Diego Braga Melo
ddiego12797@gmail.com

Lívia Maria Teran Cavalcanti
liviatcav@gmail.com

Karinny Gonçalves da Silva
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Gisele Toassa
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Medicalização do Trabalho Docente: Saúde Mental e Absenteísmo-doença entre Professores de Goiânia

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Resumo

Tendo em vista o diagnóstico de transtornos mentais e do comportamento (CID-10) enquanto maior incidente de afastamento de serviço, e sendo os profissionais de educação a principal categoria ocupacional afetada (LEÃO et al, 2015), foi realizada uma pesquisa a campo na Junta Médica Municipal de Goiânia (JMM) com o objetivo de investigar relações entre a medicalização, identidade e meio social escolar de professores do município. Também se estabeleceram enquanto objetivos: analisar os dados relativos ao perfil dos servidores da educação, afastamento do serviço e os diagnósticos médicos/psiquiátricos desses profissionais; discutir as condições de trabalho dos profissionais da educação no município de Goiânia, assim como as questões de gênero e remuneração docente; compreender as narrativas dos servidores afastados nos documentos da JMM, investigando a temática da saúde mental, identidade e outros temas que surgirem no processo de análise; apreender a dinâmica do trabalho psicológico e psiquiátrico dos profissionais da JMM. Foram realizados estudos do diário de campo e sistematização dos dados quantitativos, nesta vigência da pesquisa, do período de 2015-2017. Notou-se, em relação ao trabalho de psiquiatras e psicólogos, a colaboração para o fenômeno da medicalização e das bioidentidades, transpondo para o campo biológico e essencialmente individual os aspectos sociais da produção do adoecimento ocupacional, e da medicamentalização, enquanto recorrência do tratamento medicamentoso como estratégia principal de adequação do corpo ao trabalho. Esse fenômeno não colabora na construção de medidas para a melhoria da saúde do trabalhador, já que não fazem referência à escola. Mais estudos são necessários, como o estudo de outros profissionais da escola e a análise mais aprofundada dos discursos dos docentes.

Palavras-chave: Absenteísmo-doença. Docência. Medicalização.

Introdução

O presente trabalho delimita enquanto objeto de estudo a ocorrência do absenteísmo-doença (AD) em profissionais da educação, e, mais precisamente, os professores da rede pública, a partir dos alarmantes dados contidos no estudo de Leão, Barbosa-Branco, Neto, Ribeiro & Turchi (2015), realizado na Junta Médica Municipal (JMM), que indicam um acentuado adoecimento mental docente no município de Goiânia.

Segundo o Subcomitê de Absenteísmo da Sociedade Internacional de Saúde Ocupacional (1973), como citado por Leão (2012, p. 15), o AD pode ser compreendido enquanto a “[...]ausência dos trabalhadores ao trabalho, naquelas ocasiões em que seria de se esperar a sua presença, por razões de ordem médica ou quaisquer outras”. Este pode ser, em níveis epidemiológicos, um importante indicativo da saúde do trabalhador de uma região ou de categorias profissionais específicas.

Em Goiânia, de 2005 a 2010, a prevalência acumulada de licenças aponta para o diagnóstico de transtornos mentais e do comportamento, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10), enquanto maior incidente entre os servidores municipais - 26,5%. Dentro desta categoria, se destacam: transtornos do humor/depressivos (F30-F39) com incidência de 16,4%; transtornos neuróticos/estresse (F40-F48) com incidência de 5,6%; transtornos pelo uso de droga psicoativa (F10-F19) com incidência de 1,4%.

Os setores profissionais com maior prevalência acumulada de licenças foram, respectivamente, da educação (54,7%), operacional (50,1%) e saúde (48,1%). Também se ressaltam que servidoras do gênero feminino revelaram uma maior prevalência acumulada de licenças (76,1%), além de trabalhadores com menos de três salários mínimos (51,3%), menos de três anos de serviço (49,3%) e com múltiplos vínculos profissionais (54,4%) (LEÃO et al., 2015).

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Esses dados motivaram o delineamento da pesquisa, que foi realizada por uma equipe de quatro pesquisadores de campo que adentraram a JMM de Goiânia com o objetivo de investigar as correlações entre as temáticas relacionadas à medicalização, saúde mental e (bio)identidade presentes nas licenças para tratamento de saúde (LTS) de servidores da educação, no período entre 2015 e 2017.

Também se estabeleceram os respectivos objetivos específicos: analisar os dados relativos ao perfil dos servidores da educação, afastamento do serviço e os diagnósticos médicos/psiquiátricos desses profissionais; discutir as condições de trabalho dos profissionais da educação no município de Goiânia, assim como as questões de gênero e remuneração docente; compreender as narrativas dos servidores afastados nos documentos da JMM, investigando a temática da saúde mental, identidade e outros temas que surgirem no processo de análise; apreender a dinâmica do trabalho psicológico e psiquiátrico dos profissionais da JMM.

O presente trabalho busca discutir exclusivamente os resultados relativos ao objetivo específico IV, ou seja, em delimitar o aspecto da dinâmica do trabalho psicológico e psiquiátrico da instituição, a fim de se compreender o caráter da produção de licenças psiquiátricas de professores da Secretaria Municipal de Educação (SME).

A discussão da medicalização surge no estudo, e se alinha ao objetivo IV, tendo em vista que o afastamento do servidor é dado a partir de uma LTS, de caráter pericial-médico, que define sua aptidão (ou falta desta) para o trabalho. Realizado diagnóstico a partir do CID-10, se transpõe para o ambiente médico a análise dos transtornos psíquicos/comportamentais e, especificamente, a saúde do trabalhador.

Tendo em vista esse fenômeno, a presente pesquisa se apoiou na noção de medicalização de Moysés e Collares (2010) enquanto uma transformação de questões biopsicossociais em médicas e puramente individuais. Esta impõe sobre o sujeito uma “bioidentidade”: deslocamento da noção de sujeito psicológico para uma identidade formada por paradigmas normativos de padrões biológicos e corporais, sendo a subjetividade constituída a partir da normalidade e saúde orgânica (LIMA, 2005).

Em continuidade à discussão da medicalização se delimita a medicamentalização enquanto ascensão do tratamento medicamentoso como estratégia principal frente ao adoecimento psicossocial. A crítica ao uso de medicamentos se apresenta ao passo em que, segundo dados da OMS (2002 apud BRASIL, 2018), estima-se que mais da metade dos medicamentos sejam inadequadamente prescritos, dispensados ou vendidos.

Além disso, metade dos pacientes utilizam-nos incorretamente, sendo por uso indiscriminado, automedicação ou pela dispensabilidade de tratamento medicamentoso. As tentativas de resolução dos problemas psicossociais por meio de medicamentos estão, ainda, intimamente relacionadas ao marketing investido pela indústria farmacêutica que, de modo irregular, incentiva o tratamento por meio de fármacos (BRASIL, 2018).

Segundo a International Narcotics Control Board (2019), da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil teve, em 2017, a compra de cerca de 8,3 toneladas de Diazepam, 2,5 toneladas de Clonazepam e 1,6/1,5 toneladas de Bromazepam, metilfenidato, Midazolam e Zolpidem, cada. É um dos maiores consumidores no mundo de psicotrópicos, ao lado de países como Estados Unidos e China.

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Retomando a discussão acerca do AD, ressalta-se que o presente estudo toma o trabalho enquanto categoria central de análise do fenômeno estudado, à luz da Psicologia Social do Trabalho. Isto significa dizer que a pesquisa se propõe a questionar e apontar as condições de trabalho que restringem o trabalho docente e promovem o adoecimento, a partir de uma abordagem crítica focada na Saúde do Trabalhador (SATO, COUTINHO & BERNARDO, 2017).

Essa abordagem tem como principais influências a Psicologia Social, a Saúde Coletiva e a Medicina Social Latino-americana, emergentes de movimentos democráticos e não liberais que problematizam o trabalho para além de sua perspectiva gerencialista/organizacional. A Medicina Social concebe que

a produção social da saúde e/ou do adoecimento segue o curso das tensões entre, um lado, as exigências dos processos de produção e de valorização sobre o corpo e a mente dos trabalhadores e, de outro, uma grande variedade de reações dos trabalhadores a tais exigências, tanto individual como coletivamente (ESTEVES, BERNARDO & SATO, 2017, p. 56).

Muitas perspectivas em Psicologia compreendem a interface subjetividade-trabalho como caráter acessório da vivência, um outro espaço banal de socialização do indivíduo. A abordagem empregada na pesquisa difere desta visão tradicional, pois compreende que o trabalho revela o modo de ser do homem e permeia todos os níveis da sua atividade, afetos e consciência. Isto se dá pelo fato de que as relações trabalhistas são importantes fontes de sintomas para o adoecimento psíquico do sujeito (ainda que não sejam as únicas variáveis nesse processo, retomando a controversa discussão acerca do nexo causal) é ao trabalho que o indivíduo dedica maior parte do seu tempo e investe uma parcela significativa de afeto, planos e expectativas (JACQUES, 2007).

É a partir desse pressuposto teórico e ético-político que se constrói o trabalho, tendo em vista o rápido desenvolvimento do neoliberalismo que se estende sobre a docência, a partir de exigências de eficácia, qualidade e produtividade que não acompanham investimentos concretos do Estado para a educação (CHARLOT, 2007). Esse fenômeno se materializa em posturas políticas como a Emenda Constitucional 95/2016 que congela os investimentos primários em saúde e educação por 20 anos, ou a tentativa de aprovação do Projeto de Lei 867/2015 que visa instituir o “Programa Escola Sem Partido” que, conjuntamente com os discursos de grupos extremistas, instituem sob os professores uma “caça ideológica”.

Desenvolvimento

Tendo em vista os aspectos sociais e políticos do trabalho docente no Brasil, bem como dados científicos do adoecimento destes no município de Goiânia, a metodologia da pesquisa foi delineada a partir de uma análise quantitativa e qualitativa dos documentos arquivados na JMM, buscando cumprir o objetivo de estudo da interface entre saúde mental, medicalização e identidade do profissional de educação no município.

Para tanto, as visitas a campo tomaram como compromisso ético-metodológico a observação participante: uma postura dialética com os participantes da pesquisa em que o pesquisador também faz parte do contexto de observação, se permitindo modificar e ser modificado por esse contexto (MINAYO, 2006). Com o amparo do diário de campo, se anotaram informações sobre o processo de produção de licenças psiquiátricas na instituição obtidas a partir de observações, coletas de dados de prontuários, conversas informais e manifestações dos sujeitos. Três etapas principais foram traçadas: levantamento documental com o intuito da criação de um acervo de informações acerca do AD dos servidores educacionais de Goiânia; exploração inicial dos acervos e prontuários médicos; avaliação qualitativa do material a partir de uma análise discursiva.

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Nas primeiras visitas à instituição, cerca de 13 mil licenças estavam arquivadas em uma expressiva quantidade de prontuários – divididos nas seções de educação, saúde e outros. Um espaço reservado aos servidores da SME, setor com a maior porcentagem de LTS, compreendia cerca de 15 armários lotados de envelopes com licenças, processos de aposentadoria e readaptação de função. Portanto, os seguintes critérios de inclusão foram estabelecidos: ser Profissional de Educação I, II ou III; possuir licenças psiquiátricas (categoria “F” do CID-10) entre o período de 2015-2017; possuir documentos como relatórios, receitas e processos jurídicos que apresentassem relação com o trabalho.

A metodologia utilizada para o estudo do trabalho do psicólogo e do psiquiatra da instituição, bem como o aspecto da produção de licenças psiquiátricas de professores da SME, se baseou na coleta e análise de informações obtidas no diário de campo. Também foram consultados documentos legais e instrumentos técnicos da JMM, a fim de compreender os aspectos legais de regulamento da instituição.

Aspectos Legais e Institucionais da Junta Médica Municipal de Goiânia (JMM)

A JMM é uma unidade gerencial da Secretaria Municipal de Gestão de Pessoas (SEMGEP) e tem como objetivo a avaliação da capacidade laborativa do servidor público do município. Concede licenças médicas iniciais e em prorrogação, licenças a gestantes, licenças para acompanhamento por motivo de doença em pessoa da família, licenças por acidente de trabalho, processos de aposentadoria e readaptação de função (GOIÂNIA, 2016).

Aos servidores da unidade competem a realização de perícias médicas de avaliação da capacidade laboral para candidatos a cargos, a aposentadoria ou readaptação de função, servidores e/ou dependentes portadores de necessidades especiais e, como foco do presente trabalho, perícias médicas para fins de LTS.

Segundo a gerência da unidade, o processo de vinda à instituição consiste no encaminhamento do servidor pela diretoria da escola (no caso de profissionais da educação), acompanhado do histórico escolar (frequência) e o consequente relatório/atestado do médico privativo que o atendeu, agendamento da perícia médica, atendimento e avaliação da capacidade laboral. Nesta última etapa, se emite a LTS e os consequentes dias concedidos para afastamento do trabalho.

O relatório do exame médico-pericial, documento arquivado em prontuário informativo da licença emitida, consiste em informações pessoais do servidor, informações sobre a natureza da perícia médica realizada e o parecer da JMM quanto a capacidade laboral avaliada. Este relatório foi o principal documento coletado nos prontuários selecionados.

No que se refere aos outros documentos dispostos de informações qualitativas e passíveis de análise, citados como critério de inclusão para a coleta de dados, muitos foram encontrados nos processos de readaptação de função que acompanham as LTS. Estes consistem nos próprios documentos legais do processo, bem como relatório psicológico ou neuropsicológico, relatório social e outros.

Aspectos Críticos Acerca da Produção de Licenças Médicas e o Trabalho de Psicologia

“História da Doença Atual: Depressão.”

Longe de ser uma exceção, essa frase se repetiu frequentemente durante a exploração inicial dos prontuários. Sendo este um exemplo marcante do que se encontrou durante a etapa exploratória, um dos primeiros aspectos reparado nos relatórios dos exames médico-periciais foi a constante supressão e brevidade de informações contidas acerca do processo diagnóstico realizado.

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A História da Doença Atual (HDA), base para a realização do processo de anamnese comum a profissionais da saúde, deve conter informações concretas sobre os sintomas, sua gênese e evolução, além de outros dados que possam colaborar na compreensão do fenômeno de adoecimento do sujeito em questão. Salvo o material selecionado, a maioria dos relatórios não possuíam informações satisfatórias quanto ao processo de investigação do histórico e o início dos sintomas dos professores em processo de afastamento para tratamento de saúde.

Essa inconsistência também se apresentou na série de diagnósticos discrepantes de transtornos mentais e do comportamento durante o processo de emissão de mais de uma LTS. Como forma de exemplo, diagnósticos que variavam entre depressão, ansiedade e transtorno misto ansioso e depressivo de um único professor com intervalo de poucos meses.

O árduo processo de seleção de material para a análise, que consumiu a maior parte da vigência da pesquisa, revelou uma dificuldade em encontrar referências sobre a escola nos relatórios. Longe de se tratar de um problema metodológico, essa dificuldade revelou outro aspecto da produção de licenças: a desconsideração do meio social escolar enquanto uma das principais fontes do adoecimento docente e a configuração da prática de uma “medicina dos sintomas”, modelo atualmente hegemônico no campo da psiquiatria.

A justificativa para o absenteísmo foi, em grande medida, transferida para o campo do transtorno psiquiátrico, como uma forma de doença ou condição orgânica obtida sem influência do trabalho na vida do sujeito. “Não se pode trabalhar pois o sujeito é doente” ao invés de “o sujeito está doente por conta do trabalho” ou, ainda, “o sujeito está doente por uma série de questões, e o trabalho é uma das causas”. Se transpõe para a esfera individual – no sentido internalista e puramente subjetivo – e patológica – se vê o transtorno, e não o profissional – o sofrimento psicossocial causado pelas condições de trabalho.

Entretanto, existem diferenças a serem pontuadas entre o papel do médico psiquiatra (médico assistente, não vinculado à JMM) e do médico perito: enquanto o médico psiquiatra, em tese, realiza um diagnóstico com fins terapêuticos, o perito realiza a tarefa objetiva de avaliar e examinar a capacidade laborativa do servidor, bem como a fiscalização do procedimento médico realizado pelo assistente. Isto ocorre pois o perito pode, ou não, concordar com a avaliação realizada pelo assistente e, a partir desta análise e de evidências médicas, redigir o laudo.

A pertinência da diferenciação entre essas funções se dá pelo fato que os problemas citados anteriormente, quanto à produção das licenças psiquiátricas, não são de ordem exclusivamente institucional, mas do próprio processo de medicalização da vida, tendo em vista que a emissão da LTS depende também do trabalho de outros profissionais alheios à JMM.

A produção em massa de licenças psiquiátricas, cada vez mais banalizadas, desumanizadas e inconsistentes, foi notada, por exemplo, na conversa entre duas servidoras que aguardavam seu atendimento na recepção e trocavam informações quanto à clínicas médicas que facilitavam a emissão de laudos para afastamento do trabalho (TOASSA; MELO; CAVALCANTI; SILVA, 12 mar. 2019). Isso foi percebido nos médicos assistentes e instituições psiquiátricas, responsáveis pelos receituários e atestados, que se repetiam constantemente entre as LTS.

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Situação semelhante foi encontrada nos relatórios produzidos pelos psicólogos e neuropsicólogos. Estes, redigidos quando há necessidade de readaptação, eram pouco ou nada informativos quanto ao meio social escolar do professor. Em sua maioria, esses documentos continham informações acerca das funções psicológicas do servidor sem nenhuma relação com a situação concreta na qual estas eram executadas. Diagnósticos acerca da memória, atenção, comportamento e sentimentos dados a priori, seguindo uma concepção essencialista de ser humano. Esta situação foi ainda mais agravante nos laudos neuropsicológicos.

Em contraste com os relatórios psicológicos, os relatórios sociais continham informações mais concretas sobre a saúde mental do professor, tendo em vista dados sobre relacionamentos entre alunos e outros profissionais, situações de crise e violência, questões disciplinares, dentre outras. Desta forma, os relatórios sociais possuíam uma potencialidade mais consistente para a análise relativa aos temas da pesquisa.

Outros dados, ainda que preliminares, também ratificam a hipótese de que o adoecimento do professor está relacionada ao meio social escolar – sendo causa ou agravante: quando transferido de instituição escolar, o relato da escola sobre as características subjetivas do docente costumam ser diferentes – o que se aproxima de uma perspectiva desnaturalizante da personalidade e as funções psicológicas; quando readaptados, a principal exigência legal da nova função a ser exercida é a de “não manter contato com os alunos”, o que demonstra o caráter socialmente adoecedor do trabalho docente.

Em síntese, é importante ressaltar que a discussão realizada parte de uma análise do diário de campo, das impressões e análises realizadas pelos pesquisadores em relação ao processo de produção de licenças. O intuito principal é o de germinar uma crítica fundamentalmente epistemológica e metodológica quanto à análise do fenômeno de adoecimento do professor, por parte do trabalho da Psiquiatria, Psicologia e Neuropsicologia, por exemplo.

No que se refere ao estudo das causas do AD entre os professores, analisaram-se as impressões dos pesquisadores presentes no diário de campo, e em reuniões, durante o processo de exploração do material selecionado. Foram ressaltados conflitos institucionais e de relacionamento entre professores com a instituição educativa, seja com normas, pessoal da diretoria ou outros profissionais, bem com os estudantes, enquanto expressões do meio social escolar. Segundo a visão dos servidores da JMM, os “problemas interpessoais” e a violência são recorrentes problemas que afastam os docentes do trabalho no município.

O uso dos medicamentos psicotrópicos também é bastante presente nos relatórios, demandando, no entanto, uma análise epidemiológica para a confirmação do fenômeno de medicamentalização entre professores no município. Nossa exploração do material ratifica a hipótese desenhada inicialmente, tendo em vista esta impressão inicial contida na exploração dos receituários médicos.

Outros fenômenos ressaltaram-se, que demandam futuras investigações. O primeiro foi o padrão de emissão de outras licenças, relacionadas a algumas condições de saúde não-psiquiátricas específicas, concomitante às licenças psiquiátricas. Ocorreram, ainda, uma série de casos em que o processo de absenteísmo iniciou-se com licenças para acompanhamento por motivo de doença em pessoa da família, que progridem para licenças para o próprio profissional.

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As significativas licenças de afastamento relacionadas ao período gestacional e puerperal também se ressaltaram, seja em transtornos clássicos como a depressão puerperal ou atípicos, sem relação explícita com o período de gravidez e pós-parto. Outro fenômeno a ser investigado foram as diferenças entre os níveis de ensino (Educação Infantil e Ensino Médio), suas demandas e efeitos sob a saúde mental do professor. Isto se deu pois foi notado um padrão de emissão de licenças relacionadas à transtornos do humor/afetivos na Educação Infantil: a hipótese construída é que há uma íntima relação entre a alta demanda afetiva do desenvolvimento de crianças na primeira infância e a saúde do professor.

Outras categorias de profissionais da SME também se sobressaem com expressivas quantidades de LTS, principalmente auxiliares de atividades educativas e auxiliares de serviços de higiene e alimentação. No entanto, como a pesquisa se volta à professores, não foram englobados no estudo.

Considerações Finais

Carneiro (2006), citado por Leão (2012), afirma que as informações contidas nos órgãos de junta médica poderiam colaborar no entendimento do perfil de morbimortalidade e desenvolvimento de ações de promoção à saúde, tendo em vista a exigência legal das perícias de avaliação da capacidade laboral. No entanto, a autora afirma que esses órgãos acabam tomando o procedimento pericial apenas como necessidade administrativa, obrigatória e de fiscalização.

A escassez de informações acerca do diagnóstico psiquiátrico nas licenças podem compreender dois fenômenos, que não necessariamente se anulam: há, de fato, uma compreensão da perícia médica enquanto procedimento meramente burocrático, sem que se reconheça a necessidade de redação pormenorizada dos processos realizados; a perícia médica é realizada de forma sintética e asséptica, com foco apenas na descrição dos sintomas e prescrição de medicamentos.

Em síntese, configura-se diante do adoecimento mental do professor o fenômeno da medicalização, tendo em vista que o procedimento psiquiátrico tende a abandonar o aspecto histórico e etiológico dos sintomas, além da mudança constante dos diagnósticos a partir da variação dos sintomas descritos em certo espaço determinado de tempo – consonante com Guarido (2007) e suas considerações acerca da medicalização do sofrimento psíquico.

Esse caráter do diagnóstico se alia ao fenômeno da medicamentalização, a partir da submissão do procedimento psiquiátrico tradicional à regulação dos sintomas por via de medicamentos. Aqui, a Psicologia e, especialmente a Neuropsicologia, colaboram com dados acerca das funções psicológicas como a memória, atenção e humor que, desconexas do meio social escolar e tomadas como essencialmente individuais, são passíveis de modificação por meio de psicotrópicos.

Se notou que o trabalho dos profissionais da saúde mental ratifica o processo de produção de bioidentidades pois se consideram padrões normativos biológicos e corporais – sendo as funções psicológicas reduzidas às manifestações do corpo – enquanto denominadores da subjetividade do professor.

Como Lima (2005) afirma, a transposição do cuidado com o corpo individual, a partir dos parâmetros da Biologia, aliado ao esvaziamento das instituições de referência e pertencimento, a supressão de uma identidade coletiva e valorização da capacidade do indivíduo de se adequar às prescrições sobre o corpo configuram o fenômeno da bioidentidade. Desta forma, a saúde mental se torna uma espécie de virtude a ser conquistada individualmente, prioritariamente por meio de medicamentos, conquistando a exímia “resiliência”.

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De forma geral, o que se percebe a partir das impressões e discussões realizadas durante a leitura do material, é a reprodução de uma função ideológica da Psicologia que se alia à exploração do trabalhador, que reduz o adoecimento psíquico à esfera individual de forma perversa à impedir com que se desenvolvam ações de melhoria da qualidade do trabalho docente, estratégias de lida com a violência e valorização de uma identidade coletiva das instituições educativas.

Mais estudos são necessários, como a análise qualitativa dos discursos dos professores contidos nos relatórios de perícia médica, que terá como objetivo amadurecer a discussão desenvolvida pelo projeto de pesquisa.

Referências

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Notas

1. Graduando de Psicologia (FE/UFG), participante do projeto de pesquisa e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) - Prolicen.

2. Graduanda de Psicologia (FE/UFG), participante do projeto de pesquisa e integrante do Programa Institucional Voluntário de Iniciação Científica (PIVIC).

3. Graduanda de Psicologia (UFG) e participante do projeto de pesquisa.

4. Professora de Psicologia da Faculdade de Educação (FE/UFG), coordenadora do projeto de pesquisa e orientadora de Iniciação Científica.