfora Conceptual (TMC), formulada inicialmente por Lakoff e Johnson (2002), rompe com esse paradigma de concepção da metáfora como figura de palavra exclusiva à linguagem literária ou poética. Os estudiosos enfatizam que a metáfora compõe o sistema conceptual básico do ser humano. Elas estão presentes na vida cotidiana e são empregados de forma espontânea pelos falantes, portanto, não figuram somente em contextos literários, em que as metáforas são produzidas de forma mais controlada.
54Assim, o objetivo deste artigo é descrever metáforas conceptuais sobre o medo produzidas por estudantes em redações do tipo dissertativo-argumentativo, modelo ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), com tema “Como lidar com o medo atômico?”, disponibilizadas na plataforma de correção online Imaginie.
Ademais, pretende-se também refletir sobre o ensino de metáfora e propor maneiras de trabalho com a temática em sala de aula, a partir de uma perspectiva cognitiva, embasada na TMC, e da concepção de “aula como acontecimento”, discutida por Geraldi (2010). O pesquisador da área da educação, discutindo a constituição da identidade do professor ao longo da história, defende que o educador deve ocupar uma posição de pesquisador em seu trabalho. Desse modo, a partir dos acontecimentos na comunidade escolar, na sociedade em geral ou em escala global, o ideal seria discutir, com os alunos, acerca das causas, desdobramentos e relações desses fatos, instigando-os a formular perguntas e indicando caminhos para buscar respostas.
2. Referencial Teórico
Ao apresentar as noções da TMC na obra Metaphors we live by ([1980], 2002, p. 47-48), Lakoff e Johnson definem que “a essência da metáfora é compreender e experienciar uma coisa nos termos de outra”. Para a construção metafórica, há a transposição de um aspecto de um domínio-fonte para um domínio-alvo, ou seja, termos associados a um conceito que serão utilizados como referência a outro elemento, o qual possui com o primeiro alguma característica em comum, estabelecida pela experiência humana.
Segundo Ferrari (2011), o domínio-fonte geralmente é mais concreto, relacionado ao mundo físico, enquanto o domínio-alvo costuma ser abstrato. A metáfora do TEMPO COMO ESPAÇO ilustra a afirmação da autora. Essa projeção metafórica utiliza termos originalmente vinculados ao espaço físico (concreto) para se referir ao tempo (não alcançável pelos sentidos), o que pode ser observado em enunciados como “Cem anos atrás, o mundo era bem diferente. Portanto, podemos esperar que daqui para frente as coisas continuem mudando”, retirado de Martelotta e Palomanes (2020, p. 182).
55As especificidades sobre o domínio-fonte e o domínio-alvo, destacadas por diversos estudiosos da metáfora em uma perspectiva cognitiva (Kövecses, 1990; Lakoff; Johnson, 2002; Ferrari, 2011) têm relação com a noção de linguagem corporificada discutida por Johnson (1987). Segundo o autor, o modo como o ser humano percebe a realidade é construído a partir da constituição corporal e da interação do corpo com o mundo físico.
Sob a perspectiva da linguagem corporificada, o pesquisador formula o conceito de esquemas de imagem ou esquemas imagéticos, definidos como padrões de experiência corporal que estão implicados na sistematização de conceitos complexos. Ao abordar a temática em seu manual Linguística cognitiva: uma visão geral e aplicada, Abreu (2010, p. 31) destaca os seguintes esquemas de imagem:
[...] para andar, temos de manter nossa posição ortostática, surge o esquema de EQUILÍBRIO (BALANCE, em inglês). Do fato de que nos movemos, nasce o esquema de PERCURSO, composto por três elementos: ORIGEM, TRAJETO e META (SOURCE-PATH-GOAL, em inglês). Quando em percurso, podemos nos encontrar com alguém [...]. Temos então o esquema de CONTATO (CONTACT). Podemos enfrentar obstáculos [...] o que configura o esquema de BLOQUEIO (BLOCKAGE). Podemos aplicar a força do nosso braço e abrir a porta. Temos, então, o esquema de DINÂMICA DE FORÇAS (FORCE DYNAMICS), [...]. Podemos entrar em um edifício [...]. Temos, então, o esquema de CONTAINER. No esquema de CONTAINER temos três partes: dentro, fora e uma fronteira a ser transposta.
Essas estruturas são frequentemente utilizadas em projeções metafóricas, como em “Aquele presidente é um desequilibrado” (op. cit., p. 33), em que o termo destacado remete-se ao esquema de EQUILÍBRIO para se referir ao estado emocional instável do presidente.
56Retomando a metáfora do TEMPO COMO ESPAÇO, pode-se destacar a utilização da palavra atrás para se referir ao passado e frente como indicação do futuro. As noções de frente e trás se estabelecem a partir da constituição do corpo. Os seres humanos possuem um corpo composto por cabeça, tronco e membros. Na parte frontal da cabeça estão localizados um par de olhos, que lhes permitem enxergar determinado recorte de paisagem captáveis pela anatomia desses órgãos. Os indivíduos também se movimentam no espaço, o que retoma o esquema imagético de PERCURSO. Para que se perceba os BLOQUEIOS que podem estar no trajeto, utiliza-se os olhos, estabelecendo a importância dessas estruturas no corpo humano. Desse modo, o que é visível foi denominado FRENTE, já o que não pode ser alcançado pela visão foi definido como TRÁS.
As metáforas conceptuais podem ser classificadas em três tipos, de acordo com Lakoff e Johnson (2002): estruturais, orientacionais e ontológicas.
As metáforas estruturais sistematizam um conceito nos termos de outro, como quando se estrutura TEMPO COMO DINHEIRO (op. cit, p. 50). A partir dessa relação surgem expressões como perder tempo ou investir tempo, as quais utilizam termos geralmente relacionados ao dinheiro para se referir à cronologia.
Nas metáforas orientacionais, ocorre a organização de “[...] todo um sistema de conceitos em relação a um outro” (op. cit., p. 59), normalmente enfatizando aspectos de orientação espacial, recorrendo aos esquemas de imagem. Um exemplo é a conceptualização BOM É PARA CIMA e MAU É PARA BAIXO, presente na frase “Chegamos ao topo no ano passado, mas desde então estamos em declínio” (op. cit, p. 63). Essas construções metafóricas podem variar de acordo com a cultura.
As metáforas ontológicas, por sua vez, referem-se a construções embasadas na experiência humana com substâncias e objetos físicos (Lakoff; Johnson, 2002). Esse tipo de metáfora permite expressões semelhantes a combater a inflação, lidar com a inflação, ao conceber a INFLAÇÃO COMO ENTIDADE. A referência a objetos não humanos como se fossem pessoas, denominada personificação, também se enquadra neste tipo de metáfora.
3. Metodologia
Esta investigação pode ser classificada como qualitativa, em relação à abordagem, por analisar um fenômeno linguístico específico, os usos metafóricos da palavra medo, a partir de uma teoria particular, a Teoria da Metáfora Conceptual, inserida no campo da linguística cognitiva. Ela é também aplicada por refletir sobre o ensino de metáforas. Quanto aos objetivos, ela é descritiva por mapear e categorizar as metáforas produzidas por estudantes nas redações coletadas.
57A pesquisa foi realizada em duas fases, uma investigativa e outra propositiva. Desse modo, na primeira etapa da fase investigativa, foi realizado o estudo da literatura sobre linguística cognitiva e da Teoria da Metáfora Conceptual.
Na etapa seguinte, foram coletadas 30 redações de tipo dissertativo-argumentativo, modelo ENEM, sobre o tema “Como lidar com o medo atômico?” disponibilizadas na plataforma Imaginie.
No momento seguinte, as metáforas encontradas foram classificadas e descritas com base nos estudos de Lakoff e Johnson (2002), que inauguram os estudos sobre TMC, e Kövecses (1990), sobre metáforas conceptuais de emoções.
Na fase final, de caráter propositivo, foram elaboradas sugestões de ensino de metáfora, a partir dos resultados encontrados na investigação e da noção de “aula como acontecimento” discutida por Geraldi (2010).
4. Resultados e Discussão
Ao estudar a conceptualização das emoções, Kövecses (1990) afirma que esses conceitos são predominantemente metafóricos. Considerando essa premissa, nesta seção, serão analisadas metáforas do medo produzidas nas redações selecionadas. As metáforas encontradas no objeto investigado são predominantemente ontológicas, ou seja, conceptualizam o medo a partir da experiência humana física com substâncias ou objetos.
Para definir as metáforas ontológicas, Lakoff e Johnson (2002) destacam as ocorrências de projeções metafóricas que conceptualizam a experiência como entidade, recipiente ou substância. O termo “entidade” pode ser compreendido aqui como algo que existe, é concreto, podendo se referir a um ser ou objeto. O recipiente faz referência ao esquema imagético de CONTAINER, já citado anteriormente, das quais resultam as noções de dentro-fora, fronteira, cheio-vazio e excesso. A substância, por sua vez, é aquilo que preenche o recipiente.
Em suas investigações, Kövecses (1990) define o medo como uma emoção que emerge em situações de perigo, gerando respostas fisiológicas e comportamentais. Nas elaborações escritas em análise, o medo está frequentemente relacionado aos riscos de acidentes com energia nuclear, à possibilidade de guerras entre grandes potências com o uso de armamento nuclear, à memória das consequências do uso de bombas atômicas no passado e às informações sobre energia atômica divulgadas.
58Diversos fragmentos das redações evidenciam essa relação causa-consequência, destacando o medo, predominantemente, como efeito das condições apresentadas anteriormente. Para isso, os autores das redações utilizam verbos como: o medo é provocado, originado, ocasionado, causado ou gerado por alguma coisa; o medo se dá pela situação “x”; o medo advém, decorre de algo, como em:
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[...] informações não fundamentadas sobre um possível ataque nuclear acabam se espalhando rapidamente causando pânico em quem as lê. (RED 4, 2023)
No trecho acima, é possível observar que, na relação causa-consequência, está presente a metáfora conceptual MEDO É SUBSTÂNCIA DENTRO DE UM RECIPIENTE, que retoma a projeção metafórica mais genérica EMOÇÃO É SUBSTÂNCIA DENTRO DE UM RECIPIENTE, identificada por Lakoff e Johnson (2002), em que o recipiente é a pessoa que lê as informações não fundamentadas. Essa relação de sentido pode ser estabelecida a partir do uso da preposição em, a qual gera um efeito de continência, ou seja, de estar dentro.
Nas redações, o recipiente do medo geralmente é a população, a sociedade, as pessoas ou a coletividade. Todavia, há uma percepção diferente em um dos recortes coletados, no qual a emoção está inserida no evento guerra nuclear, fazendo com que a guerra seja o CONTAINER que envolve a substância medo, conforme apresentado a seguir:
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A existência do medo e a violência em um contexto de guerra nuclear proporciona ao indivíduo invencibilidade ou fragilidade extremas. (RED 15, 2023)
A metáfora do MEDO COMO SUBSTÂNCIA está presente em outros fragmentos, como o seguinte:
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[…] o conjunto dessas ações, a partir do conhecimento que delas será repassado, podem acabar com a proliferação da nuclearização e melhorar as relações internacionais, diminuindo o medo mundial. (RED 23, 2023)
Nesse exemplo, a ideia de que o medo está contido em um recipiente se replica, contudo, a estrutura agora utilizada é mais coerente com a metáfora MEDO É UM FLUIDO EM UM CONTAINER (tradução da autora), identificada por Kövecses (1990), pois o termo “fluido” remete ao sentido de maleabilidade da substância. Pode-se fazer essa afirmação, pois, no fragmento destacado, o medo é graduado ou quantificado, a partir da expressão diminuindo o medo. Em diversos outros momentos, a gradação da emoção aparece nas redações por meio dos verbos aumentar, acentuar, intensificar, diminuir, atenuar, minimizar ou potencializar o medo.
59Além das sistematizações destacadas, a metáfora do MEDO COMO FLUIDO EM UM CONTAINER também se manifesta no dado (4), a seguir:
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[...] para que haja, dessa forma, contenção do medo populacional (RED 5, 2023).
Nessa sentença, a palavra contenção, relacionada ao medo, demonstra a sua conceptualização como uma substância líquida, semelhante à água, que precisa ser contida em um recipiente para que se tenha maior controle sobre ela.
O MEDO COMO FLUIDO também se dissipa e exala, como em (5) e (6), demonstrando sua instabilidade como substância, pois os termos destacados são frequentemente associados a vapor, fumaça e aromas, substâncias compostas por moléculas dispersas que não podem ser manipuladas facilmente, como quando se diz que “a neblina se dissipou”, “aquela fumaça foi dissipada” ou “a flor exalava um aroma suave”.
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Torna-se importante garantir que a informação de como é produzida a energia atômica e, desse modo, dissipar o pânico que as notícias sobre esse assunto geram (RED 15, 2023).
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Dessa forma, far-se exalar o surgimento de medo, como reação imediata das massas [...] (RED 5, 2023).
De forma complementar às projeções metafóricas já apresentadas, há construções que demonstram conceptualizações diferentes de medo, as quais podem ser observadas em (7):
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[...] só através do desenvolvimento e bom uso da tecnologia que se poderá perder o medo do desconhecido (RED 7, 2023).
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A Coreia do Norte vêm mostrando o seu material bélico enquanto os Estados Unidos faz o mesmo, trazendo à tona o medo da possibilidade de uma terceira guerra mundial [...] (RED 1, 2023).
Aqui o medo deixa de ser substância em um recipiente e passa a ser concebido como uma entidade, mais especificamente um objeto. O MEDO COMO OBJETO, no fragmento (7), é conhecido, mas é perdido, quando a causa do medo é tratada de algum modo, no caso, através do “bom uso da tecnologia [energia nuclear]”. No fragmento (8), por sua vez, o medo vem à tona, o que expressa a ideia de que antes ele já existia, porém, estava ocultado. Conforme o texto, através das novas ameaças de conflito entre Coreia do Norte e Estados Unidos, ele ressurge. Ao observar as redações de forma integral, percebe-se que o medo “vem à tona” a partir do resgate de memórias sobre acidentes com a energia nuclear, ou uso de bombas atômicas no passado, e os potenciais riscos de extermínio da vida humana.
Considerado objeto, o medo também é conceptualizado como RECURSO que se explora, conforme grifo no recorte (9).
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[...] é fato que a tecnologia atômica tem sido utilizada para fins autoritários e supremacistas, impondo e explorando os medos das sociedades (RED 27).
Nas redações em análise, é recorrente a afirmação de que o medo deve ser eliminado, demonstrando que a emoção é indesejada pela sociedade. Assim, a administração ocorreria como forma de manter o controle sobre a emoção, evitando os seus impactos. Da ideia de que o medo é percebido como algo negativo, surge a estrutura (15), que afirma:
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[...] as instituições estatais mundiais devem exercer quaisquer que sejam as ações, para transpor o receio existente por parte da população, no que se refere a contiguidade da existência plácida (RED 14, 2023).
No exemplo acima, há a metáfora de MEDO COMO OBSTÁCULO TRANSPONÍVEL. A noção de obstáculo deriva do esquema imagético de BLOQUEIO. Essa prática da experiência física é utilizada na projeção metafórica de medo, concebendo-o como uma entidade que atrapalha a população, mas que, no trecho destacado, pode ser retirado do caminho.
Todavia, no corpus analisado, há construções que apresentam o sentimento como obstáculo que não pode ser completamente superado, como quando se diz que:
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Desse modo, percebe-se que lidar com o medo atômico não é nada fácil (RED 8, 2023).
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Atualmente, infelizmente, devido a alguns comportamentos geopolíticos, as pessoas voltaram a conviver com esse medo no dia a dia (RED 4, 2023).
Em (11), o verbo lidar, amplamente utilizado nas produções textuais em estudo, expressa esse sentido de que não há maneira de eliminar completamente a sensação de temor que permeia a população. Desse modo, constitui-se a metáfora do MEDO COMO OBSTÁCULO INTRANSPONÍVEL, com o qual é necessário conviver forçosamente, segundo o que se afirma no recorte (12). Trata-se de uma posição mais passiva em relação ao sentimento, em contraste com o que é elaborado na frase (10), de caráter mais combativo. Essa diferença de projeção se relaciona com a premissa da perspectiva apresentada anteriormente.
A convivência indesejada com o medo faz com que as pessoas se comportem de maneiras específicas para com essa emoção. Assim, um dos estudantes que elaboraram a redação faz a seguinte sugestão:
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Ademais, esses debates devem ser estendidos à toda população, para que se evite o pânico e o medo (RED 12, 2023).
Nota-se que, no último fragmento citado, similarmente ao trecho (12), o medo não é mais visto como objeto. Há uma relação das pessoas com a emoção, de forma que a população, tendo que conviver com o temor a contragosto, deve evitá-lo. É possível, então, perceber o MEDO COMO UMA ENTIDADE INDESEJADA, devido ao uso do verbo evitar, pois evita-se aquilo que não é tão desejado. O termo “entidade” nesse contexto passa a se referir a algum ser vivente. Dessa projeção metafórica surge o dado (14) que retoma a perspectiva de que o medo pode ser eliminado totalmente, ao utilizar o verbo extinguir, adotado, geralmente, quando determinada espécie de ser vivo deixa de existir na natureza.
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Em consequência disso, observa-se cada vez mais um estado sólido, capaz de extinguir o medo e de propor a paz (RED 14, 2023).
De forma distinta das orações citadas no início desta seção, as quais apresentam o medo como consequência da possibilidade de guerra ou de acidentes nucleares, alguns trechos retirados das redações colocam o medo como causa. Nessas construções, o sentimento normalmente realiza ações, provoca reações, funcionando como um causativo, como em:
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O medo faz o ser humano se manter vivo, porém, esse sentimento não deve paralisar (RED 18, 2023).
No fragmento acima, o medo é percebido como algo que pode ser positivo, pois “faz o ser humano se manter vivo”, e negativo ao mesmo tempo, porque pode paralisar, embora isso deva ser evitado. Quando o pavor realiza ações, ele é personificado. Retomando o posicionamento de Lakoff e Johnson (2002), pode-se definir a personificação como a atribuição de aspectos humanos a elementos não humanos. Essa conceptualização também constitui um tipo de metáfora ontológica. A metáfora do MEDO COMO PESSOA é corroborada pelos seguintes recortes:
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O medo de uma guerra nuclear pelo ser humano já o acompanha há várias décadas (RED 8, 2023).
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O medo posterior aos ataques ainda se faz presente com a possibilidade de uma terceira grande guerra (RED 30, 2023).
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O medo despertado não refere-se à tecnologia com elementos químicos, mas à aplicação vista nos últimos tempos, como a produção de armas nucleares capazes de extinguir a vida do planeta (RED 17).
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Relembrando os impasses da Guerra Fria, o atual cenário político ressuscita medos já esquecidos (RED 7, 2023).
Os dados apresentados em (16) e (17) demonstram que o medo atômico existe e está próximo do ser humano há muito tempo, normalmente vinculado às memórias das consequências do uso descuidado de energia atômica no passado. Os verbos acompanhar e se fazer presente se referem a atitudes humanas. Há um contraste entre os primeiros fragmentos e os trechos (18) e (19), pois estes últimos implicitamente compõem o sentido de que o medo estava adormecido ou sem vida, ao alegarem que ele foi despertado e ressuscitado. Essa relação se assemelha à afirmação de que o medo estava oculto e é trazido à tona, no fragmento (8), mesmo através de metáforas distintas, expressando o sentido de que a emoção estava latente e foi resgatada a partir das informações divulgadas sobre um possível ataque nuclear entre Estados Unidos e Coreia do Norte.
Os textos estudados também contêm metáforas já identificadas por estudiosos, tais como MEDO COMO ADVERSÁRIO (Lakoff; Johnson, 2002), ou MEDO COMO OPONENTE, de acordo com Kövecses (1990). A projeção metafórica em questão remonta o contexto de batalha, em que é preciso derrotar os soldados do exército adversário para conquistar a vitória. As conceptualizações estão presentes em:
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[...] torna-se explícita a necessidade de enfrentamento ao medo atômico (RED 22, 2023).
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[...] a melhor coisa que a usina nuclear pode fazer para combater o medo atômico é evitar, em primeiro lugar, os contratempos (RED 3, 2023).
Ao investigar a forma como o ser humano conceptualiza o medo, Kövecses (1990) observa a construção MEDO COMO SUPERIOR. Na conceptualização, o termo “superior” se refere a uma pessoa de posição hierárquica superior, que possui autoridade ou tem poder e sabedoria para aconselhar. Há uma ocorrência de construção metafórica com esse sentido, destacada em (22):
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[...] o medo advindo do potencial de ocorrência de acidentes com o material radioativo, como o ocorrido em Goiânia pelo descarte irregular de césio-157, mostra que, apesar de a tecnologia nuclear ter a possibilidade de ser benéfica, deve, sobretudo, ser manejada com responsabilidade e cautela (RED 27, 2023).
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O verbo mostrar, destacado no fragmento, possui o medo como sujeito gramatical. A frase aponta para o significado de indicar uma possibilidade mais adequada, reforçada pelo termo dever, para afirmar que é preciso ter cuidado com o uso da energia nuclear. Logo, no trecho (22) o medo é colocado em uma posição de conselheiro, já que sua função causativa promove a reflexão sobre e a prevenção de acidentes nucleares.
Como se pôde perceber a partir da análise dos dados, o medo frequentemente é utilizado como e em metáforas conceptuais nas redações coletadas. Além disso, as metáforas sobre o medo produzidas nas redações são bastante variadas e produtivas, construídas a partir de diferentes perspectivas acerca dessa emoção.
Assim, pautando-se nos dados encontrados e na perspectiva de “aula como acontecimento”, foram elaboradas sugestões de ensino de metáfora que objetivam auxiliar o professor de língua portuguesa da Educação Básica. A escola, na atualidade, ainda sofre influências de modelos escolares do passado, que vê o professor como um transmissor de conhecimentos produzidos por outros e, posteriormente, como um aplicador de regras, que deve organizar a maneira como o aluno se relaciona com os conteúdos dispostos no material didático. Todavia, o papel do educador deve ser semelhante ao de pesquisador, que ensina os alunos a aprenderem a partir dos acontecimentos, mostrando como se pode formular perguntas e indicando caminhos para a elaboração de hipóteses como resposta, de forma a participar da produção do conhecimento (Geraldi, 2010).
A partir dessa concepção, propõe-se que o trabalho com a metáfora aconteça considerando não só os usos literários, mas também as construções metafóricas produzidas em gêneros mais próximos do cotidiano dos estudantes, como memes, charges, cartuns, notícias, reportagens, postagens em redes sociais, artigos de opinião, entre outros, para que se observe que a metaforização é frequente na vida humana, destacando seus usos mais comuns, considerando a perspectiva cognitivista. Além disso, as produções textuais dos estudantes também podem ter destaque nas reflexões sobre metáfora, já que, como foi observado na pesquisa, os alunos produzem diferentes projeções metafóricas em sua escrita, seja de forma mais intencional e controlada ou de forma espontânea. Por fim, sugere-se que acontecimentos do cotidiano, como a temática da guerra e o medo atômico, por exemplo, sejam abordados no ensino de metáfora.
5. Considerações Finais
Tradicionalmente, as metáforas são consideradas figuras de linguagem específicas da linguagem literária, apontadas como mais presentes nas poesias. Entretanto, conforme estabelecido por Lakoff e Johnson (2002) através da Teoria da Metáfora Conceptual, a metaforização compõe o sistema conceptual humano, ou seja, o modo como se percebe, interpreta e categoriza a realidade. Geralmente, a projeção metafórica ocorre a partir do uso de estruturas oriundas da experiência com o corpo e o mundo físico para compreender conceitos mais abstratos.
63Nessa perspectiva, a metáfora está amplamente presente na linguagem, de modo que, muitas vezes, algumas construções metafóricas não são percebidas como tal, por já serem muito naturais e comuns na vida cotidiana. Compreender essas metáforas é entender o funcionamento não só da linguagem, mas da forma como o ser humano experiencia e compreende diversas situações.
Desse modo, através da investigação realizada, foi possível trazer observações sobre o modo como estudantes conceptualizam o medo, demonstrando a diversidade de perspectivas utilizadas para construir diferentes metáforas conceptuais, as quais revelam aspectos distintos da experiência humana com essa emoção. Assim, destacam-se as conceptualizações de MEDO COMO FLUIDO EM UM CONTAINER, MEDO COMO OBSTÁCULO TRANSPONÍVEL ou INTRANSPONÍVEL, MEDO COMO PESSOA e MEDO COMO OPONENTE.
Ademais, a pesquisa contribui para o ensino de língua portuguesa, na medida em que faz reflexões sobre o ensino de metáforas e faz sugestões que podem auxiliar o professor a direcionar a sua prática para uma abordagem mais ampla e atualizada sobre essa temática, alinhada com os conhecimentos produzidos por pesquisadores no âmbito acadêmico e fazendo com que a sala de aula também seja um espaço de construção de conhecimento.
6. Referências
ABREU, A. S. Linguística cognitiva: uma visão geral e aplicada. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2010.
FERRARI, Lilian. Introdução à linguística cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.
GERALDI, J. W. Aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
GIL, M. M. Metáfora no ensino de língua materna: em busca de um novo caminho. Dissertação (mestrado em Linguística Aplicada). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2012.
IMAGINIE. Temas de redação: Como lidar com o medo atômico? Disponível em: <>. Acesso: 09 de maio de 2022.
JOHNSON, Mark. The body in the mind: the bodily bases of meaning, imagination and reason. The University of Chicago Press, London, 1987.
KÖVECSES, Zoltán. Emotion concepts. New York: Springer-Verlag NY Inc,1990.
MARTELOTTA, M. E. & PALOMANES, R. Linguística cognitiva. In: MARTELOTTA, M. E. (org.). Manual de linguística. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2020.
LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Educ, 2002.
LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. The University of Chicago Press, London, 1980.