Rosa Maria da Silva (UFU)
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O Ensino de Geografia Segundo Élisée Reclus

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Resumo

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que se utilizou de publicações acerca da obra de Élisée Reclus, foram analisados diversos livros, sites especializados, revistas, artigos e obras de autores que falam sobre ele e suas obras. Temos como objetivo identificar alguns dos pensamento e contribuições deixadas pelo geógrafo Élisée Reclus no ensino de geografia. Nesta pesquisa, conseguimos identificar e transcrever alguns dos principais determinantes históricos e geográficos de seu pensamento crítico, sendo eles: a) Élisée Reclus foi um dos primeiros geógrafos a criticar o processo de colonização e industrialização; b) com base em uma ideologia anarquista, pregava o distanciamento do discurso geográfico formal; c) o ensino na sua visão deve promover uma formação integral do homem e de sua consciência como um ser histórico e geográfico; d) a natureza é vista como elemento central para o ensino e aprendizagem em que professores e alunos podem desenvolver os seus vários sentidos; e) buscou uma análise social da Geografia, a partir de uma perspectiva dos oprimidos, das classes trabalhadoras, na construção e organização do espaço; f) afirmava que libertação do homem era fundamental para uma transformação social; g) introduzindo novas perceptivas de analise geográficas desenvolvendo um pensamento geográfico social e crítico. Podemos afirmar, com base neste estudo, que Élisée Reclus ousou tecer críticas à colonização e à industrialização denunciando o lado negativo e perverso que elas causaram a determinados grupos sociais e a que condições os povos colonizados e os operários foram submetidos. Portanto, conhecer o pensamento de Élisée Reclus é uma das bases fundamentais para compreender as transformações que a ciência geográfica tem sofrido nos últimos séculos.

Palavras-chave: Ensino de Geografia. Élisée Reclus. Geografia Social.

Introdução

O geógrafo francês Élisée Reclus (1830-1905) é considerado o precursor da geografia crítica social. Em suas obras, destacamos as características do positivismo, no método descritivo, em que abordava as características físicas e naturais. Ele introduziu descrições que eram incomuns aos geógrafos de seu tempo: a descrição das condições humanas e sociais da população, questões como a luta de classes, a concentração de renda, a expansão colonial, o fim do Estado moderno, o ensino de geografia e a forte oposição a escola tradicional. Ele enfrentou muitas dificuldades para divulgar seus ideais políticos e libertários no meio dos geógrafos, o que levou suas obras, com o passar dos anos, irem perdendo cada vez mais a importância no contexto geográfico, sendo lidas basicamente por intelectuais de esquerda e anarquistas (PENA, 2019).

Reclus se apresenta em contradição com geógrafos clássicos, a exemplo o também francês La Blache que buscou justificar o colonialismo francês como algo benéfico, tecnologica e culturalmente essencial para levar o progresso às nações menos “desenvolvidas”. Essa percepção agradava o Estado francês por exercer uma forte política de exploração das colônias, subjugando e usurpando de suas riquezas, segundo Castro e Alves (2013).

Em 1871, ao ser exilado por fazer parte militância da Comuna de Paris, Reclus realizou viagens ao redor do mundo tendo inclusive visitado o Brasil onde escreveu o livro “Estados Unidos do Brasil”, no qual fez uma análise do país que englobava: economia, política, recursos naturais em uma visão sempre crítica ressaltando os problemas sociais brasileiros. Após um período de esquecimento no final do século XIX, sua ideia vem ressurgindo desde o final do século XX e início do século XXI, com o crescimento entre os geógrafos dos debates a respeito da chamada “Geografia Crítica” (CASTRO; ALVES, 2013).

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Assim, justificamos o resgate do pensamento deste autor, que revelou importantes contribuições no que se refere ao pensamento geográfico atual. A abordagem feita por Élisée de temas como: o ensino de geografia, a industrialização, o colonialismo e a luta de classes permanece atual. Dessa forma, através do estudo de sua obra, podemos obter uma nova visão acerca das relações que compõem a sociedade, o Estado e suas relações com o ambiente.

O Ensino de Geografia

Na visão de Reclus (2010), o ensino de geografia deve se distanciar dos métodos tradicionais e formais que se utilizavam de livros e cartilhas com alunos restritos a salas de aula. Ele propôs um novo método que nos convida a uma liberdade de aprender com a natureza, com a sociedade, com o mundo a nossa volta. Aprendizado livre de regras pré-estabelecidas em materiais didáticos estáticos, engessados permeados da ideologia política ou religiosa de seus autores. Segundo ele, o aprendizado deve levar o aluno a entrar em contato com a cultura, ciências, experiências, ou seja, um aprendizado permeado de sentido de realidade. Na primeira carta de Élisée Reclus a Pior Krotkin, ele enfoca um ensino de geografia voltado para a natureza. Em seus escritos, ele suscita a necessidade de se observar o meio em que os alunos vivem e, a partir desta realidade, iniciar os estudos geográficos.

A escola verdadeiramente liberada da antiga servidão só pode ter franco desenvolvimento na natureza. O que em nossos dias é considerado nas escolas como festas excepcionais, passeios, cavalgadas pelos campos, landas e florestas, nas margens dos rios e nas praias, deveria ser a regra, pois é apenas ao ar livre que se conhece a planta, o animal, o trabalhador e que se aprende a observá-los, a fazer-se uma ideia precisa e coerente do mundo exterior. (RECLUS, 2010, p. 25).

Élisée buscou mostrar as inúmeras possibilidades de aproveitar o meio ambiente em que o aluno vive como a observação da natureza, dos hábitos e das relações existentes nele para construir o conhecimento. Ele afirmava que deixamos de lado a realidade dos alunos para darmos preferência aos livros impressos prontos e impostos a nós e os impomos aos nossos alunos. Reclus (2010) buscava despertar ou até mesmo fazer recordar a importância de termos prazer no ensinar e no aprender, usando o meio ambiente para se construir esta relação de prazer. Ele nos mostra a possibilidade de aprender por meio da observação dos rios, do céu, das estrelas, no construir e desenhar seus próprios globos terrestres, ou seja, atividades que fazem parte do universo dos alunos e com as quais eles farão associações que, por sua vez, leva-os a construir o próprio conhecimento.

Reclus (2012) era enfático em dizer que não recomenda livros para as escolas primárias, pois, segundo ele, todos os textos determinados e impostos são permeados por uma ideologia política ou religiosa e que o melhor para o aprendizado dos alunos seria sim a construção do próprio conhecimento com base em suas próprias observações, orientados pelos professores. O autor afirma que o conhecimento deve ser algo adquirido de forma natural, por ser algo inerente ao seu cotidiano, ele deve se manifestar nas ações mais simples como a observação. Sendo que, a partir desta observação, o aluno se torna capaz de fazer comparações com os lugares que conhece e vive com aqueles apresentados pelos professores. Esta comparação pode levar o aluno a se situar tanto de maneira física quanto política e social.

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A Geografia Social

Élisée Reclus é considerado o pai da Geografia Social, pois foi um dos primeiros geógrafos a abordar a questão social das classes oprimidas, algo incomum na época para um geógrafo. O autor analisou a formação das classes operárias, a criação dos sindicatos na Inglaterra e viu neste cenário um novo objeto de estudo. Segundo Pinto (2011.p.7), “ele criou geografia crítica radical, de base marxista, mesmo sabendo que ele foi o criador da geografia crítica social. Elisée Reclus criou um novo paradigma na geografia, a geografia anarquista, e também uma nova vertente do anarquismo, o anarquismo geográfico”.

Ele a firmava que a havia uma constante luta de classes entre patrões e empregados o que levava a uma oportunidade de mudança. Acreditava que era possível existir uma sociedade mais justa e que o caminho para alcançarmos esta sociedade era através da revolução. A revolução e a evolução em uma sociedade de distinção entre classes eram um caminho inevitável, e a única maneira de as sociedades evoluírem. Como afirma, Andrade (1985, p.22):

para Reclus, o que mais importava era demonstrar a contribuição que a geografia poderia dar à solução de problemas sociais – nunca falou em geografia humana, senão em geografia social – explicar a origens desses problemas, podendo por isso ser considerado também um dos fundadores da geografia histórica. Assim, pode-se admitir que ele tenha sido um dos precursores da moderna Geografia Ativa.

O desejo de Élisée Reclus, segundo Andrade (1985), era de uma sociedade na qual não existam classes sociais distintas nem explorados nem exploradores, uma sociedade em que as regras e diretrizes sejam discutidas de forma horizontal e por toda a população. Élisée Reclus considera que a constante tensão entre trabalhadores e patrões independentes do momento histórico, leva a possíveis “janelas” para transformações. Para ele, os trabalhadores, ao se colocarem em marcha para transformar sua realidade miserável, não se deixam enganar por infinitas ideologias e propagandas das classes dominantes, podendo assim ocorrem uma evolução social inclusive uma revolução. Na sua visão uma sociedade melhor e mais justa, só ocorre se ocorrer um progresso de evolução individual dos seus membros. Com Élisée Reclus a dialética, o Materialismo Histórico, começou a protagonizar os trabalhos sociais críticos.

Segundo Reclus (2010, p.50), “A luta de classes, a busca do equilíbrio e a decisão soberana do indivíduo, tais são as três ordens de fatos que nos revela o estudo da geografia social, e que, no caos das coisas, mostram-se bastante constantes para que se lhes possa dar o nome de leis”. Ao destacar a existência destas três ordens, Élisée Reclus trouxe para o estudo geográfico reflexões que até aquele momento não cabia aos geógrafos analisar.

A Colonização

No processo de colonização, durante o século XIX, as potências europeias, segundo Castro, Godoy e Alves (2014), buscavam novos territórios a fim de expandir seus domínios: territoriais, econômicos e políticos. Sendo que discurso vigente entre os geógrafos, como Ratzel que afirmava a necessidade conquistar novos espaços, tornar-se forte o que denominava de espaço vital. Em uma visão perversa, o também geógrafo La Blache preconizava que os povos europeus considerados os civilizados deveriam levar a civilização para os bárbaros do novo mundo.

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Assim, quando comparamos nossa sociedade mundial, tão poderosa, com os pequenos grupos imperceptíveis dos primitivos que conseguiram manter-se fora dos “civilizadores” – demasiado amiúde destruidores -, podemos ser levados a crer que esses primitivos eram superiores a nós e que regredimos no caminho das eras. É que nossas qualidades adquiridas não são da mesma ordem que as qualidades antigas; a comparação, por consequência, não pode fazer-se de uma maneira equitativa. (RECLUS, 2011, p.31).

Entretanto, Elisée Reclus, na contra “mão” de muitos de seus pares teve a preocupação de descrever as características culturais, econômicas, políticas e naturais dos países colonizados sendo capaz de compreender a importância desses povos. Descrevendo que eles eram detentores de um determinado desenvolvimento e que vivam de forma harmônica com a natureza. Ele ousou criticar os massacres dos povos primitivos, as desapropriações, a exploração econômica, os excessos e as barbaridades cometidas pelos colonizadores os considerados e ditos “civilizados” (PINTO, 2011).

A Industrialização

Quanto à industrialização, Élisée Reclus foi um dos primeiros geógrafos a abordar a questão tendo em vista a situação das classes trabalhadoras (RECLUS, 2011). Com a advento da indústria a sociedade, principalmente a inglesa, sofreu grandes transformações sociais. Os camponeses se viram forçados a deixar o campo e mudar para as cidades, para servirem como mão de obra nas indústrias, sendo o trabalho disponível para eles nas cidades majoritariamente nas fábricas de tecidos. Os trabalhadores nas fábricas, além dos homens também as mulheres e crianças, se viam obrigados a suportar as exaustivas jornadas de trabalho, com baixos salários, sem direitos básicos como saúde e moradia digna. Os operários moravam em locais insalubres e sem condições de higiene ou saneamento.

Observamos com essa citação de Reclus a sua visão a respeito da indústria e seus efeitos na vida dos operários. Logicamente Reclus entendia o avanço que a divisão do trabalho, conjuntamente com as novas tecnologias, trazia para o aumento da produção, e consequentemente, se assim fosse a vontade, a distribuição igualitária dessa produção. Mas não era isso que ocorria, e como bem coloca Reclus, “os operários perdiam seus corpos e almas”. (RECLUS, 2011, p.85)

Castro, Godoy e Alves (2014) afirmam que o capitalismo nesse período da industrialização sofreu grandes alterações e desenvolvimento, uma vez que ocorreu um aumento rápido das forças produtivas e assustadora modificação nos países colonizadores e colonizados. Entretanto, cada país possuía um papel diferente nesse novo cenário mundial: uns eram exploradores e outros, explorados. Nesse período surgiram os primeiros sindicatos operários na Inglaterra, como uma ação social de enfretamento a tal situação. Toda esta questão não foi negligenciada por Élisée Reclus que, em sua análise sobre a crescente industrialização, relata as péssimas condições de trabalho, vida e habitação no qual os trabalhadores estavam sujeitos.

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Resultados Encontrados

Ao analisar algumas obras e trabalhos de estudiosos sobre Élisée Reclus conseguimos obter os seguintes resultados sobre os pontos relevantes de sua via de pensamento:


a) Foi um dos primeiros geógrafos a criticar o processo de colonização e industrialização em contradição aos seus pares que estavam a serviço do Estado e buscavam justificar tais processos.

b) Com base em uma ideologia anarquista, pregava o distanciamento do discurso geográfico formal que estava a serviço dos interesses das classes dominantes e do Estado.

c) O ensino na sua visão deve promover uma formação integral do homem e de sua consciência como um ser histórico e geográfico que pertence a determinada sociedade.

d) A natureza é vista como elemento central para o ensino e aprendizagem onde os professores e alunos podem desenvolver os seus vários sentidos através da observação do entorno, a fim de construir seu próprio conhecimento.

e) Buscou uma análise social da Geografia, a partir de uma perspectiva dos oprimidos, das classes trabalhadoras na construção e organização do espaço e da divergência de interesses entre as classes sociais.

f) Afirmava que libertação do homem era fundamental para uma transformação social e que a luta de classes era necessária para promoção da mudança.

h) Introduzindo novas perceptivas de análise geográficas, desenvolveu um pensamento geográfico social e crítico.

Élisée Reclus conseguiu introduzir um pensamento inovador e crítico da geografia, apesar de se manter fiel a métodos tradicionais como o positivismo e o naturalismo. Devido a sua formação política anarquista, ele foi capaz de lançar seu olhar para as desigualdades sociais e a luta de classes existentes em seu tempo introduzindo a partir de então a chamada geografia sócio-crítica.

Considerações Finais

O geógrafo Élisée Reclus contribuiu para mudança do pensamento geográfico ao propor um ensino de geografia distanciado do método tradicional em salas, com livros, mapas e demais materiais didáticos estáticos. Ele defendia a busca de um ensino de geografia voltado para a prática e tendo por fundamento a observação da natureza do meio ambiente.

Com base em sua formação polícia anarquista, o citado autor consegue no século XIX fazer uma leitura da Geografia bem diferente dos demais geógrafos da época que tentavam justificar o Imperialismo e os processos de colonização. Ele ousou tecer críticas à colonização e à industrialização denunciando o lado negativo e perverso que elas causaram em determinados grupos sociais relatando sobre as condições em que os povos colonizados e os operários foram submetidos.

Ao lançar um olhar perspectiva das classes sociais oprimidas, este autor traz novos objetos de análise à ciência geográfica dando origem a Geografia Social. Conhecer o pensamento de Élissé Reclus é uma das bases fundamentais para se compreender as transformações que a ciência geográfica tem sofrido nos últimos séculos.

Referências

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CASTRO, Renan Fernando de; GODOY, José Marcos; ALVES, Flamarion Dutra. Contribuições de Élisée Reclus para a Geografia Moderna. Caderno de Geografia, v.24, n.1 (número especial), 2014.

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_________; ALVES, Flamarion Dutra. Élisée Reclus: a geografia política a serviço dos explorados. Revista Geonorte, Edição especial, v. 7.2013.

DESCANIO, Antonio Marcos. Reclus e o estudo das cidades, um discurso geográfico inovador. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL ÉLISÉE RECLUS, 1., 2011, São Paulo. Anais... São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011.

PENA, Rodolfo F. Alves. "Élisée Reclus e a Geografia libertária”. 2019. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/Elisee-reclus-geografia-libertaria.htm. Acesso em 23 de julho de 2019.

PINTO, José Vandério Cirqueira. Geografia anarquista e anarquismo geográfico, geografia libertária e libertarismo geográfico: a excentricidade e a atualidade do pensamento de Élisée Reclus. IN: COLÓQUIO INTERNACIONAL ÉLISÉE RECLUS, 1., 2011, São Paulo. Anais... São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011.

RECLUS, Élisée. As Repúblicas da América do Sul: Suas Guerras e Seu Projeto de Federação. São Paulo: Imaginário, 2010.

________. O Homem e a Terra: a indústria e o Comércio. São Paulo: Expressão e Arte, 2011.

________; KROPOTKIN, Piotr. Escritos sobre Educação e Geografia. São Paulo: Terra Livre, 2012.78p.

Notas

1. Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/UFU.