Robert Mitchel José Gonçalves

Keila Matida de Melo

EIXO
Programas e Projetos para formação de professores

Dialogismo e o Romance na Perspectiva Bakhtiniana em Estudos Relacionados à Literatura em Periódico Científico

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Resumo: Este estudo objetiva analisar as nuances da articulação entre romance e dialogismo em artigos científicos presentes na Revista Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso. A pesquisa é parte maior do Plano de trabalho Prolicen (2022-2023), cujo recorte temporal envolveu as produções alicerçadas no conceito de dialogismo e alteridade veiculadas na revista no período de 2008 ao primeiro semestre de 2021. Dessa coleta de dados, foram analisados três artigos. O conceito de dialogismo subsidiou análises sobre objetos variados de pesquisa, como a interlocução entre obra literária e pintura, diálogo entre obras e abordagem poética em romance. Como resultado, foi possível notar que o conceito de dialogismo compreende não apenas o diálogo entre textos verbais, entre formas de linguagem, mas também entre tempos históricos e perspectivas de mundo. Dialogismo amplia horizontes ao apontar um diálogo não apenas entre textos verbais, entre perspectivas de mundo, mas também entre tempos históricos, entre linguagens outras.

Palavras-chave:Mikhail Bakhtin. Dialogismo. Romance.

1. Introdução

As obras de Bakhtin auxiliaram significativamente no desenvolvimento de estudos no campo da linguagem, especialmente no que se refere à análise do discurso. Esta pesquisa foi concebida com objetivo de melhor entender um dos conceitos desenvolvidos por esse intelectual russo, no caso o dialogismo, nas investigações sobre literatura. Para isso, foram utilizados artigos científicos publicados na Revista Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, criada em 2008, que busca promover e divulgar pesquisas produzidas no campo dos estudos do discurso.

Ao todo, foram selecionados 10 trabalhos obtidos a partir do descritor “literatura e educação” que trazem dentre suas palavras-chave o conceito de dialogismo. Destes, tendo em vista o objetivo de entender a articulação dos conceitos de dialogismo com o gênero literário romanesco, houve a redução para 3 artigos, uma vez que os demais discorrem sobre dialogismo em contos, em conceitos como língua e literatura em abordagens gerais como literatura de massa e outros. Os três artigos escolhidos têm como título: “Ensaio sobre o diálogo: as relações intertextuais entre José Saramago, Pieter Bruegel e Van Gogh”; “Diálogos da dúvida: O eterno marido de Dostoiévski e Dom Casmurro de Machado de Assis”; “Uma partitura da tensão: dialogismo e poesia em Lavoura arcaica”. Neles, o conceito de dialogismo subsidia de forma explícita a análise de romances.

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É importante destacar que este estudo, que busca analisar a relação entre dialogismo e romance, está vinculado a dois Planos de trabalho Prolicen. O primeiro (Prolicen 2021-2022) mapeou as produções referentes à literatura presentes na Revista Bakhtiniana no período de 2008 ao primeiro semestre de 2021, tendo por base os conceitos de dialogismo e de alteridade. De 103 trabalhos identificados a partir dos descritores “literatura” e “literatura e educação”, foram excluídos 93 pelas seguintes razões: a) a teoria não era baseada nos estudos bakhtinianos; b) os conceitos trabalhados não foram os de alteridade e de dialogismo; c) os estudos não estiveram voltados à língua portuguesa e sim a outros idiomas; d) a análise recaiu sobre produções não atreladas à educação e sim a outras áreas do conhecimento.

Se o primeiro Plano buscou mapear as produções sobre literatura subsidiadas pelos conceitos de dialogismo e de alteridade; o segundo (Prolicen 2022-2023) teve como propósito analisar as produções selecionadas com objetivo de especificar como os conceitos foram abordados nos estudos em termos de objeto de pesquisa; quais obras bakhtinianas foram usadas. Os artigos, no caso dez, foram lidos na íntegra. Nesse sentido, este trabalho busca neste momento refinar a análise, buscando melhor entender especificamente o conceito de dialogismo em romances. Dos dez artigos selecionados no segundo Plano de Trabalho Prolicen, três deles estabelecem a relação entre dialogismo e produção romanesca e serão aqui descritos.

2 Referencial Teórico

O artigo intitulado “Ensaio sobre o diálogo: as relações intertextuais entre José Saramago, Pieter Bruegel e Van Gogh” de Gomes (2017) analisa as relações interdiscursivas entre literatura e pintura a partir da obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, e das pinturas A parábola dos cegos (1568) de Pieter Bruegel e Trigal com corvos (1890) de Van Gogh. O autor embasa-se em Bakhtin para afirmar que “[...] toda palavra surge como resposta e como ressonância a uma palavra já dita. Dessa forma, discurso algum pode ser considerado primordial, pois a palavra está sempre em tensão com um significado anterior construído socialmente” (Gomes, 2017, p. 39-40). Contudo, alega que o autor russo também defende a palavra individual como ressonância social, aspecto típico do escritor de ficção.

Gomes (2017, p. 40) explica que:

“[...] a voz do prosador ficcional se destaca como voz individual a partir da incorporação de outras vozes, de outros discursos. Ela nasce do contraste com outras vozes sociais, tais como as vozes do narrador, da personagem, do contexto político e social no qual o autor está inserido, da História e das referências textuais por ele incorporadas.”
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Esse diálogo com outras vozes sociais se evidencia pelo que Gomes (2017) pontua como a suspensão momentânea da narrativa. A partir dessa suspensão, outros textos de outros autores, a partir de outras linguagens e outros tempos, passam a compor a produção de Saramago, como por exemplo a tela A Parábola dos Cegos (1568) de Pieter Bruegel. Um dos trechos em que isso se evidencia ocorre quando “[...] o narrador chama a atenção para a impossibilidade de cegos cuidarem de outros cegos e do desespero causado por essa situação. Para ilustrar sua ideia, ele faz referência a uma pintura a fim de dizer que o destino daquelas personagens seria o mesmo daqueles cegos que se encontravam na tela mencionada” (Gomes, 2017, p. 42). Não é mencionada de maneira direta no romance a tela referida. Contudo, o sentido dessa produção é recuperado na narrativa, dando a entender que a história se repete a partir do destino das personagens antes na tela, agora no romance. A história vista como cíclica se evidencia ainda, segundo Gomes (2017), pelo uso do termo “ou” em que “[...] As personagens ou devem ser cuidadas por alguém que enxergue ou podem repetir o trágico exemplo histórico daquelas personagens da pintura” (Gomes, 2017, p. 43). Desse modo, “[...] A conjunção “ou” [...] não serve somente para inserir e reelaborar outro texto da tradição, mas serve também para contar outra história que poderia ou não se repetir com as personagens de Ensaio sobre a cegueira” (Gomes, 2017, p. 43 – destaques do autor).

Outras telas também são de algum modo introduzidas no romance. No caso específico, seriam as telas de Van Gogh, pertencentes “à fase mais aguda da doença que acometera Van Gogh, desequilibrando-o mentalmente. As pinturas prenunciam o desastre na vida pessoal do artista. A maior parte delas foi feita no ano de 1889 e a morte do pintor se dá em 1890” (p. 49). Essa recorrência recupera o passado, mas também prenuncia o futuro.

Tal tessitura tem como pretensão:

“Desse modo, ao ativar a memória da personagem com fragmentos de pinturas, Saramago trabalha com suas próprias capacidades de interpretação, problematização e reinvenção desses textos (pinturas), como também ativa no leitor as mesmas capacidades diante de sua obra e diante da ressignificação dessas imagens. Em seu discurso, o leitor pode, a partir de sua experiência pessoal, imaginar apenas esses fragmentos como imagens isoladas. Pode ainda relacioná-los aos originais (intertextualidade) e, em último plano, problematizá-los com o próprio enredo da obra e com o contexto no qual ela se insere. A experiência de fruição da obra é pessoal e intransferível. Entretanto, podem existir múltiplas possibilidades de sentido a serem construídas que vão do texto de Saramago a outros textos, em direção a mais de uma possibilidade de leitura a ser considerada pelo leitor.” (Gomes, 2017, p. 50).
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Dentre vários aspectos, Gomes (2017) conclui que a referência às telas evidencia o fim de um ciclo, caracterizado pelo destino das personagens de Bruegel (cegueira trágica, em que as personagens juntas poderiam cair numa cova), como também pelo destino do próprio escritor, à semelhança do que ocorreu com Van Gogh (o trágico fim que, no contexto de Saramago, seria marcado pela alienação e burocratização perante a cegueira provocada pela sociedade do capital). Gomes (2017) ressalta que os sentidos promovidos pelo romance dependem do leitor.

Em “Diálogos da dúvida: O eterno marido de Dostoiévski e Dom Casmurro de Machado de Assis”, Barros (2015) analisa O eterno marido (1870) de Dostoiévski e Dom Casmurro (1899) de Machado de Assis com objetivo de explorar o conceito de dialogismo para evidenciar as marcas dialógicas presentes na escrita desses autores. Para isso, Barros (2015) busca subsídio na teoria de Bakhtin para apontar que o “[...] dialogismo abarca uma amplitude de aplicações que ultrapassa as fronteiras do universo literário e se posiciona diante das relações humanas como condição de interação, de comunicação, da existência plena de um eu que só se realiza pelo olhar de um outro” (Barros, 2015, p. 135). Desse modo, a autora explica que no romance de Dostoiévski os enunciados do autor recaem sobre o protagonista, que pode responder a ele como um diálogo direto com um destinatário presente. Assim,

“Considerando que “a palavra do autor sobre o herói é realizada [...] como palavra sobre alguém presente”, o discurso dialógico criado por Dostoiévski nunca é fechado, não conclui nem define. Ao contrário, na voz dialógica o herói é representado como homem vivo que, pela própria condição vivente (movente), só se conclui com a morte. Realizando a palavra sobre alguém “que o escuta (ao autor) e lhe pode responder”, a voz autoral assume um posicionamento dialógico, encarando a personagem como tu, não como ele, permanecendo na linha do olhar da personagem sem adotar uma posição superior, acima e fora do diálogo em devir.” (Barros, 2015, p. 136).

Barros (2015) explica que o conceito de posicionamento influencia a dinâmica entre autor implícito, narrador e personagens. Então, o grau de autonomia na relação entre eles é definido pelo posicionamento, que determina seus campos de compreensão distintos. Consequentemente, como apontado pela autora, a partir deste limiar do posicionamento (diferentes percepções do contexto) surge outro importante conceito: o de respondibilidade (resposta), o qual se fundamenta na condição de os envolvidos no tecido do discurso romanesco ter uma resposta vinculada ao contexto em que estão situados, refletindo diferentes perspectivas sobre os eventos apresentados.

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Ademais, Barros (2015) aponta a característica do inacabamento que as comunicações dialógicas apresentam. Condição essencial para que haja interação entre os enunciados emitidos, uma vez que discursos não acabados permitem interferências mútuas, tornando a palavra bivocal e plurilíngue. A intersecção dialógica é apresentada a partir de exemplos das relações de José Dias com Bentinho e Trussótski com Vieltchâninov, evidenciando a influência das vozes umas sobre as outras. Nesse sentido, Barros (2015, p. 137) indica que “Em Dom Casmurro (1899) de Machado de Assis e em O eterno marido (1870) de Dostoiévski, a relação construída entre as personagens é um exemplo rico dessa intersecção dialógica de consciências, que se tornam agentes e reagentes de interferências mútuas nas quais a palavra bivocal encontra fluência” (destaques da autora).

Para Barros (2015), a tensão e o suspense são ressaltados pela concretização da suspeita, completando o círculo dialógico, já que nos romances de Machado de Assis e Dostoiévski a dúvida permeia as histórias, contribuindo para a complexificação das relações. As influências e interferências da voz do outro explicitam como as vozes de personagens secundários impactam nas consciências dos protagonistas, criando fissuras e dúvidas. Essa fissura, de acordo com Barros (2015), pode ser exemplificada no romance O eterno marido “[...] antes mesmo de Trussótski estar presente na trama ou se apresentar como imagem reconhecida pela consciência de Vieltchâninov (e do narrador), os valores dessa personagem, totalmente diversos dos de Vieltchâninov, estão ali presentes [...]” (p. 141) e em Dom Casmurro quando:

“As fissuras na consciência de Bentinho, provocadas pela fala do outro a respeito de Capitu, permitem que José Dias atue não somente como um agregado à família Santiago, mas também como um agregado à consciência do protagonista. Depois de plantar as suspeitas, José Dias enraíza profundamente o ciúme na mente de Bentinho, que frutificará como a certeza do adultério[...]” (Barros, 2015, p. 138).

Portanto, a análise de Barros (2015) destaca como a voz do outro impacta sobre a consciência dos personagens principais dos romances examinados pela autora. Então, a realidade retratada nas narrativas é moldada pela interação dialógica entre as diversas vozes presentes nessas obras. A autora finaliza ressaltando a característica do inacabamento das relações dialógicas e estendendo o convite para que novas interferências sejam realizadas e que o diálogo acerca das obras de Machado de Assis e Fiódor Dostoiévski continue.

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Já no artigo “Uma partitura da tensão: dialogismo e poesia em Lavoura arcaica”, Mota (2013) analisa a concepção de poesia associada ao círculo de Bakhtin na produção romanesca. Para o autor, a percepção de “[...] poesia nos escritos do Círculo é retomada por teóricos dentro e fora do Brasil para mostrar como o poético pode estar a serviço de posicionamentos ideológicos, reforçando o tom emocional-volitivo que anima a voz dos personagens centrais de Lavoura arcaica” (Mota, 2013, p. 157 – destaques do autor). Além disso, o autor fundamenta-se na teoria de Bakhtin para explicar que:

“[...] haveria uma diferença fundamental entre os escritores (e aqui se incluem até mesmo os prosadores) que se apropriam, que assumem completamente a linguagem da obra como sua (tendência monologizante) e aqueles que fazem um uso producente das linguagens alheias, que assumem o “plurilinguismo” social e fazem dele o centro irradiador da construção estética (tendência dialogizante)” (Mota, 2013, p. 161).

Essa diferença, de acordo com Mota (2013), é explicitada em Lavoura arcaica a partir da visão poética ao destacar a solidão, o desespero e o isolamento, que se transforma à medida que o mundo fechado é invadido por outras vozes, indicando uma tendência à interação dialógica. Por outro lado, o autor destaca que no romance a orquestração profundamente dialógica explicita perspectivas contraditórias em termos ideológicos, desafiando a ideia de uma língua única e centralizada. Então, “[...] Lavoura arcaica faz-se em cada um dos seus aspectos composicionais uma arena em que vozes lutam pela hegemonia num embate em que se jogam os destinos últimos do homem” (Mota, 2013, p. 159 – destaques do autor).

3. Metodologia

Neste estudo de natureza bibliográfica, optou-se por empregar a abordagem Estado da Arte como metodologia de pesquisa. Conforme apontado por Ferreira (2002), pesquisas com essa designação enfrentam o desafio de mapear e analisar trabalhos acadêmicos, visando compreender sua relevância em épocas específicas da história, bem como as circunstâncias e contextos em que foram elaborados. Ademais, como indica Ferreira (2002), os procedimentos das pesquisas que envolvem o Estado da arte são conhecidos por conduzir uma abordagem metodológica que envolve a catalogação e descrição da produção acadêmica e científica relacionada ao tópico de estudo. Entretanto, a autora critica principalmente a restrição do método desse tipo de pesquisa à análise de seções específicas dos trabalhos, como os resumos.

Neste estudo, no entanto, os artigos foram examinados integralmente, uma vez que o levantamento das informações por título, resumo e palavras-chave já havia sido realizado. Os cinco trabalhos que estabelecem a relação entre dialogismo e romance foram encontrados na Revista Bakhtiniana e foram publicados no período de 2008 a 2021. Destes, serão examinados: “Ensaio sobre o diálogo: as relações intertextuais entre José Saramago, Pieter Bruegel e Van Gogh”; “Diálogos da dúvida: O eterno marido de Dostoiévski e Dom Casmurro de Machado de Assis”; “Uma partitura da tensão: dialogismo e poesia em Lavoura arcaica”.

Quadro 1 - Dialogismo em produções na Revista Bakhtiniana

Título Palavras-chave Autor Ano Referência
1) Ensaio sobre o diálogo: as relações intertextuais entre José Saramago, Pieter Bruegel e Van Gogh Dialogismo, Heterodiscursividade, José Saramago, Pintura, Literatura Murilo de Assis Macedo Gomes 2017 GOMES, M. de A. M. Bakhtiniana, São Paulo, 12(3), p. 37– 53, 2017.
2) Dialogismo e barroquismo na ficção latino-americana no século XX Dialogismo, Barroco, Ficção latino-americana João Carlos de Carvalho 2016 CARVALHO, J. C. de. Bakhtiniana, São Paulo, 11(3), p. 40– 58, 2016.
3) Diálogos da dúvida: O eterno marido, de Dostoiévski e Dom Casmurro, de Machado de Assis Dialogismo, Realismo, Bakhtin, Dostoiévski, Machado de Assis Andrea de Barros 2015 BARROS, A. de. Bakhtiniana, São Paulo, 10(3), p. 130–147, 2015.
4) Uma partitura da tensão: dialogismo e poesia em Lavoura arcaica Lavoura arcaica, Bakhtin, Dialogismo, Poesia Bruno Curcino Mota 2013 MOTA, B. C. Bakhtiniana, São Paulo, 8(1), p. 157–175, 2013.
5) O romance: uma forma ético-política na perspectiva baktiniana Dialogismo, Polifonia, Romance, Mikhail Bakhtin Angela Maria Rubel Fanini 2013 FANINI, A. M. R. Bakhtiniana, São Paulo, 8(1), p. 21–39, 2013.

Fonte: Elaboração dos autores (2023).

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4. Resultados e Discussões

Dos 5 artigos descritos acima, apenas nos artigos “Ensaio sobre o diálogo: as relações intertextuais entre José Saramago, Pieter Bruegel e Van Gogh”; “Diálogos da dúvida: O eterno marido de Dostoiévski e Dom Casmurro de Machado de Assis”; “Uma partitura da tensão: dialogismo e poesia em Lavoura arcaica”, o conceito de dialogismo subsidia a análise de romances. Os demais abordam a ficção latino-americana de modo geral e o gênero romance em termos conceituais, a partir de abordagem ética-política, por isso não foram selecionados.

Em “Ensaio sobre o diálogo: as relações intertextuais entre José Saramago, Pieter Bruegel e Van Gogh”, Gomes (2017) trabalha com o conceito de dialogismo para construir “[...] as relações interdiscursivas entre literatura e pintura [...]” (Gomes, 2017, p. 37). Essa relação é estabelecida por meio do diálogo entre as obras de Saramago e as pinturas A parábola dos cegos, de Bruegel, e Trigal com corvos, de Van Gogh. Gomes (2017) indica que há um entrecruzamento de discursos, incluindo a possibilidade de as obras serem inspiradas em discursos religiosos. Explica que essa interação ocorre também por meio, por exemplo, da sobreposição de diferentes períodos históricos. O autor evidencia que o discurso está sempre conectado à palavra do outro e não pode ser considerado como algo primordial ou isolado, mas sim como parte de um processo contínuo de interação e reconstrução de significados.

Em “Diálogos da dúvida: O eterno marido, de Dostoiévski e Dom Casmurro, de Machado de Assis”, Barros (2015) objetivou com o conceito de dialogismo perceber as evidências dialógicas presentes na escrita de Machado de Assis e de Fiódor Dostoiévski. Essas marcas podem ser percebidas na interação de vozes apresentada como fissura aberta na consciência de um personagem pelo discurso de outro. Também na confluência de vozes como consequência da construção de uma nova consciência a partir do discurso alheio, exemplificada pelos personagens Dom Casmurro e Trussótski; no posicionamento das vozes de José Dias e de Trussótski; na particularidade do inacabamento, ou não findar, que as relações dialógicas exprimem, explicitado a partir da relação da voz/consciência do eu-leitor com as dúvidas suscitadas pela não afirmação dos fatos imaginados pelos personagens.

Em “Uma partitura da tensão: dialogismo e poesia em Lavoura arcaica”, Mota (2013, p. 157) baseou-se no conceito de dialogismo para “[...] pensar o tecido tenso de vozes que se confrontam no romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar”. Nesse sentido, como indicado pelo autor, o confronto dialógico pode ser percebido na interação de vozes, exemplificada na influência exercida pelos “olhos luminosos” do irmão mais velho, personagem do romance; na confluência de vozes em construção de uma nova consciência a partir do discurso alheio, explicitada a partir da conservação do “marco dos antigos”; no posicionamento das vozes dos filhos e esposas submetidos à autoridade, condicionada pela tradição rural, da palavra dos mais velhos; no entrecruzamento de tempos e espaços de discursos como a fala do pai enrijecida, o distanciamento da família, a fome, a refração e reflexão da voz do avô mesmo após sua morte. Mota (2013) aponta ainda para a presença de outros discursos como: as tradições; o moral e filosófico; o conhecimento ancestral; os poetas-pensadores-rebeldes e o condicionamento religioso. O autor expõe Lavoura arcaica como uma orquestração dialógica com perspectivas contraditórias, desfazendo a ideia de uma língua única. O livro, como apontado por ele, torna-se arena onde vozes lutam pela supremacia, abordando temas como lei e desejo, ordem e liberdade, tradições e autonomia. Assim, explicitado pelo autor quando expõe que:

[...] o que sobressai em Lavoura arcaica não é uma gama variada de jargões, de falares típicos, mas uma orquestração profundamente dialógica que explicita perspectivas semânticas e axiológicas contraditórias, que destrói qualquer imagem de língua única e centralizada. Lavoura arcaica faz-se, em cada um dos seus aspectos composicionais, uma arena em que vozes lutam pela hegemonia, num embate em que se jogam os destinos últimos do homem. A lei e o desejo, a ordem e a liberdade, as tradições do clã e a autonomia do indivíduo são os temas que se encarnam nos fios do discurso e ganham um dinâmico acabamento estético – tornam-se imagens (Mota, 2013, p. 159, destaques do autor).
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5. Considerações Finais

Nos romances citados, como no caso da produção de Gomes (2017), o conceito de dialogismo se mostra pelo entrecruzamento da narrativa com as telas de Bruegel e de Van Gogh não apenas como recuperação e ressignificação dessas produções num certo tempo histórico, mas também, e sobretudo, exigem que essa junção promova no leitor um refletir sobre o mundo, sobre o contexto atual, marcado pela sociedade capitalista, em que a cegueira e a tragicidade se fazem presentes. Dimensão atribuída ao sentido pretendido pelo autor, mas talvez não alcançado pelo leitor. Para essa discussão, as obras mencionadas de Bakhtin (ou do Círculo) foram: Marxismo e filosofia da linguagem, Problemas da poética de Dostoiévski, Teoria do romance I: a estilística.

As questões em torno das vozes que constituem o discurso de cada indivíduo permeiam a análise de Barros (2015); o conceito de dialogismo subsidia o estudo de dois romances que têm personagens principais que são influenciados por diversos discursos que moldam a subjetividade e visão de mundo deles. A autora destaca a complexidade das relações interpessoais e discursivas no contexto das obras discutidas. As obras mencionadas de Bakhtin (ou do Círculo) foram: Problemas da poética de Dostoiévski e Estética da criação verbal.

Em Lavoura Arcaica Mota (2013) buscou subsídios em: Problemas da poética de Dostoiévski; Questões de literatura e de estética; Os gêneros do discurso; Estética da criação verbal para explora como o dialogismo de Bakhtin se manifesta destacando a interação complexa de vozes, a influência de discursos preexistentes e a riqueza dialógica presente no romance. Ademais, o autor desafia uma visão convencional da poesia, argumentando que o poético em Lavoura Arcaica está intrinsecamente ligado a posicionamentos ideológicos e à expressão emocional-volitiva dos personagens.

Os temas-objetos em disputa na prosa romanesca estão envoltos nesse oceano de vozes, que, em última instância, são pontos de vista, posicionamentos ideológicos carregados de tons emocionais-volitivos (podem ser concordantes ou discordantes), mas que criam a imagem tensa, tanto dos personagens quanto da linguagem. [...] Podemos dizer que, no afã de implodir catedrais, modelos, regras, os poetas aprenderam a manusear, no terreno da poesia, algumas das armas e estratégias que Bakhtin atribui à prosa, por exemplo, fazer duas vozes, dois pontos de vista soarem polemicamente sem que o poeta se insurja claramente com a sua própria voz, permitir que do choque brote a significação. Ou outros, em que o poeta incorpora a fala das profissões, das classes sociais, ironiza-as, aproxima-se ou distancia-se, como em vários textos de Bandeira e Drummond, por exemplo (Mota, 2013, p. 162-163, destaques do autor).
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Nos três estudos citados, o conceito de dialogismo é alicerce fundamental de análise. Esse conceito amplia horizontes ao apontar um diálogo não apenas entre textos verbais, entre perspectivas de mundo, mas também entre tempos históricos, entre linguagens outras. Isso mostra que tal conceito tem sentido alargado e se interliga de palavras a outras, usadas pelos sujeitos, como memória discursiva que recupera, reforça, adere, complementa ou nega, rejeita fatos, preceitos, enunciados, como bem ilustra Bakhtin, assegurando, para tanto, que

[...] cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva [...] O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas [...] a nossa própria ideia - seja filosófica, científica, artística - nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento. (Bakhtin, 2003, p. 297-298, destaque do autor).

6. Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal: introdução e tradução do russo Paulo Bezerra: prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção biblioteca universal).

BARROS, A. de. Diálogos da dúvida: O eterno marido, de Dostoiévski e Dom Casmurro, de Machado de Assis. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso [S. l.], v. 10, n. 3, p. 130–147, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/2236 . Acesso em: 19 mar. 2023.

FERREIRA, Norma. As pesquisas denominadas “Estado Da Arte”. Educação & Sociedade, São Paulo, ano XXIII, n. 79, p. 257-272, ago. 2002.

GOMES, M. de A. M. Ensaio sobre o diálogo: as relações intertextuais entre José Saramago, Pieter Bruegel e Van Gogh. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso [S. l.], v. 12, n. 3, p. 37–53, 2017. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/33308. Acesso em: 04 dez. 2022.

MOTA, B. C. Uma partitura da tensão: dialogismo e poesia em Lavoura arcaica. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso [S. l.], v. 8, n. 1, p. 157–175, 2013. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/13769 . Acesso em: 15 nov. 2023.