Luciane Graziele Bergue Albino (UEG)
lubergue@outlook.com

Educação Bilíngue no Município de Boa Vista Rr: aspecto multicultural

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Resumo

Em busca de qualidade no ensino para pessoas com surdez, elaborei este projeto em 2014, o qual, até o presente momento, permanece disponível como material pedagógico na Coordenação de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Boa Vista-RR. O objetivo é garantir ao aluno surdo o acesso e a permanência na sala regular de ensino, desde a Educação Infantil até as séries iniciais do Ensino Fundamental. Este trabalho evidencia metodologias visuais com vistas a respeitar a singularidade linguística do surdo. A proposta bilíngue não ocorre somente quando o surdo adquiri a LIBRAS, sua língua natural, como a primeira língua e a Língua Portuguesa na modalidade escrita, como a sua segunda língua, mas também no desenvolvimento do aspecto psicológico, intelectual e o social. Em outras palavras, a Educação Bilíngue não pode ser interpretada apenas como o domínio de duas línguas, porquanto, esta se constitui de uma complexa estruturação dos pensamentos capaz de envolver as experiências culturais dos indivíduos (visão sócio-antropológica). A partir desse prisma é possível refletir sobre a educação dos surdos e, consequentemente, provocar mudança nas metodologias de ensino. Esta transformação deve acontecer na Educação Infantil, uma vez que o contato do surdo com a LIBRAS na infância favorece a assimilação do conhecimento através da imagem. Contudo, tal afirmação não indica que a Língua de Sinais seja suficiente, há necessidade que os sinais sejam associados a recursos adequados, pois darão ao discente o acesso ao mundo diversificado, além da possibilidade de sua inserção na cultura.

Palavras-chave: LIBRAS. Educação Bilíngue. Inclusão.

Introdução

Em 1994, por meio da Declaração de Salamanca, várias comunidades de surdos começam a se organizar em busca de inclusão. Almejam garantir o reconhecimento da singularidade linguística, respeitar a condição da surdez para o desenvolvimento da cultura e das funções psicológicas superiores: a memória, a atenção, a linguagem e a percepção, o comportamento consciente do Homem (VYGOTSKY, 1998).

Os surdos, enquanto cidadãos precisam possuir a mesma oportunidade de aprendizagem dos ouvintes. Dessa forma, fatores como o psíquico, o social, em conjunto com a acessibilidade foram questões fundamentais defendidas nesse encontro, afirmando que:

“O direito de cada criança a educação é proclamado na Declaração Universal de Direitos Humanos e foi fortemente reconfirmado pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Qualquer pessoa portadora de deficiência tem o direito de expressar seus desejos com relação à sua educação, tanto quanto estes possam ser realizados. Pois possuem o direito inerente de serem consultados sobre a forma de educação mais apropriada às necessidades, circunstâncias e suas aspirações”.

Sendo assim, além de políticas de inserção no campo jurídico (nas leis), o real processo de inclusão, se dá também na prática, por outras habilidades, conquistadas através das expressões linguísticas.

Desenvolvimento do projeto

Com o fito de promover a disseminação da educação bilíngue sob a perspectiva multicultural, verificou-se a necessidade de ações de acompanhamento composta por três fases. Fase 01: Mapeamento da escola com identificação de alunos surdos, momento difícil, em razão de os diretores e coordenadores não serem capazes de informar a existência do aluno surdo, consequentemente foi imprescindível visita à instituição para conhecer o aluno e verificar o laudo. Ademais, foram catalogados 18 alunos surdos durante o ano de 2014. Fase 02: Distribuição e Atribuições do professor bilíngue. Segundo o Decreto 5626/05:

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Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela educação básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência auditiva, por meio da organização de:
I - escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental.
§ 1º São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo.

Diante do exposto, entre os professores constatei a inexistência de profissional bilíngue suficiente para suprir a demanda de discentes surdos, razão pela qual precisei convidar discentes pedagogos estatutários que possuíam cursos de LIBRAS e dispostos a trabalhar com os alunos surdos. Foram realizadas oficinas com o objetivo de expor o planejamento com metodologias visuais e tornar os conteúdos das disciplinas acessíveis em Libras.

A experiência visual é citada por pesquisadores como o recurso mais eficiente para o surdo assimilar os conteúdos com significância (CAMPELLO, 2007; LODI e LACERDA, 2009, QUADROS, 1997).

Campello (2007) ressalta a importância de uma “pedagogia visual” e um planejamento que contemple a cultura surda:

(...) contação de história, jogos educativos, envolvimento da cultura artística, cultura visual, desenvolvimento da criatividade plástica, visual e infantil das artes visuais, utilização da linguagem de Sign Writing (escrita de sinais) na informática, recursos visuais, sua pedagogia crítica e suas ferramentas e práticas, concepção do mundo através da subjetividade e objetividade com as “experiências visuais” (CAMPELLO, 2007, p. 129).

E, finalmente, a fase 03, a qual se da por meio da organização de ambiente bilíngue com a sinalização da escola e do planejamento visual na perspectiva do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Sobre o AEE, deve-se esclarecer que se trata de um atendimento planejado com metodologia adequada para suprir as especificidades de cada deficiência. O AEE para pessoa com surdez é realizado mediante a atuação de profissionais com conhecimentos específicos no ensino da Língua Brasileira de Sinais e da Língua Portuguesa na modalidade escrita como segunda língua. Segundo as Diretrizes Nacionais para Educação Especial na Educação Básica.

Atendimento Educacional Especializado em Libras na escola comum, em que todos os conhecimentos dos diferentes conteúdos curriculares, são explicados nessa língua por um professor, sendo o mesmo preferencialmente surdo. Esse trabalho é realizado todos os dias, e destina-se aos alunos com surdez.
Atendimento Educacional Especializado para o ensino de Libras na escola comum, no qual os alunos com surdez terão aulas de Libras, favorecendo o conhecimento e a aquisição, principalmente de termos científicos. Este trabalhado é realizado pelo professor e/ ou instrutor de Libras (preferencialmente surdo), de acordo com o estágio de desenvolvimento da Língua de Sinais em que o aluno se encontra. O atendimento deve ser planejado a partir do diagnóstico do conhecimento que o aluno tem a respeito da Língua de Sinais.
Atendimento Educacional Especializado para o ensino da Língua Portuguesa, no qual são trabalhadas as especificidades dessa língua para pessoas com surdez. Este trabalho é realizado todos os dias para os alunos com surdez, à parte das aulas da turma comum, por uma professora de Língua Portuguesa, graduada nesta área, preferencialmente. O atendimento deve ser planejado a partir do diagnóstico do conhecimento que o aluno tem a respeito da Língua Portuguesa. ( BRASIL, 2007)
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Ressalta-se que esses atendimentos ocorreram na aula regular com o professor titular e o professor Bilíngue. No contraturno, o surdo frequentou a sala de recurso multifuncional. Esse consiste de um espaço físico com mobiliários, materiais didáticos, recursos pedagógicos e equipamentos de acessibilidade, organizados por especialista em Educação Especial.

Fundamentação Teórica

A inclusão dos surdos passou por várias modificações ao longo dos anos. Não obstante a educação ter sua hegemonia no modelo oralista, que preconizava a língua oral como única forma de acesso aos conhecimentos, os atuais modelos destacam a LIBRAS como a melhor forma para a aquisição cognitiva. O surdo passou a expressar suas ideias através das mãos e expressões corporais.

A partir do Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, cujo teor abrange a obrigatoriedade da inserção da LIBRAS como disciplina nos cursos de licenciaturas e de fonoaudiologia, vários outros profissionais se atentaram para o fato da importância da língua para o desenvolvimento dos surdos, dando inicio a vários estudos sobre o assunto.

Importância da Libras Desde a Educação Infantil

Na educação Infantil, a criança está mais receptível à informação e a LIBRAS aprofunda as ligações sociais e individuais. Comparada aos ouvintes a criança surda começa a produzir sinais ao mesmo tempo em que outras crianças aprendem a falar, atravessando os mesmos estágios de desenvolvimento (KARNOPP, 2005, p.25). Neste sentido, Vygotsky (1998, p.26) estabelece aspectos sobre a compreensão da aprendizagem da criança, envolvendo o caráter psicológico, sócio histórico e a dialética. O autor preocupou-se em analisar o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores (percepção, memória e pensamento) relacionados ao meio social, enfatizando a linguagem como o instrumento mais importante para o desenvolvimento da sua teoria sócio- histórica. Na medida em que a criança relaciona socialmente percorre do plano concreto para o plano simbólico, no primeiro a inteligência é considerada prática, pois utiliza os órgãos dos sentidos para conhecer o objeto e no segundo, a linguagem exerce a função mediadora do sujeito e o objeto. A todo instante ocorre à interação e através da relação com o Homem e o meio o indivíduo constitui relações intrapessoais e interpessoais, causadoras da internalização do conhecimento. Diante do exposto, Vygotsky determinou dois níveis de desenvolvimento: Zona de Desenvolvimento Real, sendo a capacidade mental de a criança realizar algo sozinha e a Zona de Desenvolvimento Proximal, onde a criança soluciona problemas mediados por adultos (VYGOTSKY, 1998, p.117). A infância é uma fase de constantes crises de desenvolvimento, onde o adulto sempre está influenciando. A criança muda de condições de conhecimento de acordo com o estímulo. O meio social vai permitir o seu crescimento. Nessa perspectiva, os surdos ao entrarem em contato com a LIBRAS, uma língua gestual e espacial, terão na língua de sinais, não apenas gestos simbólicos, mas na identificação da cultura surda.

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Mukhina (1995, p.155), aborda a importância do jogo para a mudança qualitativa na psique infantil. Através dele, a criança exerce papéis na sociedade, cumprindo obrigações fundamentais para o convívio social. No jogo dramático, a criança utiliza diversos argumentos, e de acordo com a sua realidade, esses argumentos podem ser mais complexos ou limitados. No decorrer do jogo, a criança desenvolve a atenção, a memória e a imaginação, aspectos fundamentais para a capacitação psíquica. O jogo promove as atividades produtivas (desenhos, recortes, modelagem, entre outros) que evidenciam o conhecimento e sentimentos das crianças. O educador precisa incorporar, no seu planejamento, situações lúdicas, e não, simplesmente, voltadas para o trabalho produtivo, que tem a finalidade de suprir as necessidades da sociedade, a condição da infância tem que ser respeitada.

Considerações Finais

Apesar de não estar residindo em Boa Vista-RR, tenho a consciência da importância deste projeto, pois antes os surdos eram acompanhados por profissionais que não entendiam a especificidade linguística do aluno. Tornar um espaço educacional bilíngue não é somente a utilização da Língua de Sinais, mas adaptações metodológicas adequadas para o surdo. Acredito que esta compreensão só ocorre quando há uma colaboração mútua entre os professores titulares, professores bilíngues, contribuindo para o processo ensino-aprendizagem. Sem a presença do professor bilíngue, o objetivo de ensino continuaria na perspectiva do ouvinte e as práticas encaminhariam para homogeneização e normalização do surdo ao padrão ouvinte.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 de abril, 2002.

_______. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras), e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 22 de dezembro, 2005.

_______. Ministério da Educação e desporto, Secretaria de Educação Especial. Abordagem Bilíngue na escolarização de Pessoa com Surdez, Brasília, 2007.

_______ Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: UNESCO, 1994.

_______ Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Brasília: MEC/SEESP, 2001.

_______ Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Diretrizes Operacionais da Educação Especial para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica. Brasília:MEC/SEESP, 2009.

_______ 1. Inclusão escolar. 2. Educação especial. I. Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. II. Universidade Federal do Ceará. III. A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar. Brasília, 2010.

_______ Política Nacional de Educação especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, 2008.

CAMPELLO, Ana Regina e Souza. Pedagogia Visual / Sinal na Educação dos Surdos. In Estudos Surdos II / Ronice Müller de Quadros e Gladis Perlin (org.). Petrópolis, RJ: Arara Azul, 2007.

KARNOPP, Lodenir Becker. A língua na educação do surdo. Volume 2. Secretaria de Educação/Departamento Pedagógico/ Divisão de Educação Especial. Porto Alegre, 2005.

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LACERDA, Cristina B. F. e POLETTI, Juliana E. A escola inclusiva para surdos: a situação singular do intérprete de língua de sinais. In: 27ª reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa em Educação, 2004, Caxambu. Anais da 27ª reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa em Educação, 2004. Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt15/t151.pdf.

LODI, A. C. B. (Org.) & LACERDA, C. B. de F. (Org.). Uma escola duas línguas: Letramento em língua portuguesa e língua de sinais nas etapas iniciais de escolarização. 1 ed. Porto Alegre: Editora Mediação, 2009.

MUKHINA, Valéria.Psicologia da idade pré-escolar: São Paulo: Martins Fontes, 1995.

QUADROS, Ronice Muller de. KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de sinais brasileira.EstudosLinguisticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

QUADROS, R.M. de. Educação dos surdos: aquisição da linguagem. Artes Médicas. Porto Alegre, 1997.

____________O Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais e Língua Portuguesa. Brasília: MEC, 2002.

VYGOTSKY, Lev Semenovich.A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Notas

1. Pedagoga: Universidade Anhanguera de Pirassununga/SP, em 2006; Especialista em Libras: UNINTER, Boa Vista RR, em 2010. E, Especialista em Educação Infantil: Universidade Federal de Roraima, UFRR, 2011. Foi Coordenadora de Educação de Surdos no Município de Boa Vista-2009/2014. Professora Intérprete de Libras- Estado de São Paulo-2015/2016. Atualmente Professora Tradutora/ Intérprete de LIBRAS na Universidade Estadual de Goiás.

2. O termo mais utilizado atualmente: Pessoas com deficiências.

3. Utilizei o léxico professor bilíngue para especificar o docente com curso de LIBRAS.