Mariana de Cássia Assumpção (UFG)
assumpcao@ufg.br

Joycelaine Aparecida de Oliveira (UFG)
joyce.sertao@gmail.com

Andréa Alves da Silva Souza (UFG)
souzandrealves@gmail.com

Ensino e Aprendizagem da Língua Portuguesa nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental: uma Análise Histórico-crítica

451

Resumo

Ancorado nos pressupostos da perspectiva histórico-cultural, este artigo faz uma análise e uma reflexão crítica sobre o ensino da língua portuguesa nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Contrariando o famigerado construtivismo piagetiano que entende o desenvolvimento como propulsor da aprendizagem, partimos de uma concepção materialista histórica-dialética da formação do ser humano, ou seja, defendemos que a criança se desenvolve porque aprende e aprende em determinadas circunstâncias que podem ser ou não favoráveis a sua mais plena possibilidade de humanização. Nosso objetivo no presente texto é apresentar a fundamentação teórica que repousa na concepção histórico-crítica e, sobretudo, abrir a discussão de como o ensino da língua portuguesa pode ser bem-sucedido, como as dificuldades de aprendizagem podem ser superadas a partir de uma educação que aconteça no ambiente escolar de maneira sistematizadae que se volte à compreensão do funcionamento das funções psicológicas superiores, como pensamento e linguagem. A apropriação da língua escrita passa por complexos encadeamos de tipos de pensamentos, mas o salto qualitativo que possibilita o início da aquisição da língua escrita está no momento em que o sujeito faz a substituição do objeto concreto pelo símbolo abstrato representado mentalmente. Trata-se da estruturação daquilo que para a psicologia histórico-cultural é o reflexo subjetivo da realidade objetiva. No CEPAE temos um projeto em andamento que se debruça sobre as questões de ensino e aprendizagem em língua portuguesa nos anos iniciais do Ensino Fundamental. O projeto denomina-se LIPELIN (Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa em Linguagem e Infância). Esse laboratório permite estudos teórico-práticos sobre aspectos do ensino da língua portuguesa e se configura como um rico espaço de debates. Destacaremos, neste texto, elementos relevantes e resultados parciais do projeto construído coletivamente pelos professores da primeira fase do CEPAE. Vale dizer, ainda, que adotamos como fundamentação teórica o materialismo histórico-dialético. A metodologia de investigação abrangeuobras da psicologia histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica e de estudiosos da língua portuguesa.

Palavras-chave: Alfabetização. Letramento. Linguagem.

Introdução

Letramento e Infância: estudos interdisciplinares é um projeto de pesquisa que orienta as atividades do LIEPLIN (Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa em Linguagem e Infância). Tal projeto foi idealizado por Sônia Santana da Costa, professora de língua portuguesa, em diálogo com um coletivo de professores dos Anos Inicias do Ensino Fundamental, do CEPAE. O LIEPLIN foi coordenado por ela, entre os anos de 2016 a 2018, atualmente ela encontra-se aposentada e atua como pesquisadora colaboradora do projeto, que desde o seu começo buscou desenvolver estudos que abarcam ensino, pesquisa e extensão, nas áreas da Educação (teorias e práticas educativas) e da Linguagem (alfabetização e letramento, linguística e literatura) voltados, especificamente, para meninos e meninas, estudantes do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.

O projeto está fundamentado na perspectiva histórico-crítica, a qual apresenta uma concepção de ser humano que foge ao inatismo e, na mesma direção, se contrapõe ao empirismo. Não compactuamos, portanto, com a ideia de que a criança naturalmente carrega um conjunto de habilidades, aptidões e talentos múltiplos que estão garantidos por sua herança genética. Nessa vertente, a educação e, sobretudo, o professor deve interferir o mínimo possível nos processos cognitivos da criança, já que suas capacidades virão à tonaemergindo, a qualquer momento,a um patamar consciente. Afastamo-nos também da noção de que a criança é, tão somente, uma tábula rasa na qual as experiências captadas pelos órgãos dos sentidos lhe proporcionarão as aprendizagens que ela precisa desenvolver, bastando que na escolao aluno absorva, tal como uma esponja, os conteúdos ensinados.

452

Do mesmo modo, não estamos alinhadosà concepção construtivista de ser humano que, apesar de tentar superar as visões dicotômicas do inatismo e do empirismo, ainda traz alguns equívocos no que se refere à maneira como a criança aprende e se forma. Uma questão essencial para Piaget era a compreensão de que a criança nasce com umaestrutura biológica formada, mas para que ela se desenvolva é fundamental a relação com meio. Ademais, a criança deve ser ativana relação com o ambiente para assimilar e acomodar seus esquemas mentais às demandas do meio social na busca de um equilíbrio, ou seja, de uma adaptação. Em outras palavras, a teoria piagetiana advoga que o sujeito aprende e se desenvolve em sua interação com o meio ambiente, sendo que esse processo visa a adaptação do organismo ao meio a partir de sua organização interna:

Em resumo, a adaptação intelectual, como qualquer outra, é um estabelecimento de equilíbrio progressivo entre um mecanismo assimilador e uma acomodação complementar. O espírito só pode encontrar-se adaptado a uma realidade se houver uma acomodação perfeita, isto é, se nada mais vier, nessa realidade, modificar os esquemas dos sujeitos. Mas, inversamente, não há adaptação se a nova realidade tiver imposto atitudes motoras ou mentais contrárias às que tinham sido adotadas no contato com outros dados anteriores: só há uma adaptação se houver coerência, logo assimilação. [...] Mas em todos os casos, sem exceção, a adaptação só se considera realizada quando atinge um sistema estável, isto é, quando existe um equilíbrio entre acomodação e assimilação. (PIAGET, 1982, p. 18).

Um ponto altamente biologizante da teoria piagetiana é considerarsuficientea interação com meio para quea criança aprenda, não importando em grande medida as condições sociais desse meio. As etapas de desenvolvimento detectadas por Piaget são consideradas universais, ou seja, não guardam dependência com a qualidade das interações estabelecidas.

Sabemos, entretanto, que as condições do meio interferem direta e intransigentemente no desenvolvimento da criança. É fácil notar que existem funções psicológicas e características que pouco ou nada foram incorporadas e desenvolvidas por pessoas que já estão na fase adultaporque o contexto de vida e a conjuntura social capitalista asimpossibilitaram de apreender e se desenvolver. Não discordamos da importância do ambiente, nem da necessária postura ativa diante dele por parte da criança, mas entendemos que existem diferenças gritantes de desenvolvimento entre os indivíduos, pois não nos esquecemos aqui da luta de classes instaurada no modo de produção regido pela lógica do capital.

Entendemos o ser humano como aquele que age intencionalmente sobre a realidade no sentido de transformá-la e que, nesse movimento, de cunho contraditório e dialético, também se transforma. Ao mesmo tempo em que transforma e é transformado, o ser humano sofre diretamente as influências da realidade social e histórica em que está inserido. A formação do sujeito, a sua aprendizagem e o seu desenvolvimento dependerão intrinsecamente da qualidade das relações sociais que estabelecer ao longo de sua vida.

453

A criança, portanto, é um ser em profundo crescimento que necessita de mediações enriquecidas com a realidade para se desenvolver. A criança se relaciona com o seu contexto e dele se apropria, incorporando modos de ser e estar no mundo, desenvolvendo suas capacidades afetivo-cognitivas na direção de uma formação totalizante. Mas, nem todas as crianças tem as mesmas possibilidades e é, nesse sentido, que cabe à escola contribuir para que a criança estabeleça relações com o gênero humano que lhes traga um crescimento efetivo.

Um ponto essencial da aprendizagem se dá na capacidade que a criança adquire em relacionar a linguagem falada com a linguagem escrita, a qual demanda uma ferramenta abstrativa de alto nível, já que a criança, ao se comunicar e ao escrever, passa a lidar com a imagem do objeto (com a sua representação mental) e não com o objeto concreto. E mais que isso, a criança lida com a imagem do objeto a partir da palavra a ele atribuída que, por sua vez, encerra um significado específico. Não por acaso Vigotski (1996, p. 215) afirmou que “a palavra é o signo dos signos”. Para escrever, a criança precisa estabelecer uma correlação entre fonema e grafema que se institui unicamente por abstração.

O professor é a referência principal no processo de desenvolvimento do aluno, pois ele oferece aos alunos o acesso ao conhecimento humano sistematizado nos diversos campos. O professor enquanto detentor do conhecimento formaldeve transmiti-lo de modo adequado e dosado aos alunos, considerando elementos como a faixa etária, as condições materiais de trabalhopedagógico oferecidase os conhecimentos já trazidos pelos alunos.

O LIEPLIN conclama os pilares do ensino, da pesquisa e da extensão próprios ao ambiente acadêmico, condensando-os em uma proposta interessante de formação inicial e continuada de professores que busca superar as dificuldades de aprendizagem dos alunos que estão cotidianamente na escola.

Aportes Teórico-metodológicos

A concepção de mundo histórico-cultural tem seus alicerces fixados no marxismo. O marxismo enquanto corrente filosófica tem na categoria de trabalho o seu elemento principal. O trabalho pode ser compreendido, nessa perspectiva, como o intercâmbio entre o ser humano e a natureza que propiciou o conhecimento sobre a realidade, ou seja, tornou possível a edificação do mundo da cultura e resultou também em mudanças qualitativas, tanto na realidade objetiva quanto no próprio ser humano.

Duarte (2013) resume esta ideia ao destacar que a produção dos meios de satisfação das necessidades básicas de existência levou a uma dupla humanização, tanto da realidade exterior como dos próprios seres humanos. Ao mesmo tempo em que os seres humanos se apropriam da natureza, eles também se objetivam nos produtos de sua atividade transformadora.

454

No processo de intercâmbio com a natureza, o ser humano foi, aos poucos, produzindo os meios de satisfação de suas necessidades. Essa produ­ção dos meios carrega em si mesma um grande salto qualitativo que distinguiu os seres humanos dos animais. Em primeiro lugar porque aí estava a gênesedo caráter teleológico da atividade humana, já que a produção de um instru­mento, por mais primitivo que seja, requer a antecipação mental do resultado pretendido, tanto em termos do instrumento que se espera produzir, como dos usos que se espera que ele tenha. Em segundo lugar, a produção de meios da satisfação de necessidades dá ensejo ao nascimento de novas necessidades, gerando-se, dessa forma, uma dialética entre capacidades e necessidades que não se interrompe enquanto existir a humanidade (DUARTE, 2013, p. 25-35). Em terceiro lugar, a produção de instrumentos vem acompanhada da produção da linguagem e de formas de organização coletiva humana, ou seja, trata-se do processo de autoprodução do ser humano na condição de ser sociocultural.

Sabe-se, entretanto, que nos alvores do desenvolvimento humano, a atividade de trabalho estava diretamente ligada à satisfação de necessida­des elementares, vinculada à garantia da sobrevivência dos indivíduos. Com efeito, ao satisfazer as necessidades básicas, o ser humano engendrou um pro­cesso de criação de novas necessidades cada vez mais elaboradas, as quais não se restringiam à vida material, mas estavam relacionadas às elaborações de cunho teórico e abstrato que se cristalizaram nas esferas da ciência, da arte, da filosofia e da política.

Entender esse processo é entender, ao mesmo tempo, as transformações provocadas nos indivíduos a partir da crescente complexidade que se tornou a atividade humana e os produtos da sua ação sobre a natureza e a realidade. A psicologia histórico-cultural liderada pelo trio Vigotski, Luria e Leontiev partem da ideia de que a desenvolvimento humano caminha na direção que vai do interpsíquico ao intrapsíquico, ou seja, do objetivo ao subjetivo.

A transformação da realidade natural em uma realidade com características humanas provoca, na mesma intensidade, uma transformação de caráter subjetivo, isto é, ao produzir os meios de satisfação de suas necessidades, os seres humanos avançam em seu processo de desenvolvimento e humanização, adquirindo novas habilidades e aptidões. A produção de uma realidade sócio-histórica demanda de cada indivíduo a atividade de apropriação do legado cultural acumulado pelas gerações anteriores. Em outros termos, a realidade construída na e pela prática dos seres humanos deve ser incorporada à atividade das novas geraçõespara que estas também sejam inseridas na história e possam, assim, se humanizar.

Ressalta-se, ainda, a imprescindibilidade do processo educativo, no qual os indivíduos se apropriam do patrimônio histórico-cultural pela mediação do ensino sistemático e intencional. Sobre essa questão Leontiev (1978, p. 272, grifo do autor), afirma:

As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, “os órgãos da sua individualidade”, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo de educação.
455

A formação dos seres humanos é sempre um processo educativo, mesmo que ele ocorra de forma espontânea, ou seja, não deliberada. A diferença entre a educação espontânea que acontece, em especial, no cotidiano e a educação escolarestá no fato desta última ser guiada por fins conscientes, ela pressupõe intencionalidade. Vale dizerque na essência do trabalho educativo encontram-se transformações nas concepções de mundo, inaugurando um movimento que tende a romper com o senso comum próprio ao cotidiano e se direcionaà autoconsciência do gênero humano.

Neste ponto da discussão é lícito afirmar que, por um lado, o conhecimento carrega atividade humana condensada e objetivada, ou seja, ele é resultado da atividade de objetivação dos seres humanos. Por outro lado, a apropriação desses conhecimentos pelos indivíduos faz com que a atividade humana, que se encontra em estado latente nos conteúdos, possa retornar à vida, em especial, nas ações dos sujeitos que deles se apropriou. Por essa razão, assegurar que a transmissão e apropriação dos conhecimentos no ambiente escolar levam a um afastamento da prática social evidencia a ausência de compreensão dialética das relações teoria/prática.

Uma questão que poderia surgir é a de que os animais apresentam inteligência e usam ferramentas. Trata-se, entretanto, de uma inteligência prática direcionada à resolução imediata de situações impostas pelo ambiente. Martins (2013, p. 206) aponta que uma das diferenças fundamentais entre a inteligência prática dos animais e a do ser humano, encontra-se no fato deste último realizar suas atividades apoiando-se em conceitos, isto é, a sua atuação está baseada no emprego de mediações, o que pressupõe o desenvolvimento do pensamento abstrato. Segundo essa autora, a inteligência prática dos animais “se impõe como forma de adaptação às condições dadas pela situação, na qual o objeto percebido orienta a ação animal no atendimento de suas necessidades”. Já o pensamento abstrato dos seres humanos “se dirige pela intenção ou finalidade da ação, que exige, na maioria das vezes, a própria transformação da situação”. (MARTINS, 2013, p. 206).

Nesse contexto devem ser ressaltadas duas questões importantes desses excertos. A primeira delas é a de que a atividade prática se imbrica à atividade psíquica. Vale destacar, contudo, que a atividade abstrata não está diretamente ligada à atividade de pensamento teórico, pois, se assim o fosse, qualquer tipo de elaboração que ocorresse nesse nível poderia ser consideradacomo teoria provocando, assim, o esvaziamento do significado desse conceito.

A natureza da atividade de pensamento teórico contempla e requer dos seres humanos uma forma mais desenvolvida e complexa de elaboração mental. A segunda questão refere-se ao fato do ser humano lançar-se à transformação da realidade pela interposição de mediações não restringindo sua atividade, tal como o animal, a processos adaptativos subjugados à esfera orgânica.

456

No tocante à sala de aula e ao ensino de língua portuguesa destacamos a importância da tríade oralidade, leitura e escrita. Transitar por esses três elementos é essencial para o desenvolvimento do pensamento abstrato, suplantando o pensamento concreto ou por complexos. Uma maneira de sistematizarmos o trabalho pedagógico para atingir esse objetivo é atuar com os gêneros do discurso em sala de aula.A nossa intenção é mostrar nas páginas a seguir como é o projeto de ensino da língua materna nos anos iniciais do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação da UFG, na sua dimensão mais praxiológica, entre o ensinar e o aprender, no cotidiano da sala de aula, com os projetos desenvolvidos no e com o espaço da escola. Esse é o mote de nossa discussão no próximo item.

Resultados

Desde as primeiras séries do Ensino Fundamental até o Ensino Médio, toda a escola, entende que a língua materna deve ser ensinada no âmbito das linguagens, assim como ocorre com a dança, a música, a linguagem geográfica, matemática, etc. Porque a linguagem é uma prática social, uma mediação semiótica que nos permite o estar no mundo e o entendimento dele. Por meio das diferentes linguagens nos encontramos com o outro e nos comunicamos.

Nesse encontro que existe entre o eu e o outro, entre nós e os outros, acontece efetivamente a linguagem, entre diferentes sujeitos sociais, com suas diferentes histórias e diferentes formas de ver o mundo. É por meio dela que apreendemos o mundo, que construímos representações mentais acerca dele. É no outro e com o outro que eu significo o meu mundo vivido, o mundo em que coletivamente habitamos. Interações sociais que são tecidas no interior do processo da história, são formas de dar sentido ao mundo que vivemos, a isso também chamamos “cultura”.

Ao compreendermos isto, o ensino de língua portuguesa ganha uma dimensão diferenciada, que é: a de ensinar para o encontro com o outro, como nos ensina a professora Mary Cerruti. Ensinar a ler e escrever no uso, com o uso e para o uso. Esse é o cerne do pensamento bakhitiniano a respeito da linguagem. A língua como uma manifestação concreta de interação social em situações de comunicação, sendo esta, uma vertente que vai de encontro ao pensamento de Vigotski(1996), no tocante ao aspecto interacional da linguagem.

Assim, acreditamos, que a língua como uma das linguagens, deve ser ensinada por meio dos diferentes gêneros discursivos que circulam nas esferas sociais do vivido. Sendo, este, um dos caminhos possíveis para que os nossos meninos e meninas das séries iniciais se apropriem da modalidade escrita da língua nos seus usos sociais. De modo que a finalidade de aprender a ler e escrever encontra-se no uso social, na comunicação estabelecida entre as diferentes pessoas e em diferentes situações.

457

O sistema de ingresso no Colégio de Aplicação se dá por meio de sorteio público, portanto há uma diversidade de estudantes, entre crianças e adolescentes, com diferentes níveis sociais e culturais, e também, com níveis diferenciados de aprendizagem, o que a nosso ver torna a escola pública verdadeiramente interessante, e mais próxima do real, justamente por ser diversa e plural, por permitir que diferentes pessoas com suas histórias convivam e aprendam juntas. E, é para essa diversidade que direcionamos os nossos olhares e pautamos nossas pesquisas, nossas metodologias e formas de ensinar.

Compreender isso, torna-se um ato de extrema importância para o processo de letramento que defendemos, que consiste antes de tudo em possibilitar acessos aos estudantes, principalmentepara aqueles menos favorecidos financeiramente, dentro do mundo letrado por diferentes linguagens: a literatura, as canções, as imagens. No CEPAE, prezamos por isso, com os nossos projetos de ensino, pesquisa e extensão envolvendo diferentes linguagens, música, poesia, literatura e cinema.

A “Sessão Corujinha” é um desses projetos, por meio dele as crianças vão ao CINE-UFG para assistirem filmes, os quais não estão no circuito comercial do cinema, priorizando sempre produções independentes, de diretores e produtores locais. O “ir” ao cinema a pé, porque o prédio está situado a menos de 1 km do colégio, é um deslocar-se que traz alegria, pois vão brincando pelo caminho, alguns de mãos dadas com os amigos, outros de mãos dadas com os seus professores. Mas esse deslocar-se é sobretudo conhecimento, possibilidade de aprender, ampliando as vivências dos meninos e meninas das séries iniciais.

E, depois a ida ao cinema vira registro, por meio de desenhos, frases, cartas, relatos, críticas, etc... Registra-se o vivido, o acontecimento... Registra-se para não esquecer, registra-se demarcando o tempo e o espaço por meio do cabeçalho, para que o pensamento ao se materializar em escrita, se transforme em documento histórico por meioda folha do caderno. Dessa forma, mediados pelo professor, os meninos e meninas registram o que viu e sentiu, e o texto surge.

O texto surge por meio de cartas que podem ser trocadas com o diretor do filme, comentando o seu enredo, dando opiniões, sugestões, fazendo perguntas... O texto surge por meio de uma resenha a respeito do filme... O texto surge por meio de ilustrações; surge na tentativa da escrita livre com letras e palavras quando as crianças ainda não estão alfabetizadas, sendo este, um material importante para que em seguida o professor trabalhe a intenção do que fora escrito nos seus aspectos semânticos e fonéticos. Assim, como nos ensina Paulo Freire, em que realidade e palavra, texto e contexto vivido, estejam entrelaçados.

A ideia é: se a linguagem do cinema não é algo que faça parte do cotidiano de alguns alunos; se a música do Gilberto Gil; se um poema do Manoel de Barros, se as biografias, se os livros literários com os seus romances, novelas e contos não façam parte da realidade vivida dos nossos alunos, pois que tudo isso comece a se fazer por meio do cotidiano escolar. E, é aí que o ensino de língua portuguesa por meio dos gêneros do discurso poderá contribuir ampliando os horizontes culturais dos estudantes e possibilitando por meio do sistema alfabético, especificamente da modalidade escrita, encontros entre eles e os outros, entre eles e o mundo.

458

Acreditamos que ao ampliar as vivências culturais dos alunos por meio de diferentes linguagens acionando o imaginário, certamente, tais experiências serão incorporadas na capacidade de argumentar e defender ideias e pensamentos, sejam elas por meio da fala e da escrita. Nesse sentido, não poderíamos deixar de mencionar aqui a respeito dos encontros que semanalmente acontecem na biblioteca. Nesse espaço, as crianças socializam o que aprenderam com os livros que levaram para a casa, lendo-os para os colegas e tecendo comentários a respeito da obra, suas ilustrações, sua temática. Na biblioteca encontra-se também, uma pedagoga que conta e lê histórias para as crianças apresentando a elas, autores clássicos e contemporâneos da nossa literatura, permitindo o encontro entre livros e leitores.

Na percepção de todos os professores é visível, que este, é um dos momentos mais desejados pelas crianças das séries iniciais, por uma série de motivos: porque toda semana podem levar os livros para casa e permanecerem com eles durante oito dias; porque saem da sala de aula, para que esta aconteça em outro espaço, mais lúdico, mais interativo, menos formal.

Lá, cada professor de Língua Portuguesa, organiza a seu modo o trabalho a ser conduzido: leitura de livros, contação de histórias, vídeos com músicas, curtas, etc. Os alunos do 5º ano, por exemplo, estão lendo obras completas durante os encontros, inspirados nos círculos e clubes de leitura, em que reunidos em roda, escutam a leitura por meio deum leitor que lê os trechos da obra em voz alta.

No primeiro semestre deste ano letivo escolheramo livro “A bolsa amarela” de Lygia Bojunga para ser lido na biblioteca. Leram a obra na sua inteireza, porque acreditamos na literatura como forma de compreensão do mundo, por ser ela, uma fonte de muitos saberes que nos possibilita conhecer o real por meio do imaginado, por ser a literatura, uma ferramenta potente que atua entre o formar e o imaginar contribuindo para o processo de humanização das pessoas.

É Roland Barthes, um semiólogo francês, que nos diz “é real porque é literatura, todas as ciências estão presentes no instante literário” (BHARTES, 2014, p. 18). Ele nos convida a pensar que a literatura faz girar os saberes, porque nela encontra-se um teatro de linguagem que encena e ensina. No dizer de Barthes, em um romance como Robinson Crusoé existe um saber que é histórico, geográfico, social, colonial, botânico, antropológico, estando assim, muitas ciências presentes no instante literário.

Dentro da perspectiva da alfabetização como tecnologia da comunicação e do letramento como práticas sociais de leitura e de escrita, a formação do leitor literário é uma de nossas preocupações centrais, enquanto pesquisadores do LIEPLIN, e professores das séries iniciais. Defender a literatura como ferramenta de humanização é algo que nos move. À primeira vista, isso pode ecoar utópico, mas o fato de estarmos dentro da universidade, de termos uma biblioteca com bons exemplares, torna-se a utopia mais próxima da realidade.

459
Para que uma criança se constitua como leitora da literatura, no mínimo, três elementos são indispensáveis: a criança como leitora em potencial, a literatura e o mediador. Sem um desses elos a cadeia não se fecha e nenhum objetivo poderá ser alcançado na perspectiva do que pensamos como ideal de educação/formação humanizadora via literatura. (LIMA,2013,p. 86).

Nos esforçamos para que nenhum gênero textual seja ensinado na sala de aula de forma descontextualizada, e para que haja constantemente um trabalho de pesquisa da nossa parte. Se levamos uma canção, além de mostrar o som, a voz, o compositor, discutimos com os estudantes as possíveis interpretações que podemos fazer da canção, os discursos nela imbricados. Localizamos o período em que a canção foi escrita e lançada, que relações o seu discurso estabelece com o período histórico vivido, procuramos junto com as crianças cartografar, mapear o texto. Depois do diálogo e das inquietações suscitadas, passamos para o texto, que pode ser inclusive um comentário a respeito da canção com as suas possíveis interpretações, mensagens sublimares; pode ser a canção representada por meio de desenhos; por meio de uma história a partir dela inventada, muitas são as possibilidades, muitas são as continuidades de aulas com a mesma canção.

Para crianças maiores, respectivamente do 4º e 5º ano, temos utilizado um roteiro de escrita, orientando passo a passo, sobre os aspectos constitutivos do texto: como introdução, desenvolvimento e conclusão, além de lembrá-los de paragrafar e colocar as devidas pontuações. Em seguida, após o texto feito, as correções textuais são feitas com cada criança, dialogando com ela, levando a perceber os momentos que o texto pareceu confuso, as palavras com letras trocadas, a pontuação adequada. Desse modo a perspectiva gramatical é ensinada por meio do próprio texto, ou seja, não há um conteúdo a parte sobre verbos, substantivos e adjetivos, tudo isso é feito por meio da construção textual, seja ela individual ou coletiva. O texto coletivoé uma ferramenta potente para se trabalhar aspectos gramaticais, nele é possível mostrar os sentidos de uma vírgula, de um ponto de interrogação, de um advérbio, de um adjetivo, a estrutura de uma frase, de um parágrafo.

Optamos por uma abordagem de ensino em que o texto é o elemento central, a construção textual, portanto o foco gramatical se dá na construção textual. Para nós a escrita solta, sem amarras é um fator muito importante para o ensino da língua. Por isso, essa insistência por ampliar as vivências culturais das crianças, por meio da arte, da literatura, do cinema... Evidentemente, a gramática se faz importante, mas ela não é o nosso elemento maior. A formação do leitor, na sua capacidade de argumentar, de descrever, de narrar, de inventar, de registrar o que pensa por meio da escrita é o nosso primeiro objetivo nas séries iniciaisdo Colégio de Aplicação.

460

Considerações Finais

No presente texto abordamos o ensino da língua portuguesa a partir da concepção histórico-crítica, a qual entende o ser humano como transformador da realidade e si mesmo. A linguagem é o resultado de uma crescente complexificação da atividade do conjunto dos seres humanos sobre a realidade, sendo a principal delas a de se comunicar com o outro para agilizar e otimizar ações de caça que garantiam a sobrevivência do grupo. Ancorados na concepção pedagógica histórico-crítica que acentua o papel da escola como local privilegiado para transmissão dos conhecimentos e a figura do professor nesse processo, afirmamos a necessidade da educação formal para o desenvolvimento mais pleno e humanizado das crianças. Na mesma direção, assinalamos a função primordial da linguagem escrita como um nível mais elaborado de pensamento que conta com abstrações para se consolidar.

É, pois, por meio da linguagem escrita, da alfabetização e da literatura que ascendemos a patamares mais desenvolvidos de objetivação humana. Esse movimento faz que os indivíduos se afastem de uma visão particular da vida circundada em si mesmo para uma análise mais ampla, entendendo-se como membros integrantes do gênero humano.

No CEPAE, o projeto do LIEPLIN caminha na direção de levar a alfabetização, a produção textual a partir dos gêneros do discurso e a literatura para as crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental em seus níveis mais desenvolvidos de expressão. Os resultados alcançados com os alunos no que se refere às produções escritas e visuais são impecáveis como relatamos nesse texto. Com esse projeto nos aproximamos da práxiseducativa em língua portuguesa.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

BARTHES, Roland. Aula. Aula Inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de Franca. Tradução de Leyla Perrone-Moises. São Paulo, Cultrix, 2004.

CERUTTI-RIZZATTI, Mary Elizabeth. Ensino de Língua Portuguesa e inquietações teórico-metodológicas: os gêneros discursivos na aula de Português e a aula (de Português) como gênero discursivo. Alfa, Revista de linguística – n 56(1), UNESP, 2012, p. 249-269, Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4968/4138. Acesso em julho de 2019.

DUARTE, Newton. A individualidade para-si: contribuição a uma teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. 3. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2013.

LEONTIEV, Alexis Nikolaevich. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

MARTINS, Lígia Márcia. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.

PIAGET, Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

SIQUEIRA, Ebe Faria de Lima. Literatura sem fronteira: por uma educação. 321 f. Tese (Doutorado em Letras) Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, 2013.

VIGOTSKI, LievSemiónovich. Obras escogidas IV: Psicología infantil. Madrid: Visor, 1996. Tradução do russo de: Amelia Alvarez y Pablo Del Río.

Notas

1. Graduada em Pedagogia, Mestra e Doutora pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Araraquara. Trabalhou como professora na rede estadual de São Paulo e na rede municipal de Araraquara. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Goiás (UFG), lotada no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicados à Educação (CEPAE). Seus interesses de pesquisa concentram-se na área de fundamentos da educação, com ênfase na pedagogia histórico-crítica e na psicologia histórico-cultural.

2. Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Montes Claros, Mestra e Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. Possui experiência na área da educação, cultura popular e geografia cultural. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Goiás (UFG), lotada no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicados à Educação (CEPAE).

3. Graduada em Pedagogia e especialista em Língua portuguesa pela Universidade Federal de Goiás, Mestra pelo programa de mestrado profissional em Educação Básica – CEPAE/UFG. Tem experiência na área da educação, com ênfase em língua portuguesa, alfabetização, texto, leitura, literatura, gêneros e argumentação. Atualmente é professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), lotada no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicados à Educação (CEPAE).