VOLTAR À COLEÇÃO ISBN: 978-65-86422-78-8
Volume 1

Narrativas de professores para professores:

Produtos educacionais para o ensino na educação básica

O ensino de gêneros retóricos e sua prática

AUTORAS
Audiney José Pereira
Luzia Rodrigues Silva
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1. Introdução

A escrita de textos de gêneros retóricos é essencial às práticas letradas de uma sociedade democrática. Diante disso, torna-se importante às mediações formativas escolares o desenvolvimento de intervenções pedagógicas voltadas para o ensino desses gêneros. Esta pesquisa constrói eventos de letramento que visam ao ensino da escrita como prática social. O objetivo geral de pesquisa é investigar os fatores que contribuem para a ampliação das competências discursivas dos educandos, por meio do trabalho com gêneros retóricos que realizam o tipo dissertativo. Para alcançar esse objetivo, realizamos uma pesquisa qualitativa aplicada, cujas ações se apoiaram em uma posição bakhtiniana, em que a linguagem deve ser considerada por seu caráter ideológico e pelos usos e formas reais de comunicação construídas e utilizadas pelos falantes na interação verbal (BAKHTIN, 1992).

Nossa pesquisa caracteriza o produto. Nela, foram aplicadas sequências didáticas como forma de viabilizar as intervenções pedagógicas visando à ampliação da competência discursiva dos educandos que participavam como sujeitos da pesquisa. Todo o trabalho relatado, a metodologia, os procedimentos de intervenção didática – realizados por meio de sequências didáticas descritas neste – e o site que compõem a pesquisa são elementos objetivos que caracterizam o produto. Esses elementos podem ser acessados por meio da dissertação publicada ou, de forma mais didática, por meio das sequências didáticas e do relato de procedimentos publicados no site 100temas.webnode.com.

Segundo autores como Camps e Dolz (1995), bem como Perelman (2001), pesquisas têm indicado que há bastante dificuldade por parte de estudantes em desenvolver textos com argumentação sistemática (afirmativas, dados de sustentação e relação) e respeito aos níveis de coerência, especialmente as metarregras (Cf. CHAROLLES, 1978).

Em relação à argumentação, em textos escritos que compõem gêneros retóricos, Dolz (1994) discute que, em uma conversação “cara a cara”, é relativamente fácil para os estudantes levar em consideração ponto de vista do outro e formular um posicionamento próprio; porém, na atividade escrita “ele deve realizar um esforço muito maior para identificar a finalidade e o destinatário do discurso. A diferenciação entre seu ponto de vista e o do adversário continua sendo problemática” (DOLZ, 1994, p. 21).

Pudemos evidenciar pela pesquisa que – conforme posição de Geraldi (2010) e Bawarshi e Reiff (2013) – o conhecimento das formas tipificadas do gênero não se transforma, necessariamente, em domínio da produção escrita desse gênero. Constatamos, ainda, que há uma profunda vontade dos estudantes de se tornarem proficientes na escrita de gêneros retóricos. Essa vontade é revelada por meio de mediações formativas que valorizem a voz, a escuta e o diálogo com os educandos, em interações, cuja análise esclarece sobre aquilo que os estudantes projetam em relação às questões pragmáticas do discurso. A pesquisa evidenciou que é no aspecto ideológico do signo – onde o objeto é inesgotável – que se situam as dúvidas dos educandos. Nesse caso, intervenções pedagógicas baseadas nas categorias bakhtinianas do cronotopo, da tematização e do dialogismo se mostraram pedagogicamente poderosas para contribuir com a ampliação da competência discursiva dos estudantes.

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2. Procedimentos metodológicos

Para a aplicação da pesquisa, foram projetadas interlocuções de dois tipos. As interlocuções de primeiro tipo foram aquelas que ocorreram em sala de aula com todos os estudantes ao mesmo tempo: preparação de conteúdo, estudo dos gêneros (artigo de opinão, pesquisa de opinião, entrevista e reportagem) e de aspectos textuais e pragmáticos, primeira produção, leitura e comentário dos textos dos colegas (a partir de fichas) e a produção textual final.

As interlocuções de segundo tipo ocorreram em momento de aula. Nessas interlocuções, nós nos reuníamos separadamente com cada grupo (em sala separada). Houve dois blocos de interlocução de 2º tipo. No primeiro bloco, que antecedeu a primeira produção, os estudantes leram em grupo textos que eles haviam escrito como trabalhos de outras disciplinas. No segundo bloco, os estudantes discutiam em grupo os seus textos (1ª produção: artigo de opinião), liam os apontamentos feitos sobre seus textos na ficha de leitura feita pelo colega, dialogavam conosco e eram instados a, se quisessem, realizar modificações em seus textos e produzir a versão final do artigo de opinião.

O trabalho de preparação do conteúdo (Cf, DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2001) foi realizado em oito aulas, considerando-se o momento da primeira intervenção em sala até o momento da primeira produção. Foram quatro encontros, em oito aulas duplas. No terceiro encontro, os estudantes foram levados ao laboratório de informática e, em grupo, instados a desenvolver as seguintes atividades: a) Determinar conceitos e ideias relevantes para a discussão e criar uma definição para, ao menos, um tópico da discussão. b) Ler a entrevista realizada com professores e observar: o ponto de vista do destinatário, os tópicos (pontos/questões) que ele levantava e as informações que citava. Em grupo, os estudantes anotavam nos cadernos tudo aquilo que achavam importante sobre a entrevista e escreviam a definição de um tópico. Em seguida, nós discutíamos com cada grupo questionando sobre as definições construídas – sua extensão e precisão – e a relação delas com conceitos e ideias. Nesse caso, discutíamos se as definições construídas observavam conceitos das áreas de conhecimento ou sobre como poderiam ser relacionadas aos pontos de vista (ideias). No quarto encontro, os estudantes foram orientados a acessar um conjunto de fontes – por meio digital ou dos diversos textos impressos levados por nós como fonte – e levantar:

  1. as principais opiniões sobre o tema;
  2. argumentos favoráveis e contrários em relação às opiniões mais comuns;
  3. informações importantes e forma como se relacionavam com o tema;
  4. as informações e explicações importantes que se relacionavam ou poderiam se relacionar ao ponto de vista do destinatário; e
  5. as pesquisas científicas e/ou fatos históricos que poderiam se relacionar com o tema. Pedimos também que os estudantes construíssem um resumo de pontos de vista e explicações e um quadro com dados: estatísticas, citação de fatos históricos, referência a pesquisas e/ou indicação de conceitos relevantes na construção de argumentos. Depois de realizada essa atividade, reunimo-nos com cada grupo. Nesse momento, a interlocução foi conduzida por meio das seguintes perguntas:
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  1. Em qual(is) aspecto(s) o tema é polêmico ou conflituoso?
  2. Nesse(s) aspecto(s), quais os pontos de vista existentes e a quais grupos sociais eles estavam relacionados?
  3. Quais são os argumentos desses grupos? E como eles poderiam ser discutidos, comentados, replicados e/ou reforçados?

No quarto encontro, os estudantes foram instados a ler artigos de opinião e editoriais jornalísticos, observando:

  1. enunciação clara do ponto de vista;
  2. presença de argumentos;
  3. aspecto polêmico da discussão;
  4. diálogo com o destinatário; e
  5. as marcas linguísticas da textualidade do gênero. Essa foi a atividade que antecedeu a primeira produção.

As interlocuções de 2º tipo foram divididas em dois blocos. O primeiro bloco ocorreu na fase de preparação do conteúdo (sequência didática), anterior à primeira produção dos estudantes. Nesse primeiro bloco, os estudantes escolhiam um texto escrito durante alguma atividade escolar e entregavam a um colega do grupo para que fosse lido e comentado. Definimos em sala, no diálogo com os estudantes, que todos leriam textos escritos para as disciplinas de Sociologia e Filosofia. Todos os textos eram de tipo dissertativo e impunham a exigência da argumentação sistemática.

Nas reuniões com os grupos, separadamente, os estudantes foram instados a lerem os textos dos colegas e fazerem um comentário focando as seguintes questões:

  1. Houve a enunciação de um ponto de vista? Ele está claro?
  2. Podem-se detectar argumentos no texto (explícitos ou implícitos)?
  3. Quais dados sustentam o ponto de vista e onde ocorrem as explicações desses dados?
  4. Há aspectos ou tópicos do texto que poderiam ou deveriam ser mais detalhados? Depois de ouvir o comentário do colega, o autor do texto era instado a:
  1. enunciar qual era seu propósito comunicativo;
  2. comentar os argumentos que desenvolveu e indicar as informações em que se baseou; e
  3. comentar – considerando as observações do leitor-as explicações e informações que considerou importante enunciar (explicitar) e quais considerou que seriam facilmente dedutíveis pelo interlocutor. Esse procedimento (2º tipo) de interlocução – primeiro bloco com grupos – durou um período de duas semanas, durante três dias de cada semana, com encontros de uma aula com cada grupo.

Houve um encontro para cada grupo. Além do ponto de vista, do grau de explicitude das informações e suficiência dos dados, do propósito comunicativo e dos argumentos, nessa interlocução realizada com os grupos, buscamos orientar os estudantes sobre a importância de a argumentação inserir-se em um debate com os autores e fontes, bem como acompanhar o surgimento de fatos e dados novos. Nesse caso, trata-se do comprometimento pedagógico com o desenvolvimento de posturas críticas e reflexivas. A 1ª produção ocorreu depois do momento em que o primeiro bloco de procedimentos de 2º tipo havia acabado. Os artigos de opinião foram produzidos em sala de aula, em um período de 90 minutos. Pedimos aos estudantes que, nesse período, se concentrassem na escrita do texto.

Realizada a primeira produção, analisamos os textos dos estudantes observando:

  1. a enunciação do ponto de vista;
  2. as sequências e a argumentação;
  3. a informatividade; e
  4. o pensamento crítico.
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Conhecendo-se essas características da 1ª produção, apresentamos a seguinte ficha aos estudantes, orientando-os para procurarem detalhar as respostas:

Leia o texto de um colega e procure identificar:

  1. O texto satisfez os requisitos da situação de comunicação e do gênero artigo de opinião: Interlocução (referência a falas, ideias, opiniões, fatos citados pelo destinatário)? Se sim, indique o ponto no texto em que isso ocorre.
  2. Quais são as afirmativas que expressam o ponto de vista do enunciador? Quais dessas afirmativas poderiam/deveriam ser sustentadas com explicações/argumentos?
  3. Quais tópicos (pontos, questões, fatos, conceitos) parecem relevantes no texto e poderiam ser desenvolvidos (explicados, comentados, fundamentados com dados) para sustentar as opiniões do enunciador? Quais informações seriam importantes?
  4. Qual é, em sua opinião, o argumento mais relevante do texto?Ele está explicitado com explicações relacionando fatos e opiniões, apresentando e detalhando informações importantes?Se sim, indique em qual parte. Se não, indique o que deveria ser explicitado (escrito no texto) para melhor esclarecer e fundamentar o argumento.

O procedimento com a ficha durou duas aulas (1 hora e 40 minutos) e consistia em cada estudante ler um texto de um membro de seu grupo e responder – individualmente – a ficha. Os estudantes foram orientados que não deveriam pedir esclarecimentos aos colegas, buscando responder a ficha apenas por meio da leitura do texto e de seu conhecimento ou pesquisa. Ainda como parte dessa interlocução, os estudantes foram orientados a realizar leituras e discussões sobre a temática de seu grupo, pois seriam realizadas novas interlocuções com os grupos (de 2º tipo e 2º bloco) e eles seriam orientados a fazer a produção final.

A produção final referente ao gênero artigo de opinião ocorreu na 8ª semana de intervenção. A produção final foi realizada por grupos. Nós nos reuníamos com cada grupo ao longo da aula e os estudantes eram orientados a realizar modificações nos seus textos – se julgassem necessário – considerando as respostas das fichas preenchidas pelos colegas e a interlocução que realizamos. O estudante podia debater com os colegas e pedir esclarecimentos ao colega que havia preenchido a ficha. Nesse procedimento, realizado em momentos diferentes em cada grupo, orientamos que a produção final poderia ser realizada considerando os seguintes aspectos:

  1. Interlocução com o destinatário;
  2. Presença de argumentos;
  3. Suficiência de dados (informatividade);
  4. Pensamento Crítico; e
  5. Observação das considerações feitas na ficha de leitura, respondida por um colega do grupo que leu a primeira produção.

A intervenção foi mediada pelas dúvidas e questionamentos levantados pelos educandos. De forma geral, a interlocução focou questões relativas à informatividade, à argumentação e às sequências, à orientação apreciativa do tema na sociedade, à tematização e à cronotopia (BAKHTIN, 2002).

Para a escrita do gênero reportagem, que ocorreu logo depois da produção final do gênero artigo de opinião, foram realizadas intervenções que buscavam refletir sobre os elementos das sequências do gênero, o contexto em que ele circula e a sua relação com outros gêneros de acordo com o suporte. Nesse caso, trata-se dos gêneros pesquisa de opinião e reportagem. Os estudantes se reuniram em grupos para definirem:

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  1. Interlocução com o destinatário;
  2. Presença de argumentos;
  3. Suficiência de dados (informatividade);
  4. Pensamento Crítico; e
  5. Observação das considerações feitas na ficha de leitura, respondida por um colega do grupo que leu a primeira produção.

A intervenção foi mediada pelas dúvidas e questionamentos levantados pelos educandos. De forma geral, a interlocução focou ques-tões relativas à informatividade, à argumentação e às sequências, à orientação apreciativa do tema na sociedade, à tematização e à cronotopia (BAKHTIN, 2002).

Para a escrita do gênero reportagem, que ocorreu logo depois da produção final do gênero artigo de opinião, foram realizadas intervenções que buscavam refletir sobre os elementos das sequências do gênero, o contexto em que ele circula e a sua relação com outros gêneros de acordo com o suporte. Nesse caso, trata-se dos gêneros pesquisa de opinião e reportagem. Os estudantes se reuniram em grupos para definirem:

  1. as informações e ideias de seus textos que comporiam a manchete;
  2. o ponto de vista que assumiriam; e
  3. as informações da pesquisa de opinião realizada que seriam usadas e comentadas na reportagem.

Para o estudo dos aspectos da reportagem, foram distribuídos textos desse gênero para os estudantes os quais, depois da leitura, definiram os seguintes pontos como relevantes em uma reportagem, que assim podem ser sintetizados:

  1. riqueza e detalhamento de informações relativas a um tópico;
  2. recorrência ao discurso de autoridade, com citação de pesquisas, estudos e especialistas;
  3. ponto de vista difuso;
  4. presença de vários suportes e argumentos para um ponto de vista;
  5. contextualização com recorrência à história;
  6. topicalização por títulos, chamadas e imagens;
  7. presença de links para acesso de informações mais detalhadas sobre pesquisas de opinião e estudos; e
  8. referência a fontes e preocupação com sua credibilidade/autoridade/posição.

Todas essas intervenções didáticas expressam o projeto de trabalho com gêneros retóricos, visando à ampliação das competências discursivas dos educandos. O projeto e as intervenções foram repensados ao longo da pesquisa, especialmente no momento das interlocuções de 2º tipo e 2º bloco (produção final). Até então, as intervenções focavam questões relacionadas ao trabalho com o conteúdo temático, com as marcas linguísticas e textuais genéricas e com o pensamento crítico. Entretanto, durante a nossa práxis pedagógica, consideramos necessário – diante dos questionamentos dos educandos – buscar nas categorias bakhtinianas relacionadas ao centro organizador dos gêneros (cronotopia/unidade) e ao caráter ideológico do signo (orientação apreciativa e tematização) uma base para as intervenções, que fosse capaz de criar uma interação verbal qualificada o suficiente para contribuir com a ampliação das competências discursivas daqueles estudantes que apresentaram maior dificuldade.

3. Intervenções pedagógicas

No momento da produção final, realizada por meio da interlocução com os grupos e conosco, os estudantes apresentaram os seguintes questionamentos: qual o grau de explicitude das informações que esses gêneros (retóricos) impõem? Qual é a forma em que um argumento estruturado ocorre? É sempre em forma de silogismo? Por que os gêneros como o artigo de opinião, o editorial e a manchete eram marcados pela argumentação sistemática? Por que ou quando se precisa indicar a fonte bibliográfica? A quais fontes recorrer e por quê? Por que a percepção sobre o valor e as qualidades de um texto pode variar tanto de um leitor para ou outro? Como se orientar no sentido de produzir “um texto bom”, adequado aos objetivos visados e poderoso na situação de comunicação em que se coloca?

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A interlocução com o grupo centrou-se na tentativa de demonstrar – por meio da citação de textos – que grande parte da força retórica de uma ação de linguagem está no discurso realizado em um gênero adequado, não necessariamente na argumentação (sistemática).

A força retórica do discurso depende de sua capacidade de mobilizar/modificar a posição epistemológica dos destinatários e isso – apesar do peso exercido pela coerência argumentativa, a sistematicidade dos argumentos e a interação entre eles e o ponto de vista, no caso dos gêneros retóricos – pode ser realizado pelas afirmativas, pela apresentação dos dados, pelo tipo de análise/discussão levantada no texto ou pela relação proposta para os tópicos relevantes na discussão. Todos esses elementos – ou alguns deles apenas – podem estabelecer mais diálogo ou causar mais reflexão no destinatário do que simplesmente a argumentação sistemática. Isso se dará em função sempre do conhecimento de mundo do destinatário, do conhecimento compartilhado e da capacidade do(s) destinatário e/ou público de acionar informações no intertexto, relacioná-las com aquilo que foi textualizado pelo enunciador e, em seguida, atribuir-lhes um sentido. Nesse sentido, percebemos a importância de um sistema de referências reconhecido pelos interlocutores, de um sistema de epistemologias, pois é isso que torna possível o acordo entre espíritos (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA), em especial, criando o consenso sobre aquilo que é relevante na discussão.

A partir dessa interlocução, começamos a entender que os questionamentos e dúvidas mais frequentes – e que colocam maior dificuldade à ação docente, visando a ampliação da competência discursiva dos educandos – diziam mais respeito às questões cronotópicas desses gêneros, bem como a fatores como tematização e acabamento.

Outro procedimento da intervenção didática, realizado junto ao grupo dos estudantes, consistiu em realizar uma valoração positiva daquilo que o estudante havia escrito. Para isso, procuramos demonstrar que – considerando o gênero artigo de opinião – a primeira produção demonstrava conhecimento do estudante sobre escrita e capacidade de escrita. Apontamos que os primeiros textos estabeleciam uma interlocução com o destinatário, indicavam tópicos relevantes para a discussão, possuíam uma orientação argumentativa clara e ainda apresentavam uma capacidade crítica expressa na comparação de situações entre drogas legais e drogas ilegais. Especialmente, esse último aspecto pareceu ser determinante para a reação dos educandos. Ao sentir a valoração que seus escritos receberam, imediatamente eles reagiram colocando questionamentos ao grupo sobre suas produções.

Outro procedimento consistiu em – depois de retomar o conjunto de textos sugeridos como referência e os textos produzidos pelos educandos – realizar a interlocução com os grupos sobre três aspectos: a cronotopia, a tematização e o grau de acabamento (BAKHTIN, 1997). Buscamos responder sobre aquilo que aparece ou pode aparecer em um texto de um gênero como esse (os tópicos, as informações), sobre o grau de acabamento requerido para os tópicos sobre os quais se constrói a argumentação, sobre como a valoração em relação a certas questões pode se modificar de uma época para a outra e sobre como isso se expressa por meio das tematizações que ocorrem nos gêneros.

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Na interlocução com os estudantes, empenhamo-nos em evidenciar que o cronotopo diz respeito àquilo que aparece, que pode deve/aparecer (os topói, os lugares) e, em especial, à centração discursiva que se deve aplicar a um tópico, criando um efeito de duração, de tempo em que o discurso se centra em um tópico. O cronotopo diz respeito ao discurso ir a um lugar (tópico), e nele “repousar” durante o tempo em que compõe uma “paisagem” discursiva, ou seja, faz um tópico progredir, ganhar sentido (informatividade, orientação argumentativa, por exemplo), defini-lo.

Bazermam (2015b) diz que cada gênero tende a nos levar a “certos lugares mentais, com certos matizes ideológicos” e não a outros. São esses lugares, esses matizes ideológicos que caracterizam o cronotopo – centro de organização – dos gêneros.

Por meio do cronotopo de cada gênero, em cada época, podemos responder sobre as formas de tematização mais comuns e questionar/demonstrar suas relações – no sentido de refração e reflexão – com o contexto econômico-político e social de cada época. Podemos, também, definir quais são os tópicos, as informações, os tipos de prova, os argumentos mais acessados no intertexto. Podemos, ainda, determinar as fontes e vozes sociais de onde tendem a vir.

Os grupos de estudantes, durante suas produções finais, questionaram por diversas vezes sobre: quais tópicos discutir? Qual nível de detalhamento/explicitude das informações aplicar a um tópico? Por que se podia/devia trabalhar certos tópicos e não outros? Haveria tópicos que necessariamente deveriam constar do gênero? Assumir determinado ponto de vista – por meio de uma apreciação valorativa – implicaria necessariamente passar por certas “discussões” (diga-se: construir paisagens discursivas)?

No caso das interlocuções com os 5 grupos, as orientações se centraram, mais especificamente, na forma como os “topói” e o acabamento, detalhamento dado a eles, definem a fruição do tempo na escrita e fixam um espaço discursivo onde tópicos considerados relevantes são desenvolvidos. Os tópicos – sejam aqueles que recebem maior acabamento (por definição, oposição/contraste, comparação etc), sejam aqueles para os quais não ocorre detalhamento e aparecem em afirmativas que não são desenvolvidas, mas cujas relações dialógicas colocadas em tela servem para confirmar, reforçar, esclarecer sobre a temática – e as relações de referência, comentário e polêmica, colocadas em ação em seu desenvolvimento precisam ser capazes de, diante do destinatário/público, constituir uma unidade dentro do propósito comunicativo do enunciador e responder aos requisitos da sequencialidade comum ao gênero adotado para a ação de linguagem (BAKHTIN, 1997).

Ainda se referindo ao enunciado e sua realização em gêneros, Bakhtin (1997) é claro ao definir que são o tratamento exaustivo do objeto de sentido, o intuito ou querer-dizer do enunciador e as formas típicas de estruturação do gênero e do acabamento que definem a totalidade acabada de um enunciado. Segundo esse autor, o tratamen-to exaustivo será muito relativo — exatamente um mínimo de acabamento capaz de suscitar uma atitude responsiva. Teoricamente, o objeto é inesgotável, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições determinadas, em função de uma dada abordagem do problema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo autor (BAKHTIN, 1997, p 300).

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Percebemos pela pesquisa, ainda, que os educandos, em suas práticas discursivas, têm uma profunda clareza sobre a questão do querer-dizer definir o sentido do enunciado. Por isso, é comum, nas interlocuções que visavam discutir seus textos e o grau de explicitude dos argumentos e das informações, tais educandos pronunciarem: “mas você entendeu o que eu quis dizer”. No caso do trabalho escolar com gêneros retóricos, evidenciamos que, para os estudantes, não há a compreensão clara de que o grau de acabamento, relativo ao quantum mínimo de informação/explicação considerada necessária para garantir uma atitude responsiva da forma, como intentada pelo enunciador, varia de acordo com as características genéricas, em função do tipo de sequencialidade que marca cada gênero. Nesse sentido, o conhecimento da sequencialidade do gênero escolhido para a ação retórica ajuda na questão do tratamento exaustivo, de se saber sobre o acabamento dado a cada tópico, mas devemos considerar também que – mesmo no caso daqueles estudantes que demonstraram, já na primeira produção, um bom conhecimento da sequencialidade desses gêneros.

Os questionamentos e dúvidas parecem ser comuns aos processos de escrita, pois decorrem tanto da inesgotabilidade do objeto, quanto da necessidade do enunciador de, em uma ação de linguagem, realizar pressuposições sobre aspectos como o conhecimento compartilhado entre os participantes da interação verbal e sobre o destinatário e aquilo que conhece e considera relevante; e de se situar no intertexto formado pelo conjunto diverso de gêneros e informações que semiotizam o assunto e lhe dão um tratamento. São fatores pragmáticos e genéricos que contribuem para que o enunciador possa se orientar sobre o tratamento exaustivo, o acabamento a ser dado a um tópico e a constituição do texto em uma unidade de sentido tratamento (SOUZAc, 2002).

O conhecimento do gênero contribui, em parte, para orientar o estudante sobre o acabamento. Entretanto, nos casos de maior dúvida, somente considerações sobre aspectos relativos à tematização e à cronotopia em gêneros retóricos públicos foram capazes de contribuir para a ampliação da capacidade discursiva desses estudantes. Nos trabalhos com a produção final, vimos que o problema na escrita do gênero artigo de opiniao não é iminentemente de informatividade, ou seja, de conhecimento do campo da temática, do intertexto. Esse é um requisito, porém, a escrita parece impor/exigir do escritor a definição de um conjunto amplo e claro de diretrizes que não é muito fácil de constituir: o propósito comunicativo, o destinatário, o gênero, o meio, o intertexto, o espaço de agência. As perguntas dos estudantes (dúvidas) acabam por incidir sobre aspectos como: por que usar tal informação e não tal? Por que detalhar um tópico e apenas citar outro? Por que suprimir um tópico e focar outro? Por que fazer uma determinada referência implica um aspecto X, tal como um contra-argumento possível? De forma geral, são questões sobre apropriação do intertexto, tematização, acabamento e cronotopia.

As interlocuções – no caso daquelas relacionadas à apropriação do intertexto, acabamento e cronotopia – centraram-se em três aspectos para dialogar com as questões dos educandos: 1 – a sequencialidade exigida, ou mais comum, pelo gênero, 2 – as ontologias e epistemologias comuns ao gênero, 3 – o destinatário.

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O cronotopo, a escolha de “paisagens”, tem, nos gêneros artigo de opinião e reportagem, uma fortíssima relação com a tematização que se quer dar ao assunto. Por um lado, o conhecimento do intertexto diz ao enunciador sobre as formas que um tema ou temas correlatos foram tematizados e a valoração apreciativa que receberam. Assim, o enunciador constrói uma posição de sujeito assumindo, na relação com intertexto, uma tematização e valoração apreciativa e, em seguida, buscando um cronotopo capaz de unificar as “paisagens discursivas” acionadas no intertexto, produzindo um sentido. Esse procedimento de passagem, marcado pela relação com o intertexto, exige do enuncia dor um profundo discernimento, reflexão, consciência crítica sobre as formas como um assunto tem sido tematizado, considerando aspectos históricos que contribuem para que a valoração apreciativa se modifique. É nesse ponto de passagem que parece se situar o sofrimento da escrita: a passagem da tematização, da valoração apreciativa construída pelo sujeito para o tema, ao cronotopo, a um discurso com unidade, capaz de produzir o sentido desejado e realizar a ação de linguagem.

4. Considerações finais

Os resultados das intervenções didáticas, considerando-se os dados do corpus de textos analisados, demonstraram a eficiência de um trabalho de letramento escrito, baseado nos gêneros como forma de ação e prática social. Isso se evidencia pelo grau de engajamento dos estudantes, pela ampliação da consciência crítica de gêneros dos estudantes, expressa na maioria das fichas e nos gêneros artigo de opinião e reportagem; bem como porque as intervenções baseadas no trabalho com gêneros retóricos foram capazes de contribuir para que estudantes com maiores dificuldades em relação à construção desses gêneros pudessem ampliar sua competência discursiva.

O ensino da escrita de gêneros retóricos na escola, visando à ampliação da competência discursiva dos educandos – tal como definida neste trabalho – mostra-se produtivo quando as mediações formativas colocadas em ação pelos agentes pedagógicos conseguem mobilizar os educandos. Para isso, é necessário que se considerem as ações de linguagem que os educandos podem e desejam realizar, os propósitos e os gêneros adequados para isso no ambiente escolar. Nesse sentido, os dados da pesquisa demonstraram que a competência discursiva dos educandos e sua agenciação podem ser ampliadas por meio do trabalho com os gêneros artigo de opinião e reportagem, articulados com outros gêneros retóricos.

Nos processos de constituição da escrita dos educandos, as intervenções pedagógicas precisam considerar que toda escrita é cronotópica. Isso significa que ela organiza – dentro de um princípio de fruição, de aparecimento, de gradação, de síntese, de transcorrência, de centração – o conteúdo ideológico. Encontrar esse “princípio de organização”, de modo a satisfazer as necessidades retóricas da situação – considerando o tema, o destinatário e propósito comunicativo – parece ser a busca mais árdua que a produção escrita impõe. Os gêneros são o instrumento construído como resposta social a isso. Assim, fazer dominar – ao menos em parte – o cronotopo de um gênero, sua fruição possível, é uma importante função das práticas de letramento escrito escolar. Entretanto, é preciso ser claro – no caso da ação docente – que conhecer um gênero e ser capaz de usá-lo não garante, em especial em situações de escrita, que sempre se poderá fazê-lo com êxito.

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Como produto, a pesquisa pode ser acessada por diversos educadores do país porque se encontra divulgada em várias matrizes digitais e em trabalhos apresentados em congressos e seminários, bem como publicada em seus anais. Além disso, o relato de pesquisa, os instrumentos pedagógicos utilizados, as sequências didáticas descritas em intervenções ou módulos, os resultados da pesquisa e o site construído (www.100temas.webnode.com) compõem um conjunto de elementos materiais que podem ser acessados por educadores, possibilitando a reflexão sobre suas práticas de ensino e contribuindo para o desenvolvimento de uma práxis pedagógica capaz de ampliar a competência discursiva dos educandos.

Quadro III. Sequências didáticas por meio das quais efetivam as intervenções da pesquisa
Quadro III. Sequências didáticas por meio das quais efetivam as intervenções da pesquisa

5. Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6ª Edição, Hucitec, 1992.

______.Estética da Criação Verbal. 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1997.

______. Questões de literatura e de estética. 5ª edição. São Pau-lo:Hucitec, 2002

BAWARSHI, Anis S. e REIFF, Mary Jo. Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino. 1ª Ed. – São Paulo: Parábola, 2013.

BAZERMAN, Charles. Retórica da ação letrada.In: HOFFNAGEL, Judith Chambliss; DIONÍSIO, Paiva Ângela; ACUNHA, Pietra(Orgs.). 1 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência do texto. Langue Française, Paris: Larousse, n. 38, 1978.

DOLZ, Joaquim. La interación de las actividades orales e escritas em la enseñanza de la argumentación. Comunicación, lenguaje e educación. 1994, 223, 17-27

______ & CAMPS, Anna. Enseñar a argumentar: um desafío para la escuela actual. Comunicación, lenguaje e educación. 1995, 25, 5-8.

______, NOVERRAZ, Michèle e SCHNEUWLY, Bernard. Exprimir-se em francês – Sequências didáticas para o oral e a escrita. Edições de Boeck, 2001.

GERALDI, João Wanderley. Ancoragens, estudos bakhtinianos. São Carlos. Pedro e João editores, 2010.

PERELMAN, Flora. Textos argumentativos: su producción em el aula. Lectura y Vida, ano 22, nº 2, 2001.

PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. 2ª edição – São Paulo: 2002.

CONTATOS
Audiney José Pereira
Mestre em Ensino na Educação Básica pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica do CEPAE/UFG •
audineypereira@yahoo.com.br
Luzia Rodrigues Silva •
Doutora em Linguística pela UnB. Docente do PPGEEB/CEPAE/UFG •
luz@ufg.br