VOLTAR À COLEÇÃO ISBN: 978-65-997623-7-6
Volume 3

Experiências Críticas de Ensino na Educação Básica:

Educação Sexual, Questões Étnico-raciais, Inclusivas e Ambientais

A Produção De Materiais Didáticos Na Facilitação Dos Debates Sobre sexualidade, abuso sexual infantil e gênero

AUTORES
Gabriella de Oliveira Dias
Claudia Jorge de Freitas
Jonê Carla Baião
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1. Introdução

O caso do abuso sexual sofrido por uma criança de 10 anos, em 2020, no Estado do Espírito Santo, repercutiu nos veículos de imprensa, nas redes sociais, nos aplicativos de conversa, na troca entre pares, na família e na sociedade naquele período. A reportagem exibida no Jornal Nacional em 15/08/2020 mostrou esse caso bárbaro:

A menina deu entrada em um hospital na cidade de São Mateus,norte do Espírito Santo, na semana passada. Ela sentia dores no abdômen. Um exame de sangue mostrou que ela estava grávida. A menina contou que era estuprada pelo próprio tio. A polícia investigou o caso e em menos de dez dias concluiu o inquérito. O tio da criança foi indiciado por estupro de vulnerável e ameaça.

Infelizmente, casos como este não são raros. No ano de 2018, dados do Ministério da Saúde apontavam que, a cada hora, 3 ou 4 crianças eram abusadas no Brasil, totalizando 32 mil casos, o maior número registrado desde 2011. Em maio de 2020, dados informados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), mostram que, dos 159 mil registros atendidos pelo disque Direitos Humanos ao longo do ano de 2019, 11% foram de denúncias sobre o abuso infantil, algo em torno de 17 mil ocorrências. Não sabemos ao certo se houve diminuição nos casos entre os anos de 2018 e 2019 já que, no atual governo do Presidente Jair Bolsonaro, a articulação entre a sociedade civil e órgãos governamentais não tem avançado em diálogos produtivos para o combate ao abuso sexual infantil de modo efetivo.

Pedro e Leitoso (2021), fizeram um levantamento dos casos de violência no Espírito Santo entre os anos 2011 a 2018. Elas evidenciam as fragilidades a que as crianças estão expostas, com familiares violentos, bem como as poucas denúncias. Além disso, evidenciaram também, a precariedade dos serviços públicos com relação ao amparo das vítimas.

Com a pandemia da Covid-19, doença provocada pelo coronavírus que afetou todo o mundo, a identificação do abuso sexual infantil se agravou ainda mais, já que creches, escolas públicas e particulares estavam com as aulas suspensas. Essa suspensão fez parte de uma das medidas de prevenção e orientação ao isolamento social, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Com o fechamento dessas instituições, a aproximação de outros adultos, dentro e fora do núcleo familiar, foi intensificada dificultando ainda mais a identificação do abuso infantil.

Dessa forma, distinguimos o questionamento capaz de dar sustentação a este texto, isto é: qual a importância da escola na educação sexual, no que diz respeito ao corpo - o conhecimento e o funcionamento dos órgãos reprodutores - a permissão, ou não, do toque, as formas de contracepção existentes tanto para doenças sexualmente transmissíveis, quanto para gravidez indesejada ou mesmo o respeito às subjetividades inclusas na sexualidade?

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Para responder a referida pergunta baseamo-nos no currículo educacional e, por meio dele, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), no caderno de Orientação Sexual, bem como, na possibilidade do uso de imagens e outros materiais para a abordagem da temática em questão; em particular um livro paradidático (produto educacional elaborado em 2019, no Programa de Pós Graduaçãode Ensino em Educação Básica - PPGEB).

Para Gonçalves (2019, p. 7) é preciso compreender que o currículo escolar pode ultrapassar as barreiras que limitam a prática dos professores: "[...] sentimos a necessidade de compreender os currículos como documentos tecidos em redes de conhecimento e de subjetividades complexas, marcadas pela imprevisibilidade e pela provisoriedade constantes”. A educação sexual nas escolas faz parte dos temas transversais dos PCN’s, cujo objetivo é promover discussões e reflexões por parte da equipe pedagógica, dos professores e responsáveis. Neste caso, tem-se por foco diferenciar os ensinamentos no âmbito escolar, visando a contribuir para uma reflexão acerca da importância da educação sexual familiar, além de garantir e respeitar os Direitos Humanos.

Ao longo do texto traremos uma narrativa que poderá auxiliar nesta reflexão. Trata-se do relato de um abuso sexual sofrido por uma das autoras deste trabalho quando era criança. A opção de trazer a pesquisa com narrativas é por acreditarmos na potência provocativa para gerar reflexões, ações e ressignificações no cotidiano escolar:

Entendemos que as narrativas docentes são material privilegiado, tanto para a pesquisa como para o ensino, pois ao recuperar os sentidos das narrativas produzidas em certo contexto escolar, [...] nos permite construir e desconstruir experiências, provocar mudanças na forma como compreendemos o que fazemos, o que dizemos a nós mesmos e aos outros. Por essa razão, narrar em espaços coletivos, [...] se configura como importante estratégia formadora numa perspectiva emancipadora, como defendia Freire (MORAIS; BAIÃO; DE FREITAS; 2020, p. 7).

Assim, a narrativa descrita no texto é uma tentativa de dar força e forma para o exercício reflexivo da nossa prática cotidiana, como professores mediadores que somos. Acreditamos que a pesquisa no/do/com cotidiano reflete bem o que pretendemos fazer, conforme Ferraço e Alves (2015, p. 315):

Somos alguns poucos que, ao ousar ‘invadir’ os cotidianos das escolas na tentativa de falar aos que ainda não se deram conta de que lá é lugar comum, repetição ou obviedade, acabaremos por decidir quais serão as ‘marcas dos cotidianos’ a serem impressas em nossos textos. Então, precisamos assumir nossos limites não como problemas, mas como condições necessárias aos estudos ‘com’ os cotidianos. (grifos dos autores)

2. Será que a educação sexual nas escolas é importante?

A educação sexual ganhou destaque, talvez, na mesma proporção que o caso da criança relatado no início do texto. "Quem ensina sexo para a criança é o papai e a mamãe. Escola é lugar de aprender física, matemática, química. Esse é o objetivo da educação", afirmou o presidente eleito Jair Bolsonaro em coletiva de imprensa (2018). A grande questão que permeia a discussão acontece porque uma parcela da população, incluindo o Presidente, acredita que a Educação Sexual seja ensinar a fazer sexo. Parece que, para ele e provavelmente para muitas pessoas, o objetivo da educação sexual nas escolas seja “ensinar” a fazer sexo, diferente de sua verdadeira proposição. A temática educação sexual não é novidade. Presente em discussões no país desde o século XX tem apontado algumas modificações. Inicialmente era tratada apenas para controle dos corpos de jovens e crianças, uma espécie de repressão, tanto por parte do Estado quanto pela Igreja. Além disso, também tinha um caráter para prevenção de doenças e higiene:

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O desenvolvimento das práticas de educação sexual nas escolas começou no início do século XX, tendo como foco o controle epidemiológico. Na época, prevaleciam discursos que eram, em geral, repressivos, ancorados nos pressupostos da moral religiosa e reforçados pelo caráter higiênico das estratégias de saúde pública (FURLANETTO, 2018, p. 552).

Esse controle e a crescente preocupação da sociedade com o aumento de casos de jovens infectados com doenças sexualmente transmissíveis e gravidezes precoces intensificaram os movimentos sociais e, principalmente, o movimento feminista. Passou-se a debater o papel da escola na educação sexual.

No final da década de 1960, o movimento feminista reivindicava a maneira como eram postos os tradicionais arranjos sociais, não apenas protestando, mas também conscientizando pessoas em espaços públicos. Foram utilizados livros, jornais e revistas que abordavam o papel da mulher nas Ciências. Assim os estudos, considerando-se o gênero, “[...] propunham uma virada epistemológica sustentada na desnaturalização e essencialização dos sexos” (SCHUCMAN, 2012, p. 159).

O que as feministas buscaram, sendo contrárias aos privilégios na ciência, era uma desconstrução e contestação a respeito do sistema de conhecimento. O movimento feminista do século XIX visava à igualdade entre gêneros binários (feminino e masculino), questionando os privilégios dos homens em relação às mulheres.

A discussão sobre as teorias feministas é de extrema relevância porque, além de contribuir para a análise da feminização do magistério, representou um dos pilares para que a temática da Educação Sexual fosse posta nos currículos escolares, passando a ser considerada direito de todo indivíduo e constituinte de sua formação. “[...] a sexualidade pode ser compreendida como processo construído ao longo do desenvolvimento dos sujeitos, influenciado por aprendizagens e experiências sociais e culturais” (LOURO, apud FURLANETTO, 2018, p.550). Estas são instâncias que marcam a vida dos indivíduos. Elas dizem respeito ao caráter individual e ao coletivo, isto é: a maneira como podemos construir nossos valores sexuais, nossa individualidade, nossas emoções, interferindo diretamente na educação e, propriamente, na escola; cada criança carrega consigo esses valores transmitidos pela família e pelo grupo social em que foi inserida.

Assim, a educação sexual nas escolas deve possibilitar reflexão acerca desses valores, de maneira a orientar como direito de todo indivíduo. Tal como contribui Figueiró (2007, p.15):

[...] a Educação Sexual tem a ver com o direito de toda pessoa de receber informações sobre o corpo, a sexualidade e o relacionamento sexual e, também, com o direito de ter várias oportunidades para expressar sentimentos, rever seus tabus, aprender, refletir e debater para formar sua própria opinião, seus próprios valores, sobretudo, o que é ligado ao sexo. No entanto, ensinar sobre sexualidade no espaço da escola não se limita a colocar em prática estratégias de ensino. Envolve ensinar, através da atitude do educador, que a sexualidade faz parte de cada um de nós e pode ser vivida com alegria, liberdade e responsabilidade.

Essas subjetividades que os sujeitos carregam podem interferir nas tessituras do currículo escolar. Assim, o currículo é um documento oficial que orienta a educação, baseado em políticas públicas educacionais. Ele estabelece a prática docente visando a explicar o contexto de que fazemos parte. Falando-se do currículo crítico, ele não é neutro de intencionalidade política, tal como apontam os autores Moreira e Silva:

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O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. [...] está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares (MOREIRA E SILVA, 2011, P.14).

Trazemos também para este texto, o debate sobre os PCN’s, criados entre 1997 e 1998. Trata-se de um documento que abriu possibilidades para se discutir a educação sexual nas escolas, estabelecendo um currículo mínimo acerca dos conteúdos a serem trabalhados na educação básica. Sentimos que há uma lacuna deixada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que não inclui o tema na cena da educação brasileira.

Os PCN’s apresentam um caderno em caráter transversal, cuja temática - Orientação Sexual - perpassa desde a educação infantil até o ensino médio. Ademais, evidenciam alterações em conteúdos a serem trabalhados nos respectivos anos de ensino, por meio da transversalidade que deve ser inserida nas diversas áreas do conhecimento. A transversalidade presente no caderno Orientação Sexual deve ser inserida nas diversas áreas do conhecimento, podendo ser abordada nas aulas de Ciências, Matemática, Língua Portuguesa, História, Geografia, Arte, Educação Física e Língua Estrangeira.

Os PCN’s voltados para o Ensino Fundamental são apresentados em um caderno dividido em duas partes: a primeira justifica a importância do tema, a postura que o profissional deve ter, as referências para melhor atuação e as capacidades a serem desenvolvidas pelos alunos do ensino fundamental nas escolas, diferenciando-se da educação sexual que acontece nos lares. Na segunda parte trabalham-se os conteúdos, critérios de avaliação e a didática geral; cabe, todavia, considerar que, no ensino fundamental, tem-se uma abordagem de informação e formação diferente da que acontece nos demais segmentos; ainda assim, pretende-se discorrer sobre o desenvolvimento referente ao momento e as situações em que o ambiente os coloca.

Entendemos que, nesse documento discute-se o desenvolvimento das diferentes faixas etárias das crianças, do ambiente escolar, do meio que estão inseridos e da maneira que, na condição de educadores, conseguimos proporcionar o envolvimento com a temática.

Não podemos negar que os PCN’s estimularam a reflexão acerca da orientação sexual nas escolas, por meio de temas geradores e conteúdos propostos; sendo a temática obrigatória, o desenvolvimento pode acontecer dependendo-se do interesse das alunas e alunos, dos conteúdos interdisciplinares, do compromisso das (os) professoras (es) em abordar o assunto em suas aulas.

Insistir em uma educação sexual que se limitada às questões biológicas é algo que não atende mais a essa temática. Faz-se necessário que compreendamos esses conteúdos de modo mais abrangente, entre os quais se incluem saúde sexual, sistemas reprodutores femininos e masculinos. Esse entendimento facultará, por certo, o alcance a debates importantes que incluam questões, como: direitos humanos e relacionamentos sociais que garantam cidadania a todas as pessoas. E que nesses movimentos sejam incluídos, principalmente, formas de prevenir e enfrentar o abuso, a violência sexual e de gênero contra crianças e adolescentes, por meio da geração de ações educativas essenciais ao direito à vida de todos os seres humanos. Na sequência, gostaríamos de discorrer sobre a utilização de livros paradidáticos e material imagético (Semáforo do corpo) que contemplam a temática sobre a qual nos deteremos.

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Damos ênfase ao livro paradidático - O menino de Peruca Rosa -, por se tratar de produto educacional criado por uma das autoras deste texto voltado à temática de gênero e sexualidade, intitulado O menino da peruca cor de rosa.

Figura 1. Capa do livro
Fonte: Jorge de Freitas (2019, p. 1)

3. O livro paradidático como possibilidade de abordagem da temática gênero e sexualidade na escola

As discussões quase sempre se tornam acaloradas quando se faz a abordagem da citada temática em ambientes escolares. Elas nos levam a indagar o porquê de ser tão conflituoso o questionamento de temas importantes como a existência das diferenças e a relação que estabelecemos com as diferentes formas de ser de crianças e jovens. A associação entre sexualidade e educação é, por certo, uma temática que referencia os princípios da escola enquanto instituição

Neste texto apresentamos também a possibilidade de se usarem livros paradidáticos e, em particular, o produto educacional originado na pesquisa de uma das autoras no Programa de Pós-graduação de Ensino em Educação Básica (PPGEB), realizado no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ).

O produto – livro paradidático – aqui apresentado surgiu como resposta ao chamamento de uma exigência no trabalho de conclusão. O resultado consistiu de uma pesquisa realizada e efetivada por uma particularidade, isto é: constituir-se material de caráter aplicável por profissionais da área, mas, sobretudo, ser resultado de uma pesquisa aplicada referente ao incremento do ensino da temática em questão. Ressaltamos que, apesar do caráter técnico, o produto educacional aqui citado apresenta-se como possibilidade para o debate de gênero e sexualidade na escola. Por exemplo, pode proporcionar a apreciação de novos aspectos que talvez ainda não tenham sido explorados nas investigações acerca de uma temática específica; neste caso, a sexualidade.

Logo, neste livro teve-se por objetivo implementar e ampliar o diálogo sobre a temática de sexualidade na escola; tomou-se por base a prática de reflexões e do exercício de ações que possibilitem às crianças repensar o preconceito que ronda as questões de sexualidade na escola; mais propriamente, discutir a orientação sexual, levando-as ao debate e às discussões no cotidiano escolar. Segundo a autora

Este livro objetiva promover o diálogo na escola sobre a temática de gênero e sexualidade, a partir da prática de reflexões entre professoras e professores, alunas e alunos e comunidade escolar. Direcionado inicialmente para crianças das séries iniciais, intenciona colaborar com a superação de estigmas no que diz respeito à construção das feminilidades e masculinidades e de como a escola pode atuar favorecendo esse debate (JORGE DE FREITAS, 2019, p.2)

Outro aspecto importante e que vale a pena ser dito é o fato de ser escrito por uma autora brasileira e professora. Este nos parece ser um aspecto positivo. Realçamos ainda que, tempos atrás, dispúnhamos quase exclusivamente de grande quantidade de livros que necessitavam de tradução e, certamente, traziam outras realidades. Dada a nossa realidade, muitas temáticas eram deixadas de lado, no silenciamento. Por exemplo, a violência e o abuso sexual contra crianças, bem como a orientação sexual condizente com elas.

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Outro fato não menos importante é que, por se tratar de um e-book gratuito, ele facilita o acesso de todas, todos e todes que assim o desejarem. O livro é direcionado principalmente às crianças dos anos iniciais, pois, além de estimular a leitura, auxilia na elaboração, na concepção e no entendimento dos conceitos de gênero e sexualidade. Nesses termos, colabora com professoras e professores. Propõe-se a ser apoio integralizado em suas apropriações, no que diz respeito à construção e à representação das feminilidades e masculinidades na escola. Leva-se em conta a maneira como essa instituição atua de modo a proporcionar a abertura de diálogos e, assim, facilitar a abordagem de temas relacionados a esses princípios, como pontua Xavier Filha (2010, p. 2):

[...] pensar sobre o que está sendo produzido na atualidade destinado a este segmento e sobre como as crianças se apropriam de tais produtos mediante discursos e na constituição de suas identidades. [...] produzem significados; ensinam determinadas condutas às meninas e aos meninos e instituem a forma adequada e ‘normal’ para a vivência da sexualidade e da feminilidade ou masculinidade.

Dessa forma, a criação do e-book pode ser vista como mais um tipo de recurso pedagógico, uma possibilidade de educadoras e educadores o utilizarem como objeto de complementação e cooperação do processo de ensino e aprendizagem acerca das questões de gênero e sexualidade na escola. E, dessa forma, potencializar e dinamizar esse processo, de modo que venha a se tornar uma ferramenta de uso educativo e de fácil acesso, como podemos observar por meio do link: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/566405.

Neste livro propõe-se abordar a temática por meio das imagens que trazem e das perguntas que faz. Aqui nos centramos na “Pedagogia da Pergunta” (FREIRE, FAUNDEZ, 1985) que, atravessada pelo desejo de aguçar a curiosidade, leva a criança a questionar, perguntar, trazendo significado e tornando a aprendizagem da temática mais dinâmica, estimulante e atraente e o conhecimento adquirido mais problematizado.

Esse, talvez, seja o ponto-chave do livro: a linguagem adotada na escrita e as possibilidades de mobilizar a elaboração de subjetividades, ainda na infância; tais subjetividades podem auxiliar as crianças em suas percepções acerca de movimentos, como: discursos que produzem, reproduzem e veiculam questões que envolvem o corpo, a orientação sexual e o gênero. Por meio das perguntas propostas compreendemos que “[...] o que o professor deveria ensinar - ele próprio deveria sabê-lo - seria, antes de tudo, ensinar a perguntar. Porque o início do conhecimento, repito, é perguntar” (FREIRE, FAUNDEZ, 1985, p.46).

Figura 2. Página do livro trazendo uma pergunta
Fonte: Jorge de Freitas (2019, p. 19)

A intenção, ao adotar as perguntas oportunizadas, é estimular a curiosidade das crianças, uma vez que “[...] o valor não está tanto nas respostas que o professor oferece, porque as respostas são, sem dúvida, provisórias, assim como as perguntas” (FREIRE, FAUNDEZ, 1985). Dessa forma, introduz-se a possibilidade concreta de gerar inquietações, confrontos e novas dúvidas, que as incentivem a descobrir novos conceitos sobre a temática proposta pelo livro.

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Sendo assim, os livros com as temáticas de gênero e orientação sexual tornaram-se objetos inesgotáveis de estímulo ao questionamento e, consequentemente, de conhecimento. Neste livro, em particular, “construído” de perguntas e narrativas, há uma possibilidade irrefutável da ampliação desse conhecimento. Isto ocorre por não sugerir verdades, mas compartilhar a ideia de que os livros paradidáticos, tal como se propõem ser, “educam ao expressar ‘formas de ser’ masculino ou feminino, entre outros elementos que constituem identidades” (XAVIER FILHA, 2014, p. 155). Então, trazem mudanças desejáveis para a construção de uma sociedade livre do preconceito, mais justa e igualitária.

4. Quando o outro invade o meu espaço: o “Semáforo do Corpo”

Consideramos que a educação sexual seja importante para as crianças conhecerem seu corpo, aprenderem sobre o desenvolvimento e o funcionamento dos órgãos reprodutores, bem como prevenir doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez precoce. Acreditamos que esta imagem possa contribuir de forma lúdica, para explicar às crianças em seus corpos, quais são os lugares permitidos e não permitidos ao toque.

Buscamos discutir a questão desencadeadora deste trabalho, a importância da escola na educação sexual, no que diz respeito ao corpo, ou seja, conhecimento e funcionamento dos órgãos reprodutores: a permissão, ou não do toque, as formas de contracepção existentes tanto em relação às doenças sexualmente transmissíveis, quanto à gravidez indesejada, ou mesmo o respeito às subjetividades inclusas na sexualidade. Ao mesmo tempo parece ser um desafio que não implica apenas o cotidiano escolar, mas uma tentativa de entender o que se passa conosco; “[...] com os cotidianos das escolas estamos sempre em busca de nós mesmos, de nossas histórias de vida, de nossos ‘lugares’, tanto como alunos que fomos quanto como professores que somos” (FERRAÇO; ALVES, 2015, p.309).

Apresentamos a narrativa a seguir por acreditar que somos todos narradores de nossas histórias de vida, tal como acrescenta Ferraço e Carvalho (2012, p.6): “[...] conversas e narrativas expressam as vivências e, sendo assim, têm como fonte a experiência. Depreende-se daí que têm potência para organizar em torno de si uma pluralidade de pensamentos concorrendo para constituição do projeto coletivo”. Para tornar compreensível a importância da educação sexual nas escolas e nos lares, bem como os impactos que um abuso pode causar na vida de uma criança, segue-se a narrativa pessoal e íntima acerca do abuso sexual sofrido na infância por uma das autoras deste texto:

Não lembro a idade com precisão, talvez entre 8 e 10 anos. Estava acontecendo uma Festa Junina no bairro próximo. Minha irmã resolveu ir com seus amigos, minha mãe só autorizou a minha ida quando soube que o filho da vizinha iria, um adulto, por volta dos seus 25 anos. Em um determinado momento da festa percebi que estava sozinha com esse adulto, ele queria dançar comigo, me puxava, me acariciava, me abraçava. Perguntei pela minha irmã e ele se ofereceu para me levar até ela. Andamos pelas ruas escuras e desertas de um bairro. Eu brincava de me equilibrar no meio-fio das calçadas. Ele me puxou e me agarrou à força. Me beijou e passou a mão por todo o meu corpo, pressionava seu órgão genital contra mim. Eu não sabia o que estava acontecendo. Consegui fugir, gritei correndo e chorando, ele atrás de mim dizendo que minha mãe iria me bater. Encontrei a minha irmã e voltamos para casa. Eu não sabia que aquilo era errado e era crime, eu sentia um nojo. Me sentia suja. O silêncio me acompanhou até os 28 anos, quando finalmente contei para minha a mãe e a minha irmã. Eu só tomei consciência de que realmente fui vítima de abuso sexual aos 31 anos, quando comecei a fazer terapia. Comecei a lembrar que os adultos naquela época falavam que meu corpo era desenvolvido demais para minha idade.
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Nesse relato alguns pontos podem ser destacados; talvez não sejam inéditos para quem acompanha o desenvolvimento deste trabalho, mas, de certa forma, é uma tentativa de dizer que pode existir uma coincidência ou um modus operandi desses abusadores. Estava acontecendo uma Festa Junina no bairro próximo. Minha irmã resolveu ir com seus amigos, minha mãe só autorizou a minha ida quando soube que o filho da vizinha iria, um adulto, por volta dos seus 25 anos. Geralmente, quando tomamos conhecimento desses casos o/a abusador/a é uma pessoa que tem certa proximidade com a vítima e possui a confiança de seus responsáveis.

O vínculo nesses casos é um fator de que o abusador se aproveita e usa dessa confiança pré-estabelecida com os responsáveis e a vítima. É pertinente ressaltar que pode acontecer uma manipulação verbal, fazendo a criança acreditar que será desacreditada e possivelmente punida, caso comente o ocorrido com seus responsáveis.

Ainda no desdobramento da narrativa queremos salientar um trecho que pode ser considerado “gatilho” para as vítimas de abuso sexual. Ele diz respeito ao corpo e, consequentemente, ao seu desenvolvimento. Comecei a lembrar que os adultos naquela época falavam que meu corpo era desenvolvido demais para minha idade. O meu corpo com mais formas deve ter sido o motivo. Apesar de não ser o motivo para o abuso, muitas vítimas buscam respostas em si mesmas quando, na verdade, a culpa e o motivo não pertencem a elas e sim ao abusador.

O corpo mais desenvolvido das crianças não é e nem pode ser considerado o motivo para tamanha violência. Esses corpos infantis são expropriados da sua infância, numa tentativa de adultizar as crianças que desenvolvem seus corpos mais rapidamente, comparando-se com outras crianças da mesma faixa etária. Entendemos por adultização aquele “processo” que tenta antecipar etapas da vida da criança.

“A criança não sabia que tinha sido vítima de abuso sexual infantil até completar 31 anos, e isso só aconteceu porque teve oportunidade de fazer um acompanhamento com psicólogo”. Isto talvez tenha se dado porque, durante os anos de escolaridade, o tema não tenha sido trabalhado em classe, por exemplo, nas aulas de Orientação Sexual; muito menos falado em casa, como se o assunto infringisse alguma norma. Por esse motivo, percebemos que essa temática deva ser evidenciada nas escolas e trabalhada por nós, professoras e professores.

Ainda com relação ao abuso relatado neste texto e possíveis formas de ajudar as crianças que estavam em casa devido ao isolamento social, surgiu, por meio das redes sociais, uma imagem intitulada semáforo do corpo - (figura 3).

Essa imagem contribui, de forma lúdica, para explicar às crianças que pontos nos seus corpos são permitidos ou proibidos ao toque; pode ainda representar uma tentativa no ensino remoto para a abordagem desse tema com as crianças e seus responsáveis; os pontos coloridos em verde mostram os lugares que as pessoas podem tocar; os pontos em amarelo dizem sobre os lugares que devemos ter atenção; e os pontos em vermelho dizem respeito aos lugares em que é proibido o toque, exceto pelos responsáveis e somente em caso de auxílio na higiene.

Figura 3. Semáforo do corpo.
Fonte: https://jpnewsjoinville.com.br/semaforo-do-toque-na-educacao-sexual-saiba-como-aplicar -a-atividade-em-casa
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Acreditamos que, independentemente da proximidade de um conhecido com a criança, o toque, o carinho ou o afeto só devem ser feitos com a autorização dos pais e da criança. Qualquer tentativa de toque ou manipulação, seja qual for o lugar, não deve ser consentida pela criança.

A educação sexual nas escolas é importante, pois pode possibilitar uma reflexão, junto aos discentes, docentes e comunidade escolar. A escola é um lócus relevante na identificação dos casos de abuso sexual infantil, já que, por meio da observação e do contato com as crianças, podemos identificar mudanças no comportamento e, dessa maneira, fazer os encaminhamentos necessários.

E indispensável que a escola, enquanto instituição, por meio de um trabalho que conscientize tanto as crianças quanto os responsáveis, desenvolva projetos que visem à garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente; seja com base em projetos de conscientização, seja pela divulgação de canais para denunciar e acolher possíveis vítimas de abuso sexual infantil.

5. Considerações Finais

Finalizamos este artigo indagando-nos: em tempos de pandemia e isolamento social, com os professores em trabalho remoto, como contribuir com as vítimas de abuso sexual infantil, ou mesmo do preconceito quanto ao gênero e à sexualidade? Acreditamos que a temática possa ser incluída nas abordagens com os alunos, seja ela por meio de livros paradidáticos, vídeos, atividades lúdicas e até mesmo do contato mais próximo como ligações telefônicas e mensagens de texto. Ainda assim, temos consciência de que nem todas as crianças serão alcançadas, já que o isolamento social também deixou mais evidente as desigualdades sociais no Brasil.

Sabemos que a temática vem sendo amplamente debatida nos campos educacional, político, social e inserida em importantes documentos que norteiam a educação, tais como, os PCN’s, a BNCC e os currículos escolares. No entanto, compreendemos que conduzir essa temática apenas de maneira transversal não contempla o direito à aprendizagem das crianças e adolescentes; ela se torna uma pauta importante no que tange às aprendizagens consideradas essenciais, necessárias e não menos urgentes para o desenvolvimento pleno da cidadania.

O modo como os professoras e professores conduzem e desenvolvem a temática no “chão da escola” implicará na maneira como as alunas e os alunos criam suas concepções e percepções no que tange a suas sexualidades e a das demais pessoas.

Analisar como esses atores (docentes) abordam essa temática possibilita perceber o êxito, os limites, os entraves, bem como outras questões referentes às suas práticas e suas ações em sala de aula; estas podem ser vistas sob duas óticas distintas, mas que se completam: quer seja o papel de um profissional multiplicador – que intencionalmente aborda diferentes conteúdos que tratam da temática; quer seja o profissional mediador – que aproveita o momento instante do surgimento de demandas de conflito ou harmonia.

Disponibilizar materiais que facilitem o debate e dessacralizem as aulas em que sexualidade e abuso sexual sejam temas didáticos também se faz importante. O que temos visto nos últimos anos é o receio dos docentes em trazerem esses temas para a sala de aula. O silêncio, também existente na escola, tem favorecido a violência sexual contra nossas crianças, como mostraram as notícias e relatos aqui apresentados.

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A educação sexual nas escolas passa por uma série de questionamentos que dizem muito sobre o mito de “ensinar a fazer sexo”. Vale ressaltar que a educação sexual não é, e nunca foi, ensinar tal prática. Ela diz mais sobre a orientação e os cuidados que devem instruir nossas crianças com o seu corpo e o corpo do outro, ao respeito às formas de ser e estar no mundo, de viver a sexualidade, a feminilidade ou a masculinidade e o questionamento de todos esses conceitos visando à promoção de reflexões e autorreflexões importantes.

6. Referências

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FERRAÇO, Carlos Eduardo; CARVALHO, Janete Magalhães. Currículo, cotidiano e conversações. Revista e-curriculum, São Paulo, v.8, n.2, Ago. de 2012. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/viewFile/10985/8105. Acesso em: 18 mar.2021.

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FREIRE, P.; FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Disponível Em: http://dhnet.org.br/direitos/militantes/paulo_freire_pedagogia_da_perg Acesso em: 11 jun. 2020.

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Notas

1. Autora: Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás; Professora efetiva do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Goiás e atual Diretora de Educação a Distância do IFG.