Marcos Jerônimo dias Júnior (PPGE/UFG e SEDUCE/GO)
mjrgoias2012@hotmail.com

A Dinâmica das Concepções Curriculares Hegemônicas e o Fetiche do Currículo na Educação Física Escolar

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Resumo

Em tempos de intensificação da contradição entre capital e trabalho, recuo da teoria e valorização do pragmatismo, utilitarismo, individualismo e competitividade que implica nas variadas áreas, instâncias e instituições da vida social, nas quais destacamos a econômica, a política, a cultura, a educação e como instituição a escola, percebemos uma inversão dos princípios, valores, sentidos e significados atribuídos à formação e desenvolvimento humano, tanto na formação inicial e continuada de professores quanto na educação básica. A educação escolar, especificamente a educação física escolar, é uma das instâncias da vida social que se observa esta inversão que culmina na alta valorização dos princípios mercadológicos em detrimento aos direcionados a uma educação para a humanização. Neste contexto, o referente artigo apresenta a síntese de uma pesquisa de dissertação que teve como objeto de investigação, a proposta curricular para a Educação Física da Rede Estadual de Ensino de Goiás, partindo da seguinte problemática: Quais os elementos e mecanismos ideológicos presentes na proposta curricular de educação física na Rede Estadual de Educação de Goiás? Os principais objetivos tiveram como proposta revelar e analisar as principais determinações que constituem a dinâmica desta proposta e identificar os elementos e mecanismos ideológicos que podem implicar na formação e no desenvolvimento dos estudantes e no trabalho docente. A metodologia empregada consiste na análise documental articulada à entrevista com professores e professoras da rede. A análise da realidade encontrada nos revelou a presença de determinados mecanismos ideológicos na estrutura eorganização do currículo escolar que o fetichiza, na acepção marxiana do termo, tornando-o uma "fantasmagoria escolar" híbrida e eclética, constituída de concepções neotecnicistas e neoescolanovistas de educação e desenvolvimento.

Palavras-chave: Educação Física. Currículo Fetiche. Neotecnicismo.

Introdução/Justificativa

No decorrer histórico do desenvolvimento e transformação dos modos de produção socioeconômicos, não há registros de se ter criado e produzido, universalmente, tantos meios e objetos materiais e espirituais — cultura, ciência, tecnologia, mercadorias — como temos visto na sociedade contemporânea, sob a égide do modo de produção capitalista. Contraditoriamente, nunca foi tão profunda a desigualdade social em nível mundial. Assistimos, um tanto inertes e bastante impotentes, o aumento exponencial da exploração do trabalho, da alienação, do individualismo, da competitividade, da violência, da corrupção, do consumismo.

Nesse contexto, alcançar e compreender a concreta função social da escola não é tarefa fácil, pois existem determinações e mediações que dizem respeito ao conhecimento e às formas de acesso a este que claramente o direciona para o aperfeiçoamento do processo de produção e reprodução do capital, pois entendemos que ‟[...] as determinações gerais do capital afetam, profundamente, cada âmbito particular, com alguma influência na educação, e, de forma nenhuma, apenas as instituições educacionais formais” (MÉSZÁROS, 2008, p. 43).

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Para dar direção ao conhecimento necessário aos indivíduos de acordo com seus interesses, o capital necessita constituir certos mecanismos ideológicos e sem dúvida, a "ampliação para menos" da educação escolar, conforme Algebaile (2009), tem sido um dos mais eficazes. A inclusão excludente e a ampliação para menos, tão caras ao capital, necessita de um currículo que seja tão contraditório quanto o tipo de educação escolar que foi historicamente se constituindo: um currículo que na essência coloca o conhecimento "de joelhos" diante do modo de produção, mas que ao mesmo tempo se mostra como instrumento indispensável da formação e do desenvolvimento das pessoas, pois para reproduzir-se, o capital ainda necessita educar o trabalhador — minimamente no que diz respeito aos conhecimentos científicos e tecnológicos e amplamente no que diz respeito a educá-lo ideologicamente.

Tais relações e contradições foram se revelando em toda sua complexidade à medida em que avançávamos em nossa pesquisa sobre a proposta curricular para a Educação Física da Rede Estadual de Ensino de Goiás, cujo objetivo principal estava em desvelar e analisar a estrutura e a dinâmica desta proposta, com especial interesse em determinar qual ou quais teorias e/ou concepções curriculares sustentam a proposta e as orientações para sua implementação.

Realizamos uma investigação documental da proposta curricular, constituída de três documentos distintos: o documento que apresenta um plano de reforma educacional para o estado de Goiás intitulado ‟Pacto pela Educação” (2010), um outro documento intitulado "Currículo de Referência" (2011) e os ‟Cadernos de Reorientação Curricular”(2009; 2009a; 2009b; 2009c; 2009d), todos produzidos pela Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás (SEDUCE). Articulada à investigação documental, realizamos uma pesquisa empírica com nove coordenadores e coordenadoras e dez professores e professoras de Educação Física de escolas localizadas no município de Anápolis. O procedimento metodológico adotado foram entrevistas semi-estruturadas, objetivando identificar como os professores compreendem a proposta curricular e como organizam seu trabalho a partir desta proposta.

O artigo apresenta a síntese da pesquisa realizada e se desenvolve em três momentos. No primeiro buscamos explicitar as mediações, relações e contradições entre a organização do sistema do capital e o currículo escolar, evidenciando as implicações para a formação humana. No segundo, detalhamos a estrutura e a dinâmica da proposta curricular da Rede Estadual de Educação de Goiás, particularidade que nos permitiu uma melhor compreensão da totalidade, quando colocamos em ênfase certos elementos categoriais que se configuram como verdadeiros mecanismos ideológicos curriculares. No terceiro momento apresentamos uma reflexão sobre o fetiche do currículo na Educação Física escolar, que para nós possui grande potencial analítico e crítico no campo da investigação curricular.

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Em nossa investigação, assumimos uma concepção de currículo escolar fundamentada em autores vinculados à tradição curricular crítica: Apple (1989 e 2006); Paraskeva (2007) e Paraskeva, Gandin e Hypólito (2005). Entendemos que as formas de organização do modo de produção são determinações de primeira ordem que irão engendrar concepções e propostas curriculares que melhor se adequem ao contínuo processo de estruturação e reestruturação do sistema do capital. Dito isso, o campo do currículo deve ser entendido ‟[...] não meramente em termos dos padrões de interação social que dominam as salas de aula, mas, em termos de uma padronização mais ampla de relações sociais e econômicas, na estrutura social, da qual os professores e a própria escola são parte” (APLLE, 2006, p. 97).

No que diz respeito à determinação do sistema do capital sobre a educação escolar, se fazem necessários sofisticados mecanismos ideológicos e o currículo escolar agrega, sob a forma de conteúdos e objetivos, ideias bastante difundidas atualmente e que foram encontradas tanto nos "Cadernos de Reorientação Curricular" como nas entrevistas, que consideramos como mecanismos ideológicos cuja origem está nas relações sociais de produção: a supervalorização do cotidiano dos estudantes como fonte de conhecimento escolar, na proliferação de princípios morais e éticos e a supervalorização de metodologias de ensino "lúdicas", que mimetizem o processo de ensino e aprendizagem escolar em jogos e brincadeiras. No documento "Pacto pela Educação", valoriza-se a aplicação de testes que possam mensurar a quantidade de conteúdos aprendidos pelos estudantes e ideias como eficiência, eficácia e busca de resultados permeiam todo o documento.

A proposta curricular, portanto, "concilia o inconciliável" - cotidiano e ludicidade convivem harmoniosamente com testes e busca de eficiência nos resultados. Parece tratar-se de duas proposições distintas, mas ambas possuem fundamentos comuns: uma formação técnica e instrumentalista com foco em resultados para preparar para o mundo produtivo, que ao mesmo tempo coloca em segundo plano o conhecimento, mas está atenta às singularidades: relativismo, racionalidade técnica, pragmatismo e eficiência. Trata-se de uma proposta curricular que, na aparência contraditória, levando em consideração as mediações, serve adequadamente a ideologia do capital, pois objetiva educar minimamente para a produção enquanto regula tensões sociais.

A Dinâmica das Perspectivas Curriculares Hegemônicas

A análise que empreendemos da proposta curricular para a Educação Física da Rede Estadual de Ensino de Goiás nos revela que as perspectivas de educação escolar, ensino, aprendizagem e currículo que sustentam esta proposta podem facilmente ser identificadas com o ‟neotecnicismo” e o ‟neoescolanovismo”, tal como são apresentados por Saviani (2007) e Duarte (2010).

O neoescolanovismo atualiza as principais teses da Escola Nova, enfatizando a necessidade de construção de uma perspectiva pedagógica e curricular que valorize a capacidade e a liberdade de escolha dos estudantes, seus interesses, os diversos conhecimentos que circulam nas comunidades de onde eles vêm e o uso pedagógico das redes sociais. No centro do currículo estão os saberes cotidianos dos alunos e a cultura popular, critica-se o conhecimento fragmentado em disciplinas que muitas vezes não contribuem para o desenvolvimento dos estudantes, conhecimento válido é aquele que é realmente útil, adquirido prazerosamente pelo aluno. A cultura regional e os saberes locais passam a ser o ponto de partida e de chegada do currículo.

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Para Libâneo (2013), atualmente configuram-se duas perspectivas curriculares hegemônicas, uma que engendra um currículo instrumental e outra que define um currículo intercultural. Para o autor, o currículo instrumental é caracterizado por uma proposta de desenvolvimento de competências mínimas, inserção dos alunos no mundo do consumo e das tecnologias interessadas ao sistema do capital de forma pragmática. Além disso, influencia na construção da consciência da comunidade escolar para não ir contra o sistema, mascarados por mecanismos ideológicos de valores para a cidadania, de solidariedade, socialização, paz, harmonia e empregabilidade.

Mantém, aí, uma escola de conteúdos mínimos necessários ao trabalho e emprego, mas realça-se ainda mais a noção de aprendizagem como aquisição de habilidades dissociadas do seu conteúdo e significado pouco contribuindo para o desenvolvimento das capacidades intelectuais e a formação da personalidade. Define-se, assim, uma proposta de educação voltada para os mais pobres, visando atender a suas necessidades mínimas, suficientes para empregos e sobrevivência social. (p. 59).

O currículo intercultural objetiva-se para a relevância da cultura particular ou de grupos isolados, experiência dos alunos e dos professores, limita-se à questão social pragmática e enfatiza a singularidade do processo de ensino e aprendizagem. Nessa perspectiva curricular, é ressaltado que o aluno é marginalizado, pois não tem voz no processo de ensino e aprendizagem e a cultura local é rejeitada.

Como definir conteúdos que devam ser ensinados a todas as crianças se o critério de relevância ou até mesmo de veracidade dos conhecimentos é a cultura específica à qual pertence o indivíduo? Como definir-se um currículo comum a todos se não existe uma cultura que possa ser referência para todos? Se existem milhares de culturas particulares, existirão milhares de culturas de currículos? Ou o currículo escolar dissolvido e em seu lugar é colocado um suposto diálogo entre as culturas das quais fazem parte os alunos? E o que define qual é a cultura de cada aluno: etnia, classe social, gênero, idade, local onde mora, os meios de comunicação, os programas de televisão, os estilos musicais, as religiões, as atividades de lazer, o esporte preferido? (DUARTE, 2010, p. 36).

Identificamos nos dados da realidade as duas concepções hegemônicas que no atual momento histórico têm contribuído para que a educação escolar se coloque cada vez mais à serviço do sistema do capital: neotecnicismo e neoescolanovismo se conjugam e se harmonizam. No campo da teoria curricular estas duas concepções se materializam em currículo instrumental e currículo intercultural, conforme Libâneo (2013). No caso do estado de Goiás, podemos dizer que a proposta curricular da rede é instrumental/intercultural, constituído sob mecanismos ideológicos que o fetichizam, na acepção marxiana do termo, tornando-o uma "fantasmagoria escolar" híbrida, constituída de concepções neotecnicistas e neoescolanovistas de educação e desenvolvimento.

No caso da proposta aqui analisada, tais concepções se materializam num currículo híbrido e eclético, contraditório, mas que serve adequadamente ao sistema do capital. Não por acaso, organismos internacionais (Unesco, Unicef, Banco Mundial) e grupos econômicos (bancos e fundações de empresas privadas) têm papel importante na disseminação de mecanismos ideológicos travestidos de ideias pedagógicas inovadoras.

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O documento "Pacto pela Educação" explicita de forma geral a proposta educacional da Rede Estadual de Ensino de Goiás. Perpassam pelo documento, como já mencionamos anteriormente, conceitos e expressões claramente vinculados ao discurso hegemônico do mundo da produção e da economia. Podemos afirmar que se trata claramente de um currículo de resultados. Estrutura-se em cinco pilares, que se desdobram em metas e ações: 1- Valorizar e fortalecer o profissional da Educação, 2-Adotar práticas de ensino alto impacto na aprendizagem, 3- Reduzir significamente a desigualdade educacional, 4- Estruturar sistema de reconhecimento e remuneração por mérito, 5- Realizar profunda reforma na gestão e na infraestrutura da rede estadual de ensino.

O ‟Pacto pela Educação” direciona a formação e o desenvolvimento para a produtividade, o utilitarismo, a busca de resultados, performance, competitividade, meritocracia. Nas entrevistas, alguns professores colocam que o único objetivo claro do "Pacto pela Educação" é a busca de resultados quantitativos por meio das avaliações externas, pressionando escolas e professores para não baixarem os índices que prejudicam a nota do IDEB.

Neste documento enfatiza-se a necessidade de aprendizagens mínimas, com ênfase na matemática, português e ciências naturais, que se tornam modelos para pensar as outras áreas do conhecimento, inclusive a educação física. Circunscreve-se aqui um "currículo mínimo", que entrará em choque e em contradição com o "Currículo de Referência", onde uma ampla lista de conteúdos fragmentados e desarticulados e centenas de expectativas de aprendizagem serão apresentadas para cada área do conhecimento, para cada bimestre de cada série do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental e nos três anos do Ensino Médio. É para desenvolver as dezenas de expectativas de aprendizagem, dissolvidas em habilidades e competências, ou atender às necessidades de aprendizagens básicas em matemática, português e ciências naturais? Esse questionamento partiu de um dos professores que entrevistamos.

No "Currículo de Referência" para cada série e para cada bimestre há um quadro onde se delimitam as expectativas de aprendizagem, os eixos temáticos e conteúdos. O documento apresenta-se como flexível e aberto à mudanças, delegando autonomia às unidades escolares e professores para trabalhar os conteúdos propostos de acordo com as possibilidades da escola e necessidades dos estudantes. No entanto, as expectativas de aprendizagem sobrepõem os conteúdos contam-se às centenas, para cada área do conhecimento, por bimestre.

Ainda sobre o currículo de referência, destacamos algumas observações feitas pelos professores entrevistados. Os problemas mais ressaltados foram a falta de coerência dos livros didáticos disponíveis com o currículo proposto, a repetição de conteúdos e temáticas, conteúdos vagos, a grande quantidade de expectativas de aprendizagem e a confusão destas com o que seriam os conteúdos, a ausência de formação continuada para compreender melhor a proposta.

A bimestralização, caracterizada pela determinação precisa das expectativas de aprendizagem e dos conteúdos de cada bimestre, é um forte elemento da dinâmica organizacional do "Currículo de Referência". Justifica-se pela hipótese de que se, por acaso, um aluno sair de uma escola da rede e ir para outra, da mesma cidade ou qualquer local do estado, irá ter condições de trabalhar o mesmo conteúdo, consequentemente, ter a mesma formação. Tal "engessamento" entrará em contradição depois com os "Cadernos de Reorientação Curricular", que incentivam os professores a organizarem os conteúdos conforme suas possibilidades, as necessidades dos estudantes das comunidades onde se localizam as escolas.

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Os "Cadernos de Reorientação Curricular" possuem uma outra dinâmica, aparentemente completamente diferente daquela que identificamos no "Currículo de Referência" e do “Pacto da Educação”. Embora se caracterizem por apresentar de forma funcional e objetiva uma série de proposições pedagógico-didáticas, são permeados de termos como diversidade, diferença, coletividade, cidadania, inovação, autonomia, sensibilidade, criatividade. Há uma exaltação da vida cotidiana do aluno não somente como ponto de partida, mas como linha norteadora, embora autônoma e flexível, do trato com os conteúdos.

Solicita-se praticamente em todos os cadernos que os professores levem os alunos a se reconhecerem na escola em relação às suas comunidades de origem, valorização e respeito à cultura local, às experiências individuais e necessidades de cada aluno. No Caderno Cinco (2009e), orienta-se o professor a pensar a educação do ponto de vista da diferença e da diversidade e buscar um trabalho coletivo, por meio do diálogo e da troca de experiências com outros professores. Podemos afirmar que se trata claramente de um currículo intercultural.

De acordo com relatos desenvolvidos nas entrevistas, aos professores foi veiculada a informação de que haveria um processo de formação continuada para que todos pudessem tomar conhecimento e participar da elaboração da proposta curricular, com apoio de universidades e incentivo à participação ativa dos docentes na elaboração dos documentos norteadores. Mas o que se consolidou na realidade foram poucos momentos para o debate coletivo, houve a participação de poucos professores no processo de elaboração dos cadernos, considerados por muitos professores a referência mais importante.

Para Marx e Engels (2010, p. 50), ‟[...] para oprimir uma classe é preciso poder garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil”. Essas condições transparecem na realidade também por meio de mecanismos ideológicos, como por exemplo, uma suposta participação em ações repressoras e a valorização do discurso da diferença como estratégia de harmonização das relações sociais nos países pobres, escondendo-se os conflitos econômicos de poder e as desigualdades entre grupos e classes sociais. Além disso, a propagação do discurso de que existe emprego para todos e bons salários para aqueles que têm mérito, ou seja, que são criativos, eficientes, inovadores.

A função metodológica e social do currículo da rede se aproxima da articulação realizada por Mészáros (2008) sobre a relação entre educação escolar e capital, ou seja, há uma proposta de construção de uma educação para os ricos e uma educação para os pobres, que precisam ser controlados pelos interesses dominantes que selecionam alguns para servir de modelo para enfatizar a ideologia da culpabilização dos indivíduos que não conseguem êxito nas relações materiais da vida social. ‟Para sermos honestos, devemos reconhecer que o campo do currículo finca suas raízes no próprio solo do controle social” (APPLE, 2006, p. 85).

Logo, a proposta curricular objetiva, de maneira interessada ideologicamente, garantir aos alunos a confluência contraditória da permanência na vida escolar com autovalorização do cotidiano e dos saberes locais, negando os conhecimentos da ciência, da filosofia e da arte. Ao mesmo tempo, ao colocar como objetivos o bom desempenho em testes e o aumento do índice do IDEB, enfatiza tais conhecimentos, porém num viés utilitarista e pragmatista.

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Esse currículo híbrido, complexo e contraditório na aparência, se constitui em importante instrumento educativo ao conformar os conteúdos escolares aos objetivos do sistema do capital, torna-se um fetiche do currículo, pois carrega em sua essência as características do fetichismo da mercadoria, tal como explicitado por Marx (2013, p. 146): ‟[...] aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”.

Se o fetichismo em Marx (2013) é a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas, ocultando que as relações são sempre sociais – mediatizadas pelas coisas - o fetiche do currículo se apresenta também como um instrument que se justifica a si mesmo, pois "(...) é assim que as coisas são, são esses os conhecimentos que são necessaries para as pessoas no mundo de hoje", conforme o relato de uma das professoras que entrevistamos.

O fetiche do currículo se apresenta na confluência e na justaposição, mais ideológica do que pedagógica, de duas perspectivas de educação: a neotecnicista - de viés instrumental, orientada por uma política de resultados que requer uma formação cultural e científica mínima que atenda às necessidades da produção mercado; e a neoescolanovista - que hipervaloriza a heterogeneidade e a diversidade, o multiculturalismo, o cotidiano imediato e a subjetividade de alunos e professores.

A proposta curricular aqui analisada e que se apresenta sob forma fetichizada possui também como fundamento um relativismo sensível-suprassensível, termo elaborado por Marx (2013) para caracterizar a existência real do objeto ou instrumento, porém, a funcionalidade é alterada pelos seres humanos por uma reflexão ilusória, idealista, ideológica. ‟A educação está sendo posta em sintonia com um esvaziamento completo, à medida que seu grande objetivo é tornar os indivíduos dispostos a aprender qualquer coisa, não importando o que seja, desde que seja útil à sua adaptação incessante aos ventos do mercado”. (DUARTE, 2006, p. 54).

O currículo proposto para a Educação Física escolar, portanto, aparenta possuir função essencial à formação e ao desenvolvimento humano com ênfase na propagação da saúde e de valores morais, mas se trata na realidade de um objeto ‟fantasmagórico”, descolado da realidade concreta, místico e enigmático, naturalizado e neutro. As propriedades do currículo se encontram a partir dele e nele mesmo, existentes como se fossem geradas pelo próprio instrumento: a forma se separa do conteúdo, a essência se esconde na aparência, a totalidade desaparece na diferença e na singularidade.

O currículo fetichizado atende, no nosso entendimento, a interesses bem maiores e mais complexos do que as necessidades educativas e formativas das crianças e jovens do estado de Goiás. Podemos considerar que se trata de ‟(...) intervalo totalitário de caráter pluralista”, conforme Mészáros (2012). O currículo se materializa como uma importante estratégia ideológica da classe dominante para reorganização do espaço-tempo de ação do capital - trata-se de um "intervalo", já que necessita de um certo tempo para se recompor em momentos em que se agudiza a crise.

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Para Mészáros (2012, p. 244), ‟[...] a principal função do intervalo totalitário é reconstituir a estrutura geral do metabolismo social capitalista e, assim, preparar o terreno para um retorno do modo pluralista de legitimação político-ideológico”. Assim, o fetiche do currículo naturaliza e reestabelece a ordem das coisas no âmbito da educação escolar, aproximando a escola daquilo que seria, aparentemente, de interesse da sociedade e legitimando-se como necessário e essencial ao desenvolvimento da economia e respeito a diversidade.

Uma das premissas fundamentais que orienta nossas análises é que todo fenômeno ou objeto social estão relacionados à macroestrutura econômica e a partir desta vão se constituindo sob formas muito complexas. ‟O conhecimento que penetra na escola - aqueles princípios, ideias e categorias — deriva de uma história determinada e de uma realidade econômica e política também determinada” (APLLE, 2006, p. 212). Logo, para nós o currículo escolar é onde mais se revelam e se materializam mecanismos ideológicos que constituem, no atual momento histórico, a base sobre a qual se estruturam as concepções a respeito do conhecimento escolar, sua organização e distribuição.

Considerações Finais–levantando os Véus da Realidade

Nossa pesquisa permitiu que compreendêssemos a força ideológica do currículo escolar, quanto mais determinado e pronto (como é o caso da proposta curricular aqui analisada) mais parece amalgamar-se à organização do trabalho pedagógico nas escolas e à maneira como os professores compreendem e realizam o ensino. A ideia de que basta aprimorar o currículo escolar para que tenhamos uma educação de melhor qualidade e melhor desempenho tanto de professores quanto de alunos está fortemente arraigada no espaço escolar.

O currículo fetichizados e impõe dessa forma, "virando a realidade de cabeça para baixo", pois o problema sempre está em algum elemento isolado da totalidade: na gestão, no professor, no aluno... No atual momento, o problema aparentemente está no conhecimento que é ensinado nas escolas, distante da realidade social e cultural dos estudantes, pouco atrativo, muito teórico e pouco prático, etc. (DUARTE, 2006).

Na proposta curricular para a Educação Física que analisamos, afirma-se a primazia do sujeito, o recuo da teoria e o esvaziamento da ciência e da filosofia como pares dialéticos. O conhecimento dissolve-se em habilidades e pretende-se que estas sejam constituídas pelos alunos "fazendo" ou "brincando", síntese didática da discussão anteriormente realizada a respeito da hibridização e justaposição entre neotecnicismo e neoscolanovismo.

Entendemos, portanto, que o fetiche do currículo escolar tem servido à reprodução de um tipo de homogeneização formalista e ao mesmo tempo relativista do conhecimento, materializando-se, por um lado, num conjunto de listas de conteúdos e por outro, num conjunto de exortações de ordem subjetiva prescritas para os professores. Na proposta curricular que analisamos, confundem-se e atravessam-se concepções, objetivos, temas e conteúdos de ensino, é parte de um novo ‟imperialismo simbólico e novos léxicos” de vocábulos ideopolíticos multiculturalista enraizada nos princípios neoliberalismo onde “[…] as explicações pedagógicas são sistematizadas a partir de uma lógica formal. Trata-se de um currículo conservador, onde a reflexão pedagógica não explica as relações sociais e mascara seus conflitos” (CASTELLANI FILHO et tal., 2012, p. 29).

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Isso dificulta sobremaneira o trabalho do professor, pois ele mesmo tende a adotar práticas pedagógicas singulares, espontâneas, isoladas, distancia-se do objeto de conhecimento de sua disciplina e entende que o conhecimento escolar deve se constituir a partir das particularidades dos estudantes. Essa compreensão da realidade escolar e a maneira como o professor entende o conhecimento leva-nos à afirmação de que professores e alunos estão aprisionados em universos individuais, tornando-se cada vez mais incapazes de compreender a totalidade social na qual se encontram e muito menos capazes de transformá-la.

Esperamos que as análises aqui apresentadas ajudem a levantar os véus da realidade escolar e contribuam para uma reflexão mais crítica sobre o currículo escolar da Educação Física, num momento tão importante e decisivo para a educação brasileira, em que estamos em vias de aprovar a Base Nacional Comum Curricular.

Referências

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Notas

1. Licenciado em educação física pela FEFD/UFG; Graduando em Pedagogia pela UEG; Especialização em Docência no Ensino Superior pela Faculdade Apogeu; Mestre em Educação pelo PPGE/UFG e Doutorando pelo PPGE/UFG. Professor Efetivo da Secretaria Estadual de Educação de Goiás na função de diretor de uma unidade escolar.