Kárita Paul de Melo Pedra (UFG)
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Breve Relato e Algumas Considerações Acerca das Experiências Educativas como Bolsista do Pibid no Colégio Estadual Damiana da Cunha

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Resumo

O presente trabalho tem o intuito de tecer algumas considerações a partir das experiências vivenciadas como bolsista do PIBID no Colégio Estadual Damiana da Cunha, nas aulas de Arte do 7º ano, ministradas pelo professor Haroldo Araújo, no período do primeiro semestre de 2019. Inicialmente nos ocuparemos em discorrer de modo breve sobre a configuração política atual no Brasil, que no nosso entendimento, é indissociável da questão da educação. Também pontuamos que as reflexões que buscaremos apresentar acerca dessas vivências pedagógicas, tem como inspiração o texto da professora Irene Tourinho, Metodologias-metáforas: um ensino da arte como cultura (não apenas) visual, no qual a autora constrói com maestria, ponderações acerca de metodologias de ensino, papel do docente, identidades e subjetividades presentes na relação ensino-aprendizagem, recorrendo ao uso de metáforas visuais, que culminam em um texto instigante, esclarecedor e profundamente inspirador para pensarmos sobre a prática docente na atualidade. Sendo assim, nossa reflexão sobre as vivências no Colégio Damiana da Cunha se desenvolverá a partir das imagens de abismo e desamparo, ilustradas com base em duas fotos, uma delas trata-se da célebre fotografia do artista francês Yves Klein, intitulada “Salto no vazio”, e a outra é um registro da travessia realizada pelo equilibrista francês Philippe Petit, quando em 1974 ele cruzou a distância entre as duas torres do Word Trade Center sob um cabo de aço. Sob a égide dessas imagens e das visualidades que elas evocam, buscaremos tratar de algumas questões que marcaram nossa experiência no primeiro semestre de 2019 no colégio Damiana da Cunha.

Palavras-chave: Educação. Política. Desamparo.

Introdução

É difícil trazer o relato das experiências vivenciadas no Colégio Damiana da Cunha neste primeiro semestre de 2019 sem nos reportar inicialmente ao cenário político do Brasil, consolidado com as eleições de outubro de 2018, visto que é indissociável tratarmos de assuntos relacionados à educação, sem nos atentarmos para a configuração política que permeia a vida em todos os seus aspectos.

O ano de 2019 despontou para o Brasil sob o signo das sombras, para usarmos uma das últimas metáforas exploradas por Irene Coutinho em seu texto Metodologias-metáforas: um ensino da arte como cultura (não apenas) visual. A metáfora final da autora é aqui nosso ponto de partida. Obscurantismo é uma palavra crucial e precisa para a definição do atual governo federal. Afinal, o que discorrer acerca de um governo eleito com base em notícias falsas e caluniosas, discursos de ódio, preconceito e violência, financiamentos escusos e ilegais? As práticas assumidas a partir da posse do governo atual condizem perfeitamente com os discursos de campanha. Menciono tais fatos aqui como preâmbulo para indicarmos o tratamento que o atual governo dispensa, em particular, à educação, que é foco da reflexão que nos ocuparemos adiante.

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Cortes drásticos no investimento da educação, perseguição e cerceamento da liberdade e autonomia dos professores, retrocessos impensáveis têm sido as ações norteadoras do governo federal no trato com as instituições de educação em todo o Brasil. Não que a educação brasileira vivesse antes em dias de glória, em seu total esplendor, todavia, é inegável que, nos governos que precederam o golpe de 2016, a educação tenha recebido atenção e financiamento que foram traduzidos na abertura de diversas universidades, institutos federais e programas de incentivo ao ensino (como PROUNI PRONATEC, dentre outros) Desta forma, fica patente o cenário sombrio, tenebroso e obscuro a partir do qual devemos pensar nas questões relativas à educação, mesmo que tais questões sejam apenas a participação como observadora das aulas de arte do 7º ano no Colégio Estadual Damiana da Cunha.

É sob tais acontecimentos que a educação tem se debatido neste primeiro semestre de 2019. Como estudante de licenciatura e aspirante à docência, tem sido tarefa árdua não me deixar levar pelo desalento e desesperança diante desses pressupostos, que se fazem sentir dia após dia, onde cada nova notícia supera a última em termos de sucateamento e desmonte do ensino público, universal e gratuito. Dito isso, convém adentrarmos no tema que é o foco deste trabalho, que trata de um relato das experiências obtidas da observação das aulas do professor Haroldo junto ao 7º D.

Relato das Experiências Educativas e as Figuras do Abismo e Desamparo nesse Contexto

As atividades dos bolsistas do PIBID no Colégio Damiana da Cunha tiveram início no dia 25 de abril de 2019. Antes disso, foram realizadas diversas reuniões de planejamento e encontros, inclusive contando com a presença do professor Haroldo na FAV. Esse período de organização prévia para as atividades no colégio também foi de reestruturação dos próprios grupos do PIBID, pois tivemos a saída de uma das escolas do programa, fazendo com que a coordenadora Lilian Ucker e seus bolsistas fossem realocados em outro colégio. Também houve a saída de uma das coordenadoras, em virtude de uma mudança de país para realização de um curso no exterior.

Até o primeiro dia de encontro no colégio, o sentimento muito presente em mim era de instabilidade e incerteza dos caminhos que seriam traçados. Se por um lado, a condição de indeterminação pode ser um campo rico para o exercício da criatividade, por outro, é possível que um caminho permeado de dúvidas propicie uma condição de desamparo, de angústia. Precedendo ao nosso primeiro encontro no Colégio Damiana, houve um período de três semanas de paralisação (motivada pelo absurdo atraso e parcelamento do pagamento dos professores, e pela retirada de direitos como progressão funcional e retorno por titularidade), seguida pela suspensão das atividades escolares em função da “semana de saco cheio”.

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A primeira reunião dos bolsistas no colégio Damiana no dia 25/04 coincidiu com a realização de uma gincana, onde todos os alunos participavam dessa atividade recreativa, portanto, não teve aula. Alguns dos encontros seguintes enfrentaram imprevistos e rearranjos, intensificando a sensação de descontinuidade e fragmentação. Também me vi impossibilitada de participar de algumas aulas, em função de problemas pessoais, como o atraso no depósito do passe estudantil, até luto em família e problemas de saúde. No âmbito do colégio, os problemas e imprevistos ultrapassavam a capacidade de deliberação e o poder de atuação do professor, alguns até mesmo da direção da escola. No âmbito pessoal, questões que transcendiam minha vontade e estavam fora do meu alcance resolver, me imobilizavam e me impediam de estar em todas as aulas. O amálgama de todos esses acontecimentos provocava em mim a sensação paralisante de inutilidade, impotência e insignificância.

Mas no sentido de resistir a tais disposições de espírito, recorro aqui a uma imagem que redireciona e ressignifica os afetos que me tomavam e ainda me acometem, em alguma meida, enquanto escrevo esse texto.

A imagem acima é uma fotografia do artista francês Yves Klein (1928-1962), intitulada Salto no vazio. Vladimir Safatle em seu texto O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e fim do indivíduo, discorrendo acerca dessa obra nos diz que

Há algo do desejo de voar na foto de Klein. De braços abertos, de peito aberto, olhando para o céu como quem acredita ser capaz de voar. Mas ouve-se desde sempre que voar é impossível. Desde crianças tentamos e desde crianças descobrimos nossa impotência (SAFATLE, 2015, p. 44).

É contra essa impotência que Klein se lança, se joga. Pois, como Safatle continua

(...) talvez a real função da arte seja esta, nos fazer passar da impotência ao impossível. Nos lembrar que o impossível é apenas o regime de existência do que ainda não poderia se apresentar no interior da situação em que estamos, embora não deixe de produzir efeitos como qualquer coisa existente. O impossível é o lugar para onde não cansamos de andar, mais de uma vez, quando queremos mudar uma situação. Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível (SAFATLE, 2015, p. 44).

Se o salto no vazio de Klein dá forma ao embate travado com uma limitação tão peremptória como a impossibilidade de voar, as aulas ministradas pelo professor Haroldo, a revelia das condições precárias de trabalho, dos imprevistos, dos entraves burocráticos, nas quais ele buscava mobilizar os alunos na produção de imagens que refletissem suas percepções acerca dos próprios corpos, de suas qualidades, seus pontos positivos, provocando reflexões sobre autonomia, protagonismo, incitando a contar suas histórias, sua visão de mundo a partir da produção de vídeos com narrativas autorais, podem ser vistas também como um salto contra toda impossibilidade, contrariando os prognósticos de derrota.

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Em algumas das aulas foram empregadas práticas pedagógicas como as mencionadas pela professora Irene Tourinho com base em pesquisas, como atividades consideradas atrativas pelos alunos, a saber, “práticas que envolvem autoconhecimento, empoderamento e experiências individuais interligadas ao envolvimento com a arte” (TOURINHO, 2016, p. 116), como o caso da produção de vídeo registrando histórias criadas a partir de roteiros elaborados pelos próprios alunos e que contou com a participação ativa dos bolsistas do PIBID. Nesses momentos os alunos demonstraram envolvimento e muito interesse pelas atividades, e também foi possível uma atuação objetiva por parte dos bolsistas.

Uma vez que o sentimento de inutilidade e impotência foi mitigado por ações efetivas com os alunos, pelo próprio exemplo de persistência e resistência do professor Haroldo, e pela postura sempre encorajadora da nossa coordenadora Noeli, gostaria de voltar a discorrer sobre a incerteza que me inquietou por tantas vezes ao longo desse semestre em relação às experiências vivenciadas no Colégio Damiana e meu papel como bolsista do PIBID.

E é justamente a partir do trabalho de um artista conhecido como “o arquiteto da incerteza” que a professora Irene Tourinho irá construir seu primoroso texto esculpido com metáforas. Leandro Erlich, o artista argentino que carrega tal alcunha, “inventa espaços com delimitações fluídas e instáveis, transgredindo os supostos limites da realidade” (TOURINHO, 2016, p. 110). A fluidez e instabilidade pensadas por Tourinho, a partir da obra de Erlich, são reconfiguradas no campo da metodologia pedagógica. Aqui elas se contrapõem às formas únicas, engessadas, pretensamente corretas e definitivas para ensinar ou aprender. Penso que essa ressignificação pode ser transplantada também para o âmbito da imprevisibilidade que uma sala de aula, em seu dia a dia, está sujeita, como presenciei algumas vezes no colégio Damiana.

Inadvertidamente as coisas podem mudar, o plano de aula pode ser afetado por uma orientação da Secretaria de Educação, por uma paralisação dos professores na luta justa por dignidade e respeito, e por uma infinidade de outras situações possíveis. Não existem garantias que os planos traçados de fato se concretizarão, nem na vida além dos limites da escola, nem também no ambiente escolar. Mas essa abertura propiciada pela incerteza, pela fluidez, pode ser um espaço profícuo para descobertas, para forjar novas formas de lidar com arranjos e disposições imprevistas.

Eis que o semestre chega ao fim, e não em condições melhores com as quais começou. Talvez até piores. O professor Haroldo nos fez saber que a outra escola onde ele leciona foi fechada. Numa atitude autoritária e absurda por parte do governo estadual, sem que se levasse em conta os alunos, os professores e demais funcionários daquela instituição. As dúvidas, as incertezas, receios e inquietações ganham forças renovadas frente a acontecimentos como esse. E de fato, canalizar esses afetos para ações e posturas de transformação não é tarefa fácil, se é que isso é possível. O que serão desses alunos? E dos professores? E os funcionários dessa escola? Sem fazer idéia das possíveis respostas para demandas tão urgentes, recorro a uma citação de Juca Ferreira, sociólogo e ministro de Estado da Cultura, escrita em um dos cadernos publicitários na ocasião da 32ª Bienal de São Paulo: “A incerteza é o meio em que nos movemos, é quem produz a energia que nos faz avançar. Na dúvida, avançamos. Na incerteza, criamos” .

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Entre avançar, criar e erigir caminhos onde até então parece não existir saídas, a imagem acima, uma foto de Philippe Petit, equilibrista francês nascido em 1946, pode servir de metáfora para tais questões. A foto em questão retrata o momento histórico em que ele percorre a distância entre as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, nos Estados Unidos, em 07 de agosto de 1974. Ele tinha 24 anos quando atravessou sobre um cabo de aço oito vezes a distância entre as torres, em uma altura de 411,48 metros de distância do chão, sem nenhum tipo de proteção. A travessia no ar levou 45 minutos. A empreitada ilegal foi planejada juntamente com alguns amigos. Ele saiu de lá preso, e sua pena foi a realização de serviços comunitários. O feito inspirou o filme “The walk” (2015), do diretor Robert Zemeckis, além do premiado documentário “Man on wire” (2008), do diretor James March.

Considerações Finais

Onde existia apenas vão, abismo, profundidade e perigo, Petit elevou uma passagem, um caminho. Para uma imagem tão emblemática de desafio àquilo que parece ser irrealizável, (assim como a foto de Klein), cito uma frase do próprio Petit, proferida em uma entrevista concedida à Revista Época em 2016, e que traduz um pouco a atitude que gostaria de ter e o modo como gostaria de enxergar o difícil momento vivido no país, em especial, o momento angustiante e desesperador que a educação brasileira enfrenta. Petit diz que: “Dei às pessoas a imagem de que nada é impossível”.

As fotos de Klein, em toda sua potência artística e de Petit, registro de um acontecimento incrível e real, desafiam o vazio, se rebelam contra a impotência e impossibilidade. Mas não se trata apenas de enfrentar o vazio, mas reconhecer nesse vazio algo que nos constitui também, esse espaço sempre presente daquilo que falta, dessa abertura que incita a busca, a continuidade, que instiga e incomoda. Penso que essa visão dialética do vazio pode ser uma metáfora que fale com profundidade tanto à prática docente, como bem nos lembra Tourinho ao falar sobre as incertezas, quanto pode ser pensada também a partir de nosso lugar no mundo, como estudantes, professores, cidadãos, agentes de mudança e transformação do mundo.

Referências

FERREIRA, Juca. MATERIAL EDUCATIVO DA 32º BIENAL, Caderno 01, 2016. p.04. Disponível em http://materialeducativo.32bienal.org.br/ Acesso em: 14/11/2019.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 1ª ed., 2015.

SOPRANA, Paula. Phillippe Petit: “Dei às pessoas a imagem de que nada é impossível”. Época. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2016. Vida. Disponível em https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/philippe-petit-dei-pessoas-imagem-de-que-nada-e-impossivel.html. Acesso em: 14/11/2019.

TOURINHO, Irene. Metodologias-metáforas: um ensino da arte como cultura (não apenas) visual. In: Leonardo Charréu; Marilda Oliveira de Oliveira. (Org.). Pedagogias, espaços e pesquisas moventes nas visualidades contemporâneas. 1ª Ed. Goiânia: Gráfica da UFG, 2016, v. 10, p. 109-118. Disponível em https://ebooks.fav.ufg.br/livros/10livro/capitulo12.html.

Notas

1. Mestre e bacharel em filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Aluna do quarto período de licenciatura em Artes Visuais, bolsista do PIBID.

2. Fonte da imagem: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1992.5112/. Acesso em 29/06/2019.

3. Vladimir Pinheiro Safatle (Santiago do Chile, 3 de junho de 1973) é um filósofo, escritor e músico brasileiro nascido no Chile. É professor titular da cadeira de Teoria das Ciências Humanas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Foi colunista no jornal Folha de S. Paulo de 2010 até 2019. Sua produção intelectual centra-se nas áreas de epistemologia da psicanálise, psicologia, pensamento hegeliano na filosofia do século XX e filosofia da música. Cf.: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4792359T4. Acesso em: 29/06/2019.

4. Cf.: http://materialeducativo.32bienal.org.br/. Acesso em: 14/11/2019.

5. Fonte da imagem: https://vejasp.abril.com.br/blog/miguel-barbieri/conheca-a-historia-e-veja-imagens-do-personagem-real-que-inspirou-o-filme-a-travessia/. Acesso em: 30/06/2019.

6. Cf.: https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/philippe-petit-dei-pessoas-imagem-de-que-nada-e-impossivel.html. Acesso em: 14/11/2019.