VOLTAR À COLEÇÃO ISBN: 978-65-86422-78-8
Volume 1

Narrativas de professores para professores:

Produtos educacionais para o ensino na educação básica

Olhares Sobre A Literatura Infantil:
uma análise literária e sequência didática

AUTORA
Dayane Tosta Costa
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1. Introdução

A literatura infantil desperta muitos olhares e interpretações, além de convidar o leitor para um universo de cores e signos. O livro é uma janela a partir da qual pode ser visto um horizonte de possibilidades. É preciso sensibilidade para adentrar esse universo. A literatura é um fazer gratuito, um modo de arte que não precisa de motivo para existir e, ainda assim, é um bem inestimável para o indivíduo. Assim é o mistério das artes, são fazeres que não precisam de função, motivo ou esclarecimento, existem por si e para si.

O que aqui se desenvolve é fruto de um amplo trabalho de pesquisa, realizado entre os anos de 2013 e 2015, no Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica (PPGEEB), do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Minha dissertação de mestrado, intitulada “O riso como potência para o letramento literário”, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima Cruvinel, partiu do questionamento sobre qual a potência do riso e humor presentes na literatura infantil para o aprendizado. Partimos da hipótese de que o riso está bastante ignorado ou subestimado no campo pedagógico, muitas vezes sendo considerado como ato de indisciplina e desrespeito ao professor. Para descobrir a potência do riso foi necessário primeiro fazer uma investigação acerca do gênero literário e sua relação com o discurso escolar. Chegamos ao conceito de “pedagogização da literatura” (LARROSA, 2010), processo pelo qual o texto literário passa ao ingressar na cultura escolar e se submeter à gramática transmissão-aquisição, perdendo seu caráter puramente estético.

A literatura diz respeito a uma capacidade humana de transgredir real por meio da farsa, do símbolo, da poesia e da ficção. No âmbito da literatura infantil, a fecundidade é grande pois a infância é um campo privilegiado da ludicidade, da fantasia e do riso. No entanto, apesar de ser um campo rico, a literatura infantil, desde o seu surgimento, foi uma colônia da pedagogia, apresentando um objetivo moralizante. Sob essa perspectiva, é preciso considerar o ofício de mediador, pois o professor deixa de ser um portador da verdade e profeta do conhecimento que converte estudantes, e passa a ser um sujeito aberto ao diálogo que convida os estudantes para uma experiência de aprendizado. Sócrates oferece uma imagem de mediador interessante, pois sua arte maiêutica, ao despertar ideias no interlocutor, apresenta um conceito de mediação no qual o professor intermedeia as diversas trocas feitas no ambiente de aprendizado. É pela via do diálogo que Sócrates leva o seu interlocutor ao parto do conhecimento. O mediador é aquele que ultrapassa a doutrinação e consegue promover o encontro do leitor com o texto literário, respeitando a variedade de sentidos que esse encontro pode promover.

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A formação, pela via literária, valoriza a potência poética e fantasiosa da linguagem e é resultado de uma relação constitutiva e transformadora com a palavra literária. O ser humano é mobilizado pela ficção, de modo que a escola não pode ignorar essa faceta do sujeito, sob pena de mutilar uma parte importante da constituição humana. Quando as práticas escolares limitam o uso da literatura ao ensino de normas da língua portuguesa, a escola está diminuindo a riqueza da literatura e impedindo que o fenômeno literário como uma construção estética seja apreendido, a fruição fica totalmente comprometida nessa perspectiva.

Para descobrir a potência do riso foi imprescindível compreender o significado desse conceito. Quatro acepções do riso foram consideradas. O homem é o único animal que ri. Essa célebre sentença de Aristóteles é reproduzida por Bergson, que além disso, aborda o riso como um fenômeno social, já que, além de rir, o ser humano em grupo também é capaz de provocar o riso no outro.

O sujeito cômico é aquele que não se adéqua à fluidez social; o riso funciona como um castigo que repreende e reprime os sujeitos cômicos. Bergson trata do riso como escárnio. É possível que o riso escarnecedor se manifeste em vários fenômenos escolares. No entanto, o riso não se reduz ao escárnio. Ele se manifesta também como alegria e subversão. Para Freud o riso é causa de prazer e alívio psíquico em decorrência da economia de esforço intelectual.

Já o riso, para Espinosa, é alegria e contentamento. Diz respeito ao ânimo positivo de viver e ao aumento da potência de agir. Segundo o filósofo holandês, a alegria é uma conquista, passamos de um estado de baixa potência a um estado de maior potência por meio da educação dos afetos. A alegria que contagia todas as partes do corpo e da mente por igual é chamada de hilaritas, um prazer supremo que eleva o ser humano e o deixa mais autônomo e ciente de si, tal é o poder do contentamento.

Outra concepção acerca do riso que foi basilar para essa pesquisa refere-se aos estudos de Bakhtin. Nessa perspectiva, o riso é subversão de valores tradicionalmente instituídos. É um riso crítico que carrega grande seriedade, pois ao rebaixar o elevado, desnuda as relações sociais desvelando a conjuntura de opressão vivida pela organização de poder social.

No que diz respeito à carnavalização, é possível compreender esse princípio manifestando-se na inversão que sugere a destruição dos valores hierárquicos e dicotômicos e em consequência o surgimento de novos valores. Em contato com uma literatura que faz no plano estético esse tipo de inversão, o leitor vislumbra novas perspectivas de apreensão da realidade. A emancipação do sujeito que lê é um fator positivo para o trabalho com obras que sejam subversivas.

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Diante da compreensão de que a literatura infantil, com teor cômico, pode ser uma porta de entrada para a experiência da potência positiva do riso no ambiente escolar, foi necessário explorar esse aspecto na prática. A pesquisa empírica se deu numa escola municipal de Goiânia. Cinco obras da literatura infantil foram escolhidas e roteiros de leitura nos moldes de plano de aula foram feitos e aplicados em duas turmas de 5º ano com o objetivo vivenciar a potência do riso pela via do contato com as obras infantis cômico-subversivas. A pesquisa-ação deu origem a um produto que consistiu num projeto de leitura literária, cujo objetivo foi iluminar outras práticas no âmbito da educação básica.

Destarte, o presente artigo acerca da leitura literária é um recorte do produto de minha dissertação, citada anteriormente. Esse extrato restringiu o olhar sobre a obra Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro de Sylvia Orthof. Essa obra tem a peculiaridade de ser cômica e subversiva. Este projeto pode ancorar outras leituras dessa e de outras obras infantis, para o uso pedagógico de professores. Além da análise literária da obra, o que aqui se desenvolve é uma proposta de sequência didática para a obra analisada. Fundamentar a prática de leitura literária em um projeto pode contribuir para os saberes desenvolvidos pelo professor em sala de aula.

A base teórica que influenciou a leitura é Bakhtiniana. O autor russo elaborou uma análise acerca do riso, da carnavalização e da inversão. Essas categorias estão presentes na obra analisada por esse projeto.

O riso em Bakhtin (2008) é aquele subversivo, capaz de destronar estruturas superiores e inverter relações de poder. Um riso crítico. A carnavalização nada mais é do que uma cosmovisão sobre a realidade que critica as relações hierárquicas vigentes, sob o viés do riso e da festa, por meio da inversão. Os três conceitos estão interligados e se unem para compor a categoria “cômico-subversiva”, na qual muitas obras infantis se encontram caracterizadas.

A subversão é um modo de divergir de uma versão tradicional. A literatura infantil contemporânea se utiliza desse método para denunciar desequilíbrios e desigualdades. Nas obras infantis escolhidas, essa inversão dos valores é feita por meio de uma linguagem cômica.

Nessa perspectiva, foi proposto um projeto de leitura literária que pudesse ser utilizado por professores em turmas de 5º ano, do ensino fundamental, observando-se três eixos temáticos fundamentais: Emancipação, Identidade e Inversão. A aplicação desse projeto foi, sem dúvida, um convite à leitura, um exercício de imaginação!

A obra Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro, de Sylvia Orthof, ganhou o prêmio “Altamente recomendável para crianças” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Sylvia Orthof (1932-1997) publicou mais de 120 títulos infanto-juvenis, entre contos, peças teatrais e poesias. Estudou mímica, desenho, pintura, arte dramática e teatro. Seu primeiro livro infantil foi publicado em 1981.

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Na referida obra, Orthof convida o leitor a uma atmosfera de subversão e comicidade. A narrativa aborda de maneira cômica um fato inusitado e improvável, a substituição do dia pela noite, essa mudança promove uma alteração nas relações estabelecidas entre os personagens.

Essa narrativa literária infantil se utiliza de um recurso humorístico, chamado nonsense – palavra de origem inglesa que literalmente significa expressão ou situação ilógica, absurda, sem sentido ou coerência. Segundo a estudiosa Filomena Aguiar de Vasconcelos, o nonsense busca apoio no movimento surrealista e é um modo de protesto contra a estrutura vigente do mundo, cujo sujeito lança um olhar cético para essa estrutura e por isso constrói uma visão absurda da realidade marcada pelo tom humorístico do discurso.

A narrativa de Orthof (2012) começa com um grande problema que se não fosse solucionado ocasionaria muita confusão para os habitantes da Terra. O Sol acordou gripado e, apesar de todos os tratamentos terapêuticos manipulados por ele para a própria cura, não houve alívio. De início, a narrativa já se mostra cômica, o nonsense com a imagem de um Sol gripado, com o nariz pingando “roxo-rosado”, inaugura a narrativa demonstrando que se trata de uma proposta humorística. A única solução encontrada pelo personagem foi telefonar para a casa da personagem Lua e solicitar que ela acendesse o dia em seu lugar. Lua fica chateada diante da interrupção da sua rotina matinal. Seu mordomo, um dragão subserviente, que atendia pelo nome de Jeremias, mas se chamava Severino, cujo nome a própria patroa mudara por pura im-plicância, “era um tipo acostumado a obedecer a qualquer pessoa que falasse mais alto, muito nervoso, cuspindo um fogo fraquinho pelo nariz, tal como dizem que os dragões fazem” (ORTHOF, 2012, p. 11).

A falta de personalidade do Dragão, descrito na história como cachorrinho de Lua, é manifestação da falta de consciência social do indivíduo perante a vida, e sinaliza a exploração a que o personagem é submetido.

Lua, apesar de aborrecida, termina de fazer o que havia interrompido e manda Jeremias aprontar rapidamente o café da manhã, pois ela teria um dia inteiro de serviço pela frente. Outro artifício utilizado pela autora com fins humorísticos é o inusitado, os alimentos consumidos no café da manhã são curiosos: geleia de jabuticaba, ovos estrelados, leite da via láctea, dentre outros.

Depois de comer, a Lua, que então estava em sua fase “nova”, fica toda redonda, transformando-se em Lua Cheia. O duplo sentido dado à palavra “cheia” apresenta-se de modo mais efetivo pela via da imagem, além de a palavra remeter a um dos estados da lua, remete também à aparência física da personagem.

A Lua, então, vai toda redonda para o seu posto de trabalho, tropeçando nas Três Marias, demonstrando dar pouca importância às famosas estrelas. Em situação de protesto, as Três Marias fuxicam:

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- Esta dona Lua pensa que é o quê?
- Patati... patatá... patati... - respondeu a Segunda Maria, que só di-zia isso.
A Terceira Maria, essa fuxicou pior: simplesmente não comentou coisa alguma, mas lançou um olhar... um olhar cheio de fuxicos e de intenções, um olhar terrível! (ORTHOF, 2012, p. 20)

O termo “fuxicar” é coloquial e tem o sentido de tecer comentários, fofocar sobre os outros. É um termo cômico que pode provocar risos. Além disso, a segunda estrela se expressa apenas com a onomatopeia “patati patata”, de maneira bastante graciosa, mas sobretudo cômica, por reiterar a sugestão de que as Três Marias seriam fofoqueiras (falariam muito).

Esses são recursos que a autora utiliza para desenvolver o humor e que caracterizam a obra como um texto cômico. O humor aí desenvolvido é lúdico e isso pode causa no leitor mirim satisfação e prazer.

Na narrativa, o leiteiro, o gato e o galo são os primeiros seres terrestres a estranharem o fato de o dia ter amanhecido sem Sol e com a Lua Cheia em seu lugar. O galo fica confuso com a situação e não anuncia o dia por meio do seu canto, e, já que o seu serviço havia sido dispensado pelas contingências do dia, o personagem começa a interferir nos afazeres domésticos da galinha: passa a observar a desordem do galinheiro e reclamar do que, para ele, não seria o tratamento adequado aos pintinhos. A caracterização do galo como um personagem machista e prepotente é notável na narrativa, uma vez que ele passa a exigir uma postura diferente da galinha demonstrando hierarquia e o poder que exercia.

A galinha, grande heroína da narrativa, faz uma longa reflexão antes de dizer qualquer coisa. E conclui o seguinte: “– Se o galo não pode cantar porque o Sol sumiu do céu, é porque o galo não manda coisa alguma, porque, se mandasse, cantava. O galo implica comigo porque sou fraca, sou fraca, sou fraca... mas se eu resolver mudar, eu mudo!” (ORTHOF, 2012, p. 26).

A onomatopeia “sou fraca, sou fraca” faz alusão ao canto da galinha d´angola “tô fraca, tô fraca” e é uma interrupção cômica da narrativa num momento de tensão. Ainda que os leitores desconheçam esse tipo de galináceo, originário da África e pouco comum para uma criança urbana, a galinha d’angola, a oralidade da expressão onomatopéica e o sentido que ela sugere – a declaração de fraqueza – são provocadores de riso.

Após o momento de reflexão, a galinha decide, num ato de muita coragem e autonomia, subir no poleiro e fazer um discurso em resposta às reclamações do marido:

– Se a casa está uma desordem, a culpa é minha, mas também é do galo. Afinal, a casa é nossa. Ele que ajude... E se os pintinhos estão malcuidados é porque meu marido só faz cantar de galo, esquece de conversar com os filhos, esquece de ser amigo da gente.
Aí, ela ficou tão nervosa, tão nervosa, que abriu a boca e cantou: – Cocoricó! (ORTHOF, 2012, p. 29)
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A emancipação proveniente da argumentação e do canto da galinha é tão notória que o Dragão Severino percebe que era a vez dos fracos cantarem. Assim, de maneira urgente, ele salta de paraquedas, gritando para a Lua que se chamava Severino e não Jeremias. A Lua tenta manter a hierarquia por via do poder que exercia sobre o seu “cachorrinho” e serviçal, mas ele olha para ela e a adjetiva de “gorda”. Essa forma de tratamento para com a Lua, além de ser depreciativa, soa infantil, mas é a reação do sujeito perante a exploração sofrida na relação de trabalho.

Diante desse adjetivo, a Lua percebe que estava muito redonda e fica pulando de um lado para o outro no céu, tentando perder calorias; lembra-se também que estava trabalhando para o Sol sem nenhum pagamento e vai exigir um benefício pelo trabalho extra. O Sol fica logo bom da gripe, visto que mais um dia de resfriado lhe causaria muitos transtornos financeiros.

Depois do episódio catártico no qual o Dragão demonstra insatisfação para a Lua, Severino passa a exigir um tratamento mais respeitoso. Na conclusão da narrativa compreende-se que: “o mais importante mesmo foi que a galinha aprendeu a cantar. Afinal... mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro!” (ORTHOF, 2012, p. 35). Assim, a Terra voltou ao seu estado natural, no entanto, pela via da subversão do estabelecido e do convencional, a Galinha e o Dragão conseguem superar a hierarquia e inverter as relações de poder.

A presente obra infantil materializa a teoria de Bakhtin (2008) a respeito do riso libertador e subversivo. No livro, a estratégia de subversão da ordem vigente ocorre pela via de um destronamento, rebaixamento e inversão das posições de poder. O empoderamento libertador do ser mulher, representado na obra pela personagem galinha, é um ponto de inversão dos poderes característicos da lógica presente no conceito de carnavalização, conceito desenvolvido pelo teórico russo.

O fenômeno da carnavalização não permite que o oprimido permaneça tal qual, pelo contrário, as figuras de oprimido e opressor perdem seu lugar original no momento da festa, trata-se de uma “gangorra grotesca que funde céu e terra no seu vertiginoso movimento; a ênfase se coloca contudo menos na subida que na queda, é o céu que desce à terra e não o inverso” (BAKHTIN, 2008, p. 325). O aspecto carnavalizador de inversão e do realismo grotesco pode ser visto diversas vezes nessa obra, desde um Sol gripado, até uma galinha que subverte o convencional pela via do seu discurso; a concepção carnavalesca do mundo pode ser melhor apreendida pelas imagens produzidas por Orthof.

De acordo com as representações sociais convencionais e o imaginário popular coletivo, uma mulher só é chamada de “galinha” de modo depreciativo, significa dizer que uma moça tem vários parceiros sexuais. No contexto machista da sociedade brasileira, a avaliação moral do comportamento sexual geralmente recai sobre o gênero feminino, tendo em vista que um homem pode ter um comportamento “galinha” sem que essas atitudes sejam consideradas questionáveis/inadequadas ou ofensivas. Aliás, do homem se espera que ele tenha a postura de “pegador”. Isso agrega valor à sua masculinidade. Sylvia Orthof consegue romper com essa visão colocando a galinha no lugar de heroína.

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O personagem Severino, o dragão, parafraseia a vida de muitos trabalhadores pobres que vivem sob a imposição normativa do patrão, que se configura como opressor. Na narrativa, a tomada de consciência de Severino começa pela exigência do reconhecimento do seu nome próprio e de sua identidade. É o primeiro passo para um movimento revolucionário.

Essa narrativa contempla os três eixos temáticos do projeto de leitura proposto: Emancipação, Identidade e Inversão, de modo que várias reflexões podem ser realizadas em torno das ações das personagens.

Na primeira aula, as duas edições dos livros foram levadas para a sala. A condução desta aula teve o objetivo de apresentar a narrativa e promover um debate em torno das ações das personagens e das temáticas “Gênero” e “Trabalho”. Depois da leitura dramática do texto, com entonações e interpretações faciais diversificadas para cada personagem, feita por mim, um tempo foi destinado para que as crianças pudessem manusear as duas edições do livro.

As duas turmas mantiveram-se atentas durante a leitura do texto. Foi notório o espanto no decorrer da narrativa, um ou dois alunos sempre tentavam antecipar o final da história, ansiosos. Um aluno sugeriu que na ausência de Sol um Eclipse estaria instaurado. Outra criança interrompeu a leitura para explicar que a chuva que tinha ocorrido mais cedo era, certamente, em virtude do resfriado do Sol. Todos riram. O ambiente descontraído em razão da leitura dramática do texto se manteve até o final da aula, nas duas turmas.

Na turma E2, um educando ponderou que galinha nunca canta, exceto se estiver chocando. Discutimos a função da galinha como representante da mulher trabalhadora e todos demonstraram entusiasmo diante do discurso empoderado da personagem. Exploramos também o personagem Severino e a insubordinação do mesmo perante a exploração do seu trabalho. Na turma E1, por sua vez, o momento considerado mais cômico foi quando o Dragão chamou a Dona Lua de Gorda. Os alunos afirmaram que a Lua merecia aquele adjetivo por ser uma patroa tão injusta com o Dragão. Nas duas turmas houve muito riso diante da fofoca entre as Três Marias. Uma aluna explicou que a história era boa, mas não era engraçada. Outros disseram que a história era cômica.

Discutimos sobre a atitude da galinha, do galo, do sol, da lua e do dragão, e pelo diálogo algumas incompreensões em torno da narrativa foram surgindo, como por exemplo: por que o Sol não voltou com o canto da galinha? O livro foi consultado para responder às perguntas. A interpretação do texto ocorreu por via do diálogo.

O debate foi mais aprofundado na turma E2. Conseguimos avançar na interpretação da narrativa e, apesar de alguns alunos não considerarem a obra cômica, todos se empenharam em participar da discussão. Nos minutos finais da aula expliquei que na aula seguinte a turma viveria a narrativa de Sylvia Orthof, por meio da interpretação teatral.

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Na aula seguinte, o objetivo consistiu em vivenciar a narrativa a partir do jogo dramático e pelas técnicas do teatro espontâneo. A dramatização do texto intentou acentuar o diálogo dos leitores com a obra, e foi proposta apenas após a atividade de leitura e apreciação do projeto estético da autora ter ocorrido, isto significa que a literatura nunca é pretexto para outras atividades pedagógicas, o objetivo primordial da leitura literária é a própria leitura; essa concepção foi aderida em todo projeto.

Os aparatos cênicos foram: carretéis de linhas de tricô coloridas, duas máscaras carnavalescas, um nariz de palhaço, um balão grande branco e outro vermelho, tesouras e um cachecol com penas vermelhas. O local onde se desenvolveu a experimentação teatral foi a quadra da escola. O enredo para a dramatização esteve presente nas duas edições do livro disponibilizadas para as turmas, elas foram as fontes primárias de consulta. A experiência foi filmada.

A garota surda estava presente, no entanto, a intérprete de Libras havia faltado. Isto não foi impedimento para o desenvolvimento da prática, pois a interação com a menina ocorreu e ela foi incluída no jogo teatral, sobretudo porque a turma já sabia usar a linguagem de sinais.

A primeira turma (E2) estava bastante animada para a proposta. Poucos ficaram tímidos e recolhidos num canto da quadra. A proposta de teatro espontâneo a partir da narrativa de Orthof foi explicada e um aluno se dispôs a dirigir as cenas junto comigo. Um tempo inicial foi disponibilizado para que cada criança escolhesse um personagem e os aparatos cênicos que serviriam para caracterizar a performance. A minha surpresa foi grande quando percebi que ninguém queria ser a heroína da história. Então eu interpretei a galinha. Parece que a visão estigmatizada da galinha como um ser inferior e desprezível habitava o imaginário dos alunos. Por outro lado, várias meninas quiseram interpretar as três Marias. O Dragão Severino, o Sol gripado e a Dona Lua foram personagens escolhidos por várias crianças também. Alguns garotos interpretaram o galo.

Um fato curioso aconteceu nessa turma, depois de explicar que eu teria que interpretar o papel da heroína porque ninguém da turma escolheu essa personagem. Um garoto pediu para interpretar junto comigo e o seu discurso foi assim “huuuum, o Sol é patrão do galo e ele não manda em coisa alguma, agora é a vez dos fracos cantarem”. Ele modificou um pouco a cena e demonstrou que tinha compreendido bem o papel empoderado da galinha na narrativa.

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Cada criança interpretou à sua maneira e o livro literário foi solicitado inúmeras vezes. Certamente foi uma experiência cômica, o clima era de ensaio e improvisação. A narrativa literária de Sylvia Orthof foi apropriada de modo mais profundo, já que boa parte da turma se empenhou na produção de uma performance teatral. A abertura da proposta possibilitou que o riso escarnecedor e satírico aparecesse em vários momentos, mas é preciso salientar que a mediação foi importante no sentido de propor a todo momento um riso compartilhado e coletivo ao invés do riso negativo que reprime e ridiculariza. Foi um momento lúdico que cumpriu o objetivo de usufruir pela via do jogo teatral a narrativa de Sylvia Orthof.

Na segunda turma (E1) foi possível avançar mais na proposta. Inicialmente ninguém queria representar a galinha, no entanto no desenrolar da improvisação muitas crianças se dispuseram a interpretar o discurso emancipador da personagem. Novamente as três Marias foram escolhidas pelas meninas enquanto os meninos demonstraram predileção para interpretar o Dragão Severino. A experiência foi muito cômica e a história ganhou entonações e sotaques que expandiram a veia humorística da narrativa. Depois de explorar todas as possibilidades de improvisação, a partir do texto, ficamos brincando de cantar e jogar o balão. Toda interação foi marcada pelo ludismo e o escárnio foi menos evidenciado nessa turma. A cena do Dragão na interação com a sua patroa foi repetida muitas vezes e os objetivos da aula quanto a apropriação do livro literário pela via do jogo teatral foram contemplados.

Esse livro pode ser explorado em muitas outras aulas, pois a narrativa é fecunda. A prática de leitura realizada é uma demonstração de que um texto cômico que gera riso gera também aprendizado e é mobilizador do letramento literário. Diante dessa prática leitora, a dualidade riso e seriedade rompe-se. Assim, propõe-se a seguinte sequência didática:

2. Sequência didática

Atividade de leitura e interpretação de texto

Objetivos:

  1. Promover o letramento literário;
  2. Desenvolver a leitura e interpretação de texto;
  3. Trabalhar com o estilo humorístico nonsense;
  4. Abordar questões referentes ao patriarcalismo, sexismo e relações trabalhistas;

Metodologia

1º Momento: iniciar a prática pedagógica com a preparação da turma para a leitura da obra literária. Uma conversa sobre as relações de trabalho na atual sociedade, sobre o papel da mulher no mercado de trabalho e a diferença de salários entre os gêneros figuram um exercício de motivação para a leitura da narrativa, uma espécie de imersão dos sujeitos na atmosfera do texto. Esse momento inicial também serve para fazer um levantamento dos conhecimentos prévios dos educandos.

2º Momento: Leitura da narrativa Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro de Sylvia Orthof

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3º Momento: Depois de lido, é necessário interpretar o texto e suscitar pontos de vista, por meio de perguntas que problematizem as ações e toquem os eixos temáticos. Por exemplo: qual a função da mulher na narrativa? Quais são as relações vivenciadas entre os personagens? Alguém exerce poder sobre alguém? De que modo a emancipação ocorre? Esses questionamentos farão com que os alunos se remetam à narrativa e o livro será requisitado. No decorrer da análise dessas questões é possível trabalhar conteúdos referentes às relações de trabalho e a situação da mulher numa sociedade machista. É importante desnaturalizar a posição de submissão, a qual a mulher no patriarcado é colocada.

4º Momento: Explicar o significado de nonsense e dar exemplos tirados da narrativa – Sol gripado respingando roxo-rosado e leite da via láctea.

5º Momento: Promover um jogo dramático a partir da história, no qual cada aluno ou grupo de alunos escolham um personagem e interpretem de modo espontâneo a narrativa. Nessa atividade o que está em pauta é a apropriação da história pela via do corpo de modo que os alunos possam dar novas entonações e contornos para os sentidos advindos do texto. O papel do professor como mediador dessa construção é muito importante, pois é ele quem vai dirigir e organizar o jogo teatral.

Avaliação: Como mecanismo de avaliação, pode-se observar a participação dos alunos nas discussões e na construção do jogo teatral.

O produto completo com a análise de mais outras quatro obras da literatura infantil e respectivas sequências didáticas pode ser acessado por meio do seguinte endereço eletrônico: https://repositorio.bc.ufg. br/tede/bitstream/tede/4889/5/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20 -%20Dayane%20Tosta%20Costa%20-%202015.pdf.

O que aqui se propôs foi fazer um recorte de um projeto de leitura literária mais amplo. É fundamental que a literatura ingresse na escola e todos os afetos por ela produzidos devem ser acessados e trabalhados, nesta pesquisa a ênfase foi dada ao afeto do riso, sendo este compreendido como potência para o letramento literário, mas a literatura abre horizonte para uma gama complexa de sentimentos e sensações, de modo que a pesquisa continua aberta num diálogo infinito que se perpetua por meio de outras possibilidades de abordagens e perspectivas.

3. Referências:

COSTA, Dayane Tosta. O riso como potência para o letramento literário. 2015. 151 f. Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Básica) – Centro de Estudos e Pesquisas Aplicadas à Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

BAKHTIN, Mikhail. (V. N. Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 6.ed. Trad.: Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1992.

______. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. 6. ed. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hu-citec; Brasília: Universidade de Brasília, 2008.

BERGSON, Henri. O riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. 2.ed. Trad.: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção Tópicos)

FREUD, Sigmund. Os chistes e a sua relação com o Inconsciente. Trad.: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad.: Alfredo Veiga Neto, – 5.ed.- Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

Trad.: Alfredo Veiga Neto, – 5.ed.- Belo Horizonte: Autêntica, 2010. ORTHOF, Sylvia. Mudanças no galinheiro mudam as coisas por inteiro. Ilustração: Mariana Massarani. Rio de Janeiro: Rovelle, 2012.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad.: Tomaz Tadeu. 3. ed. – Belo Horizonte: Auntêntica Editora, 2010.

CONTATO
Dayane Tosta Costa
Mestre em Ensino na Educação Básica pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica do CEPAE/UFG •
dayane_tosta18@yahoo.com.br