Governo Federal República Federativa do Brasil Ministério da Educação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Universidade Federal de Goiás

DIDÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
EMBATES COM AS POLÍTICAS CURRICULARES NEOLIBERAIS

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SEÇÃO 2
AUTOR Manoel Oriosvaldo de Moura
Referenciar como: MOURA, Manoel Oriosvaldo de. Formar e formar-se em espaços de significação da atividade pedagógica. In: LIBÂNEO, José Carlos; ROSA, Sandra Valéria Limonta; ECHALAR, Adda Daniela Lima Figueiredo; SUANNO, Marilza Vanessa Rosa (Orgs.). Didática e formação de professores: embates com as políticas curriculares neoliberais. Goiânia: Cegraf UFG, 2022, p. 38-46. Disponível em: https://publica.ciar.ufg.br/ebooks/edipe2_ebook/artigo_07.html
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Formar e Formar-se em Espaços de Significação da Atividade Pedagógica

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Introdução

Ao considerarmos a premissa marxiana sobre o papel central do trabalho na formação humana, no presente texto partimos da tese de que o professor se forma ao conceber e realizar o seu objeto principal: a atividade pedagógica. Defendemos, portanto, que formar e formar-se estão em estreita relação nos processos de constituição da profissão de professor em sua formação inicial e contínua.

Tal como em qualquer profissão, considera-se essencial definir espaços em que o futuro profissional professor possa experienciar modos de realização das atividades de sua profissão. Nesses espaços de formação, os formadores devem proporcionar a vivência de atividades modelares para as suas futuras práticas. Defendemos que ali se desenvolva a aprendizagem de um modo geral de realização da atividade pedagógica, nos mesmos preceitos de qualquer atividade humana: a que possibilita compreender o objeto e o modo como lidar com ele de forma a aprimorá-lo constantemente.

Se consideramos que o professor, como trabalhador, tem como seu objeto principal a atividade pedagógica, para possibilitar àqueles que a realizam apropriar-se de conhecimentos teóricos e desenvolver formas mais elaboradas de pensamento, devemos criar espaços de formação que proporcionem, aos futuros professores e àqueles já em exercício, permanente aprofundamento do seu objeto, ao planejar, realizar e avaliar ações intencionais que objetivem a aprendizagem de conceitos considerados relevantes para a formação integral dos estudantes. Criados com esta finalidade, os Clubes de Matemática, os Clubes de Matemática e Ciências e as Oficinas Pedagógicas de Matemática apresentam potencialidades para desenvolver o modo geral de formação do professor, com a elaboração e o desenvolvimento coletivo de atividades de ensino.

Assumir o trabalho do professor como atividade (LEONTIEV, 1978, 1983), mediada pelo que temos denominado de Atividade Orientadora de Ensino, tem revelado as possibilidades de conferir, à dimensão da formação do professor em toda a sua vida profissional, uma atitude investigativa essencial para que ele tome consciência de que em sua atividade de ensino também está o modo de aprender a ensinar. Isto é: ao formar, também se forma.

A significação da formação na atividade pedagógica

Neste texto, seremos conduzidos por uma proposição central: a de que o professor tem na sua atividade os elementos constitutivos do processo de significação da sua profissão. Este se constitui, fundamentalmente, no movimento de criar e realizar seu plano ideal da atividade pedagógica, ao planejar, desenvolver e avaliar ações intencionais que tenham como finalidade a objetivação da aprendizagem de conceitos considerados relevantes para a formação integral dos estudantes.

A defesa dessa perspectiva, para a atividade pedagógica, parte de premissas que nos parecem fundantes para compreender os processos de formação da consciência humana e, por isso, vamos nos dedicar a eles, à procura de sustentação da tese que lhes apresentamos. São os conceitos de trabalho, tal como o define Marx (1999), e o de atividade, formulado principalmente por Leontiev (1978, 1983), que fundamentam a nossa tese.

Comecemos por uma clássica afirmação de Marx, em que se explicita a sua concepção sobre o processo de humanização do homem, ao produzir objetos mediado pelo trabalho. Diz Marx (1999, p. 212, grifo nosso):

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Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho.

Destaquemos o que nos parece relevante para corroborar a nossa tese inicial: o homem produz com base em um plano inicial; e o desenvolvimento desse plano está subordinado às condições objetivas. Nessa citação de Marx, chama atenção, também, a sua afirmação de que a subordinação da vontade à sua concretização no objeto produzido não é um ato fortuito, pois, segundo ele, é mister a vontade adequada que se manifesta por meio da atenção durante todo o curso do trabalho. E aqui é possível ponderar que essa atenção ao longo do trabalho é um processo mental em que análise e síntese estão em movimento de modo constante. A objetivação da vontade colocada em movimento pelas ações e operações com instrumentos não se processa de modo igual ao idealizado, como nos alerta Marx. O objeto produzido contém a história que sintetiza o processo de sua objetivação pelo trabalho. Nele está a possibilidade de avaliar o que foi idealmente projetado.

Preservar o modo de produzir o que se constitui como relevante para a comunidade à qual o sujeito pertence implica em ato educativo, o que nos remete a considerar a educação como resultado do desenvolvimento histórico do trabalho. Ao longo da história humana, fomos acumulando conhecimento sobre os processos que podem aprimorar os resultados do que se tornou necessário produzir, para satisfazer as necessidades humanas. A educação só pode ser entendida nesse movimento de aprimoramento dos modos de produção, para os quais se faz necessário compreender o modo humano de fazer e ensinar a fazer e vice-versa. Nesse percurso, também passamos a conhecer mais os processos de ensino e aprendizagem, e em determinado momento considerou-se relevante organizar as ações educativas, o que envolveu a organização de espaços de aprendizagem para e sobre o ensino: a escolha de conteúdo, a definição de padrões éticos de relação entre alunos e professores, o desenvolvimento de instrumentos de ensino, os modos de avaliação e, por fim, a institucionalização da educação.

Mas, sendo a educação formal o resultado do desenvolvimento histórico e social do homem, é preciso identificar as reais necessidades que possibilitaram a sua formulação. Sigamos, então, a premissa de que o modo do homem se desenvolver é pelo trabalho. E mais, que este tem por finalidade a objetivação da satisfação de necessidades humanas (LEONTIEV, 1983). Isso leva a uma questão: quais são e como surgem essas necessidades que conduzem ao desenvolvimento do homem? Muitos já deram as mais variadas respostas a essa pergunta. Aqui apresentamos uma delas, para construir nosso argumento em favor de uma concepção sobre os processos de formação na atividade pedagógica.

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Malinowski (1975), em seus estudos antropológicos, destaca as seguintes necessidades básicas do homem: metabolismo, reprodução, conforto corporal, segurança, movimento, crescimento cultural e saúde. Em seu estudo, ele nos chama a atenção para um fato que, de tão óbvio, nos passa despercebido na vida cotidiana: sentida a necessidade, torna-se essencial criar uma resposta para ela. E apresenta, então, o que chama de respostas humanas àquelas necessidades básicas que citamos. Para facilitar nossa leitura da relação entre a necessidade e a resposta humana, apresentada pelo autor, colocá-la-emos em forma de pares ordenados, em que o primeiro elemento é a necessidade; e o segundo, o consequente, é a resposta criada: (metabolismo; aprovisionamento), (reprodução; parentesco), (conforto corporal; abrigo), (segurança; proteção), (movimento; atividades corporais), (crescimento cultural; treinamento/educação/socialização), (saúde; higiene).

Na leitura do que nos diz Malinowski sobre as necessidades básicas e as respostas humanas dadas a elas, é possível destacarmos que, para cada uma, desenvolvem-se novas necessidades e novas soluções. Soluções, essas, que requereram a produção de novos instrumentos e a integração de sujeitos pela divisão de trabalho para melhor realizá-las. Ilustramos, pelo menos, um desses pares: a necessidade humana da saúde e a higiene como resposta a essa necessidade. A ameaça à vida humana causada por uma pandemia nos faz conscientes da importância de ampliar o conceito de higiene e do modo como devemos criar ações e instrumentos capazes de preservar a vida. Nesse processo, a comunidade científica desenvolve novos conhecimentos, novos instrumentos e partilha novos procedimentos de combate aos agentes que estão ameaçando as vidas humanas. E, quiçá, também resulte desse processo a consciência de que a saúde é um direito humano.

Esse exemplo da relação entre saúde e higiene que acabamos de apresentar, brevemente, também é ilustrador de como o autor sugere agrupar as necessidades. Ele o faz em três grandes grupos: necessidades básicas, instrumentais e integrativas. É sobre estas últimas que lançamos a nossa atenção, tendo em vista que está aqui o foco central da educação escolar.

Assim, voltemos ao conceito de trabalho e procuremos identificar em que sentido o que fazemos está de acordo com ele. Sabemos que Marx, ao tratar do desenvolvimento do homem pelo trabalho, referia-se à sua capacidade de fabricar e usar instrumentos para realizar seus planos, idealizados com vista à satisfação de suas necessidades. A relação entre a produção de objetos e o desenvolvimento humano, como vimos, estava asseverada por Marx, mas foi preciso que outro pensador extraordinário viesse a encontrar, precisamente, a chave para o processo do desenvolvimento da psique humana, em acordo com o pressuposto de Marx. É o que faz Vygotski (2000), ao demonstrar o papel do signo no comportamento do homem. Em suas palavras:

O uso de meios artificiais – a transição para a atividade mediada – muda, fundamentalmente, todas as operações psicológicas, assim como o uso de instrumentos amplia de forma ilimitada a gama de atividades em cujo interior as novas funções psicológicas podem operar. Nesse contexto, podemos usar o termo função psicológica superior, ou comportamento superior com referência à combinação entre instrumento e o signo na atividade psicológica. (VYGOTSKI, 2000, p.73, grifo do autor).
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Se considerarmos que a realização do trabalho requer o desenvolvimento da linguagem para satisfazer as necessidades integrativas, é possível identificarmos o quão é relevante a compreensão dos processos humanos de aprendizagem de conceitos, para que estes possibilitem a apropriação de bens culturais produzidos pela humanidade. O desenvolvimento da linguagem é primordial para os processos de realização das atividades humanas coletivamente, como resposta humana às necessidades integrativas. Assim, podemos dizer que, para a satisfação das necessidades integrativas, torna-se necessária uma resposta humana: a educação por meio da atividade pedagógica. Esta deveria ter como finalidade os processos de interação que tenham como finalidade o bom desempenho dos sujeitos para satisfazer as necessidades básicas e as instrumentais realizadas pelo trabalho e para ele.

Vejamos três situações para ilustrar essa afirmação:

  1. Uma afirmação que se dá em um diálogo: - “Fui à feira, comprei bacuri, coloquei num cofo que foram depois colocados no jacá que estavam na cangalha do jegue e fui me embora, pois em casa tem mugunzá me esperando”.
  2. Fato possível: Ao chegar no Rio Grande do Sul, um nordestino foi trabalhar em uma loja de departamentos. No seu primeiro dia de trabalho, o seu empregador lhe faz o seguinte pedido: “Vá até o depósito e me traga uma guaiaca, 4 bombachas e dois pares de carpins”.
  3. Uma definição: Definimos como círculo “a figura plana limitada por uma linha curva cujos pontos estão sempre à mesma distância de um centro.”

É claro que, nas duas primeiras afirmações, imagens ilustrativas podem tornar possível compreender o que se diz nas frases, mas a definição de círculo certamente implica em desenvolvimento de conceitos que requerem a formação de nexos conceituais mais complexos, que dificultam a sua apropriação. O conhecimento cotidiano pode ser suficiente para a compreensão do que é dito nas duas primeiras afirmações, mas, para o entendimento da terceira, precisamos do conhecimento teórico (RUBTSOV,1996), aquele que vai se formando de modo consciente no sujeito, ao considerar as múltiplas determinações do conceito como parte de um sistema de significados, cujos nexos lhe conferem uma nova qualidade, em função de nova qualidade do objeto apreendido em sua consciência. Isso requer a atividade de ensino com intencionalidade, o que define a educação escolar como projeto social de desenvolvimento humano, por meio de atividades pedagógicas.

Assim, na atividade pedagógica deve estar a possibilidade de superação do pensamento cotidiano, já que “[...] as ideias necessárias à cotidianidade jamais se elevam ao plano da teoria, do mesmo modo como a atividade cotidiana não é práxis” (HELLER, 1992, p. 31-32). A superação do pensamento cotidiano requer a aprendizagem dos conceitos científicos, os quais, segundo Davídov (1988), se estabelecem pelo desenvolvimento do pensamento teórico. E isso exige atividade pedagógica que tenha como pressuposto “a apropriação de conhecimentos teóricos por meio do desenvolvimento de diferentes processos de pensamento, como generalização, abstração, reflexão, análise e síntese, planificação de ações etc.” (PANOSSIAN; MORETTI; SOUZA, 2017, p.130).

O que há de comum às três afirmações apresentadas anteriormente é que, para formar em minha consciência uma imagem do que está sendo dito, tenho que construir logicamente a frase e essa formação exige compreender cada palavra. E sabemos que a compreensão da palavra é resultado de um processo de significação, pois nesta “está contida de maneira transformada e reduzida ao contexto idiomático, a forma ideal de existência do mundo objetal, de suas propriedades, nexos e relações, descobertos pela prática social” (LEONTIEV, 1983, p. 115). E essa tarefa exige do sujeito a sua vivência pela prática ou pelo desenvolvimento de um processo de ensino que lhe permita reconhecer nexos conceituais capazes de dar sentido ao que está sendo dito, pois, como afirma Vigotski (2009), a palavra é sempre representação de processos reais da produção humana. E este processo, sabemos, é histórico e social.

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Ao incluirmos, no movimento de significação do conceito científico, a história do seu desenvolvimento e a necessidade de considerar a construção lógica dos nexos que ele faz com outros conceitos, defendemos que o processo de formação e aprimoramento da qualidade das capacidades humanas para se apropriar da cultura humana é lógico-histórico (KOPNIN, 1978). Sendo assim, há de se considerar o papel essencial da apropriação dos conhecimentos teóricos para o desenvolvimento do indivíduo, em suas vivências histórico-sociais.

Para Davídov (1988, p. 321), o desenvolvimento se realiza por meio da assimilação (apropriação) pelo indivíduo da experiência histórico-social. Assim, devemos considerar a realização de práticas educativas que potencializam esse processo de apropriação do conhecimento produzido pela humanidade. Davídov (1988, p. 322), em complemento à afirmação anterior, nos alerta que:

Se a assimilação é a reprodução pela criança da experiência socialmente elaborada e o ensino é a forma de organização desta assimilação, aceitas as condições históricas concretas, na sociedade dada, o desenvolvimento se caracteriza, antes de tudo, pelos avanços qualitativos no nível e na forma das capacidades, os tipos de atividade etc., de que se apropria o indivíduo.

Essa afirmação de Davídov, no nosso entender, faz referência à estreita relação entre aprendizagem, ensino e desenvolvimento. Assim, nos traz de volta para o nosso tema principal: a atividade pedagógica. E, mais especificamente, somos chamados a conhecer melhor o modo como essa se compõe como uma autêntica atividade humana: a educação escolar. É nesta busca que se inserem nossas inferências sobre como esta atividade se torna unidade de formação dos que a realizam – do professor, ao colocar em desenvolvimento seu plano ideal de tornar possível a apropriação de um conceito pelo ensino; e do estudante, ao ser mobilizado para apropriar-se de um conceito como sujeito em atividade de aprendizagem.

Lembremos que na educação escolar se perde a materialidade do processo de assimilação do objeto produzido pelo trabalho. No período pré-industrial, a relação do aprendiz com o artesão acontecia de forma direta. O aprendiz de sapateiro, por exemplo, aprendia a fazer sapato, fazendo-o. O modo de aprimoramento de suas habilidades se dava numa relação direta com o mestre, por imitação, e desta ao desenvolvimento de sua autonomia, que o alçava à condição de ter o ofício de sapateiro.

No caso da educação escolar, o estudante tem no conceito o que foi a história do seu desenvolvimento, mas sem a sua materialidade. O conceito de medida, por exemplo, já está muito distante de todo o processo de sua significação, que se deu pelo desenvolvimento da necessidade das trocas e da propriedade privada (CARAÇA, 1989). Porém, como não poderia deixar de ser, a estrutura da atividade de aprendizagem de um conceito teórico é semelhante à estrutura do processo de realização da atividade objetal. Leontiev (1983), ao conceituar atividade, nos dá elementos para fazermos essa afirmação. Diz o autor: “[Atividades] São processos psicologicamente caracterizados por uma meta a que o processo se dirige (seu objeto) coincidindo sempre com o objetivo que estimula o sujeito a executar esta atividade, isto é o motivo” (LEONTIEV, 1988, p.68).

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Observamos que o conceito de atividade é inspirado no conceito de trabalho de Marx (DAVÍDOV, 1988). Mas, aqui, temos ampliado o conceito de objeto para o qual a ação se dirige: ele pode ser tanto material quanto conceitual. Fazer um sapato em uma oficina de sapateiro é uma atividade em que a materialidade resultante do planejamento do sujeito é o sapato, mas calcular a área de um terreno retangular que tem 20m de comprimento e 10m de largura não exige a materialidade do terreno. Esta só será exigida quando efetivamente ele for utilizado para algum fim. Para o caso do cálculo da área, temos necessidade de certos conhecimentos que o sujeito organiza, de modo a produzir um resultado que tem a possibilidade de ser testado em confronto com a realidade objetiva.

Como síntese do que tratamos até aqui, apresentamos o esquema abaixo.

Esquema

Fonte: Moura (2017)

Chamamos atenção para as linhas tortas na figura. Elas representam o fato de estarmos predispostos a inesperados, no desenvolvimento do plano ideal, que visa à objetivação da atividade, por meio de ações e operações sujeitas às condições socioculturais em que a atividade se desenvolve.

Assim, como professores, estamos em atividade quando organizamos as nossas ações para que, de forma intencional, possibilitemos aos estudantes a apropriação dos conceitos científicos – no que se inclui o desenvolvimento do pensamento teórico. Isso nos impõe a necessidade de compreender o modo de apropriação dos conceitos, os determinantes desse processo. Desse modo, sendo atividade, devemo-nos perguntar qual deve ser a estrutura da atividade pedagógica, para que ela se ajuste aos preceitos teóricos sobre a apropriação da cultura que permita o desenvolvimento dos sujeitos que a realiza.

O desenvolvimento da consciência em atividade

Os estudos de Davídov (1982, 1988), ao buscarem as bases teóricas para sustentar sua proposta de um ensino desenvolvimental (POENTES; LONGAREZI, 2019), encontraram nos fundamentos do materialismo histórico-dialético o que poderia dar elementos para a sua proposta de ensino, com base no que considerou ser preponderante para a aprendizagem. Particularmente, o conceito de atividade foi determinante para fundamentar a sua interpretação sobre os processos de aprendizagem dos estudantes, segundo o que chamou de “atividade de estudo”.

Mas, o que imprime este movimento da aprendizagem se o considerarmos como uma autêntica atividade? Como sabemos, o que é central na atividade é o motivo. Não há atividade sem motivo (LEONTIEV,1988). Desse modo, para existir, a atividade de aprendizagem do estudante exige o motivo que o mobilize para apropriar-se de um conceito. Nós, educadores, somos aqueles que representam a sociedade que instituiu a educação escolar como vetor principal de preservação e promoção da cultura. Como professores, exercemos uma profissão que lida com os instrumentos criados pela humanidade e que são do mais elevado nível de sofisticação: os signos, a linguagem, os conceitos. Desse modo, somos nós os responsáveis por desenvolver motivos para que haja a apropriação de conceitos científicos pelos nossos educandos.

Mas os motivos não são dos sujeitos? Não são pessoais? Essa resposta exige um certo cuidado. Em uma visão mais superficial, pode ser que a resposta seja sim, mas uma análise mais apurada vai nos levar a compreender o caráter social dos motivos (LEONTIEV, 1978). Basta ver como os valores de diferentes povos podem conduzir a diferentes desejos. Em uma sociedade em que a mercadoria é o centro das relações humanas, é preciso que ela seja desejada por muitos para que a sua circulação seja potencializada para o consumo.

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O acordo com a afirmação de que o homem se faz ao fazer o seu objeto nos leva a buscar compreender como isso acontece; quais são os processos de formação do sujeito que, ao realizar uma atividade, o faça de modo a cada vez mais ter a compreensão do que faz e, nesse processo, constitua a sua individualidade. Nas profissões que permitem observar a materialidade do produto realizado, pode-se perceber de forma mais definida o processo que leva a essa materialização. Por exemplo, nos ofícios de sapateiro, padeiro e costureiro, identifica-se que há a criação do objeto idealizado e que isso requer um planejamento prévio e à definição de ações consideradas como relevantes e essenciais para a realização do que se pretende fazer; que, com a escolha dos instrumentos considerados adequados, se manejados seguindo adequadamente o plano estabelecido, será possível objetivar a atividade que produz o objeto pensado. Portanto, o objeto é a referência do sujeito em atividade. É o que ele tinha como meta e que, no final do processo do trabalho, se objetiva, possibilitando, assim, a avaliação do que havia idealizado. Desse modo, ele tem uma avaliação de toda a atividade e poderá identificar qual das partes que a compõem precisaria de ajustes para a produção de um objeto de melhor qualidade. A confeiteira certamente verificaria o calor do forno, a quantidade de açúcar, a adequação das proporções dos ingredientes etc.

Gordon Childe (1978), em A evolução cultural do homem, nos dá um exemplo ilustrador do desenvolvimento do conhecimento, quando descreve o processo de aprimoramento dos objetos feitos de argila, na Antiguidade. Ele o faz de modo tal que fica claro que o domínio do barro para a produção de utensílios vai exigindo que se considerem as múltiplas variáveis que influenciam o aprimoramento das qualidades dos objetos produzidos. Assim, por exemplo, a possibilidade de o pote não rachar vinculava-se ao controle da temperatura, ao modo como o barro foi amassado, à qualidade da matéria-prima etc.

Ao refletirmos sobre as nossas ações cotidianas, certamente identificaremos as razões de suas realizações, os seus motivos. Reconheceremos, certamente, o modo como foram realizadas. Ao avaliarmos como elas se desenvolveram, reconheceremos ali a estrutura da atividade. Isso pode ser um exercício para o aprimoramento do objeto produzido ou da atividade que pode, também, não ser objetal.

O processo de mudança da consciência do sujeito, tal como expusemos até aqui, vincula-se ao modo de satisfação de suas necessidades objetivas e subjetivas, por meio das atividades que realiza para um fim idealizado. O processo de mudança da consciência em cada indivíduo está em estreita relação com aquilo que ele faz. Quanto a isso, afirma Davídov (1988, p.4, grifos no original):

[...] a consciência é a reprodução pelo indivíduo da imagem ideal de sua atividade tendente a uma finalidade e da representação ideal nela das posições das outras pessoas. A atividade consciente do homem está mediatizada pelo coletivo: durante sua realização o homem toma em conta as posições dos outros membros do coletivo.
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O pressuposto básico é que nos processos objetivos de realização de atividades nossos sentidos são acionados. Satisfazer um motivo requer ter como referência o coletivo – crenças, ética, desenvolvimento cultural etc. O critério de verdade é, assim, referenciado no mundo social, nas vivências do sujeito.

Vygotsky (2000), quando identifica no signo o instrumento mediador do desenvolvimento humano, nos dá elemento para mais um passo rumo à compreensão do nosso papel de educadores, cuja atividade pedagógica possibilita promover a mudança qualitativa nos estudantes que participam da atividade de ensino promotora do seu desenvolvimento.

Consideremos um dos conceitos mais difundidos da teoria vigotskiana, dada a relevância que passou a ter para a educação escolar: o de zona de desenvolvimento proximal – ZDP. Em suas investigações, Vygotsky procurou compreender como a cultura se torna parte da natureza humana; como se desenvolvem as funções psicológicas superiores (FPS), das quais se destacam a linguagem, a atenção, a memória e o pensamento. Observou que existe um nível de desenvolvimento da criança que ele chamou de “real”, em que se identifica capacidade intelectual já consolidada por ela. Nesse nível, a criança é capaz de resolver problemas sem o auxílio de outra pessoa. A zona de desenvolvimento proximal é caracterizada por problemas que a criança ainda não consegue resolver sozinha e necessita do auxílio de outro mais capaz. Nas palavras de Vygotski (2000, p. 113): “O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente”.

Desse modo podemos afirmar que entre o desenvolvimento real e o potencial está a necessidade das interações sociais, considerando que os processos de aprendizagem e desenvolvimento estejam inter-relacionados. Mas é preciso ficar atento a um aspecto que nos parece central: a possibilidade de o sujeito se apropriar da cultura humana está dada pela sua vivência no meio social, porém ele só mobilizará os conhecimentos que já possui diante de um problema que lhe seja significativo e que esteja dentro de suas possibilidades cognitivas. Segundo Vygotski (2000, p. 118), “o aprendizado é um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas”. Ainda segundo o autor, o ensino produz desenvolvimento psicológico na medida em que promove a apropriação das formas desenvolvidas da consciência social.

Davídov (1982, 1988), como já dissemos, também buscou em Vigotski os fundamentos de sua didática. E, para ela, o conceito de apropriação é muito relevante, pois possibilita diretrizes para a atividade de ensino.

Para Davídov e Márkova (1987, p. 322-323):

A assimilação (apropriação) não é a adaptação passiva do indivíduo às condições existentes da vida social, não é a simples cópia da experiência social, sim que representa o resultado da atividade do indivíduo destinada a dominar os procedimentos socialmente elaborados, de orientação no mundo objetal e suas transformações, procedimentos que paulatinamente se convertem em meios da própria atividade do indivíduo.
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Fica evidente, pelo exposto, a responsabilidade da instituição escolar, em especial do professor, de possibilitar experiências potencialmente mobilizadoras dos alunos, para que estes participem da atividade educativa como sujeitos em atividade de aprendizagem, ao definirem de modo consciente as ações que poderão conduzi-los ao desenvolvimento dos conhecimentos teóricos (ROSA; MORAES; CEDRO, 2010) e à apropriação do conceito que entende relevante para o seu convívio social. As características individuais de cada sujeito em atividade, as condições materiais para objetivar suas ações, o seu nível de desenvolvimento real e os conceitos a serem apropriados são todos determinantes da qualidade da objetivação da atividade.

Espaços de significação da atividade pedagógica

Conhecimento sobre a forma como se realiza a relação entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento, para que se possa empreender ações educativas efetivas, é fonte de aprendizagem para o exercício da docência. E isso requer compreender quais os principais fatores que colaboram para a otimização das relações entre sujeitos em atividade que possibilitem potencializar a apropriação de um conceito. Ao considerarmos, no presente texto, a premissa marxiana sobre o papel central do trabalho na formação humana, partimos da tese de que o professor se forma ao conceber e realizar o seu objeto principal: a atividade pedagógica. Defendemos, portanto, que formar e formar-se estão em estreita relação nos processos de constituição da profissão de professor em sua formação inicial e contínua.

Os pressupostos teóricos sobre os processos de formação humana, que apresentamos até aqui, serviram de fundamentos para a proposição e criação, no âmbito da Faculdade de Educação da USP, no início da década de 1990, do Clube de Matemática e da Oficina Pedagógica de Matemática, como espaços de formação inicial e contínua, respectivamente, de professores para a significação da atividade pedagógica. Esses espaços são exemplos de realização da formação para a docência, segundo a estrutura da atividade, na perspectiva leontieviana (MORAES, 2008). Sendo que, para nós, o que caracteriza um espaço de aprendizagem é a atividade pedagógica que ali se realiza (CEDRO; MOURA, 2007).

Atualmente, a OPM é desenvolvida na Universidade Estadual de Maringá (OPM/UEM-PR), na Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Campus de Curitiba (OPM/UTFPR) e na Universidade de São Paulo – Campus de Ribeirão Preto (OPM/RP). Os Clubes de Matemática também têm sido criados em outras Universidades, segundo os princípios teóricos e metodológicos do Clube de Matemática da Faculdade de Educação da USP. Dentre eles, têm se destacado como espaços de formação para a docência e também como campo de pesquisa, os que estão em atividade na Universidade Federal de Goiás – UFG (Goiânia), Universidade Estadual de Goiás – UEG (Quirinópolis-Goiás), Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (BOROWSKY, 2017; BIELA, 2018). A possibilidade da pesquisa nesses espaços dá-se em razão de que nas dinâmicas de suas atividades possibilitam o desenvolvimento de experimentos formativos (CEDRO; MOURA, 2017), para investigar os múltiplos e complexos fenômenos constitutivos da atividade pedagógica que ali se desenvolvem. Estar em uma atividade de formação implica estar em uma atividade organizada por alguém que a entende como propiciadora do processo de aprendizagem para a docência (MORETTI; MOURA, 2011). A consciência de que a aprendizagem se dá na dinâmica da cooperação entre indivíduos que orientam as suas ações para objetivação de seus motivos dá ao organizador de espaços de aprendizagem, como OPM e CM, a diretriz de como colocar os sujeitos em interação, para que daí se desenvolvam os processos de significação da atividade pedagógica por aqueles que a realizam.

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O exercício principal no espaço de formação é realizado no processo de planejamento e desenvolvimento da atividade pedagógica. Sendo assim, o professor em formação precisa ter acesso às condições que possam propiciar o conhecimento do que ele realizará profissionalmente. É preciso, pois, a vivência de ações planejadas para esse fim (GLADCHEFF, 2015; MUNHOZ; MOURA, 2019). A formação, compreendida como atividade, tem a mesma estrutura de toda atividade humana. Segundo Leontiev (1983, p. 123, tradução nossa, destaque do autor),

a atividade humana historicamente não muda a sua estrutura geral, sua “macroestrutura”. Em todas as etapas do desenvolvimento histórico a atividade se realiza mediante ações conscientes, nas quais se efetua o trânsito dos objetivos a produtos da atividade e se subordina aos motivos que a originam. O que muda radicalmente é o caráter das relações que enlaçam entre si os objetivos e os motivos da atividade.

No caso da atividade de ensino, esta estrutura deve considerar a complexidade da relação entre pessoas em uma atividade coletiva de formação, pois se trata de uma solução partilhada por várias concepções sobre o papel do ensino, do conhecimento e do modo como ele pode ser realizado. Esse alerta, feito por Leontiev sobre as relações entre motivos e objetivos, está presente de modo acentuado na atividade coletiva de formação. Envolve valores, sentimentos, emoções, afetos, habilidades e conhecimentos que constituem as individualidades dos participantes de uma atividade colaborativa. Tudo isso está em movimento quando colocamos estudantes juntos para organizar atividades de ensino, no que também se forma a consciência da importância do papel da coletividade. É necessário considerar, pois, o sentido pessoal (LEONTIEV, 1983) de cada indivíduo no desenvolvimento da significação de sua profissão de professor por meio de práticas colaborativas, de modo a desenvolver a consciência do que realiza, tendo como referência a ética coletivista (PETROVSKI, 1984).

Nas palavras de Leontiev (1983, p. 125, tradução nossa):

[...] Se a sensitividade externa relaciona na consciência do sujeito as significações com a realidade no mundo objetivo, o sentido pessoal as relaciona com a realidade de sua própria vida dentro deste mundo, com suas motivações. O sentido pessoal é também o que origina a parcialidade da consciência humana.

A criação de espaços formativos está atenta à estrutura da atividade, ao centrar-se no exercício da docência, em que os estudantes e ou professores formam grupos para organizar planos de ensino de conteúdos que eles escolhem em conjunto, referenciados, criticamente, na proposta curricular da escola básica. Colocar em ação o plano ideal é que lhes dará a possibilidade de, ao vivenciar a sua dinâmica, proporcionar novas formas de realizá-lo, com nova qualidade. Qualidade, essa, que será fruto das aprendizagens sobre as reflexões que vão acontecendo no desenvolvimento do plano inicial, devido às múltiplas determinações dos êxitos ou dos fracassos, que serão identificados nesse percurso.

O sentido pessoal de cada participante, certamente, é parte preponderante no desenvolvimento coletivo do que fora acordado inicialmente. Nessa perspectiva, a atividade pedagógica tem as mesmas características de uma investigação, tal como numa atividade científica e, sendo assim, também encontra os inesperados (CARAÇA, 1989). É isso que dá movimento aos processos de busca de novas formas de superar o que pode limitar a realização da atividade, tal como fora projetada. A consciência dos múltiplos e complexos fatores intervenientes, ao realizar a atividade pedagógica, foi preponderante para a formulação do que chamamos de Atividade Orientadora de Ensino (AOE), que temos defendido como possibilidade de mediação da atividade idealizada pelo professor e da atividade de aprendizagem do estudante (MOURA et al., 2017).

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A Atividade Orientadora de Ensino é toda essa dinâmica estabelecida para realizar o projeto de ensino como atividade, incluindo o aluno, ao mobilizá-lo para as ações que confiantemente realizará, na expectativa de que algo de novo e significativo aprenderá. E, como se trata do conhecimento escolar, ele deve estar imbuído da certeza de que aprenderá um conteúdo novo. Ele precisa ter identificado, no final da atividade, aquilo que esteve buscando: o conhecimento novo. E este pode ser conceito, habilidade, comportamento social etc.

Aqui, no caso do aluno da escola básica, para quem a atividade se dirige, também temos uma complexidade que deve ser observada quando se considera a possibilidade de que o estudante venha a compreender a sua participação, como sendo a realização de uma atividade. Essa complexidade tem matizes muito semelhantes àquelas que estão presentes na atividade de ensino, com aqueles sujeitos que a concebem e a colocam em desenvolvimento.

No grupo de formandos estão presentes as relações regidas por valores, ideologias, sentimentos, afetos, habilidades e conhecimentos. Isso dá a dimensão da atividade pedagógica como um processo de significação do que é a atividade do professor. Nesse processo, como já dissemos, cada indivíduo parte de uma concepção inicial do que é a atividade de ensino. Essa concepção é dada pelos conhecimentos adquiridos no curso no qual está se formando. Para isso contribuíram, entre outras, as disciplinas de didática, psicologia, metodologia e os conteúdos específicos da disciplina que irá lecionar. E mais, cada formando é portador de uma representação social do que é ser professor. Tudo isso está presente no desenvolvimento das propostas de ensino idealizadas, coletivamente, para serem desenvolvidas como ações necessárias para a concretização do estágio como pré-requisito para tornar-se professor.

São os conhecimentos acumulados durante a sua formação nas disciplinas, moldados pelo que o estagiário foi incorporando em sua história pessoal, como objeto de sua profissão de professor, que entram em movimento nas suas interações com outros que participam de sua formação. O encontro com outras concepções, com outros modos de compreender o papel da aprendizagem de um conceito, entra em jogo nas atividades partilhadas para o ensino. Assim, fator preponderante na qualidade da formação do professor é seu sentido pessoal na ação que realiza, dado que ele é responsável pela parcialidade da consciência humana.

Para o exercício da docência é necessário vivenciar plenamente a atividade de ensino. Os que estão em processo de formação, na perspectiva teórica que estamos defendendo, são orientados a criar o que chamamos de situação desencadeadora de aprendizagem (SDA) (MOURA, 2012; MOURA et al., 2017). Esta deve ser organizada em grupo, pois dessa forma é possível definir, de modo compartilhado, os conteúdos que traduzem o objetivo acordado pelo grupo para a atividade a ser realizada com os estudantes da escola básica. Assim, embora tenham funcionamentos diferentes, o CM e a OPM possuem, de certa forma, a mesma estrutura como atividade de formação. O fundamental, em ambos os casos, é o desenvolvimento de atividades de ensino, e estas podem ser materializadas na sala de aula em uma escola ou na Universidade, como acontece na FEUSP, em que os alunos da educação básica vão à faculdade. Por isso, no caso de serem materializadas na escola, não importa se é o futuro professor ou o já professor que irá desenvolver as atividades de ensino. Em ambos os casos, temos a formação do professor em desenvolvimento.

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As ações do grupo são no sentido de desencadear os processos de solução do problema que a situação apresenta. Problema, entendido como problema de aprendizagem (RUBTSOV, 1996), o que coloca o estudante em condições de se apropriar de um modo geral de ação em diferentes situações que poderá vivenciar. Por meio da situação desencadeadora de aprendizagem, o professor estabelece ações que,

ao serem desencadeadas, considerarão as condições objetivas para o desenvolvimento da atividade: as condições materiais que permitem a escolha dos recursos metodológicos, os sujeitos cognoscentes, a complexidade do conteúdo em estudo e o contexto cultural que emoldura os sujeitos e permite as interações socioafetivas no desenvolvimento das ações que visam ao objetivo da atividade – a apropriação de um certo conteúdo e do modo geral de sua aprendizagem. (MOURA et al., 2017).

O desenvolvimento da consciência sobre o papel do conhecimento a ser apropriado como resultado da atividade pedagógica é processo de aprendizagem do professor que, ao realizá-la, mediado pela atividade orientadora de ensino, conscientiza-se sobre as múltiplas e complexas relações, existentes nos processos necessários para a compreensão do conceito na sua dimensão lógico-histórica (KOPNIN, 1978).

Assim, aqueles que realizam estágio, tendo como motivo compreendido (LEONTIEV, 1988) o cumprimento de créditos para a conclusão do curso, podem ter formação de novos motivos. E isso acontece quando certas ações se tornam tão relevantes de modo a se tornar a razão de ser do que está sendo realizado. Elas passam a ser mobilizadas por motivo de nova qualidade, chamado por Leontiev (1988) de “motivo eficaz”. Se assim forem, as suas realizações passam a ser coordenadas conscientemente por um plano ideal, que considera o modo de realizá-las em consonância com as condições objetivas que as determinam e coloca o sujeito que as realiza em atitude investigativa rumo à objetivação do seu motivo. Desse modo, temos o sujeito em atividade de ensino, pois há a consciência do seu processo de trabalho, de sua atividade, que tem por meta algo idealizado e que está em processo de objetivação. Esse é o processo de formação da consciência de ser professor, dado que a atividade do homem constitui a substância de sua existência (LEONTIEV, 1983).

Conclusões (em movimento)

Em espaços formativos que se estruturam como lugar da realização da atividade pedagógica mediada pela atividade orientadora de ensino, há o movimento do aprender a ser professor, em que a significação da profissão vai sendo tecida pelos fundamentos teóricos sobre os processos de apropriação de conhecimento humano e pelo sentido pessoal dos vários sujeitos que estão em atividade. Esta vai se ajustando, se definindo, ao ser realizada, por considerar todos os sujeitos que nela tomam parte e as condições objetivas onde serão desenvolvidas. O plano ideal elaborado em conjunto pelo grupo de sujeitos em processo de formação inicial ou contínua assume uma dimensão orientadora da ação educativa. E, no seu desenvolvimento, colocado em prática, encontra diferentes formas de se efetivar como ensino e aprendizagem.

O professor, ao assumir que os estudantes são sujeitos em processo de apropriação de conceitos como desenvolvimento de significação histórico-social, e que, nesse movimento de apropriação dos conceitos, o fazem a partir de suas histórias pessoais, nas quais se incluem as suas individualidades, passa a considerar o seu objeto, a atividade pedagógica, como passível de aprimoramento devidos, em grande parte, aos conhecimentos que adquire sobre ele. E aqui vale uma observação de Leontiev (1983, p. 105, tradução nossa), quando nos alerta sobre a dinâmica relação sujeito-atividade-objeto:

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O trânsito: sujeito-atividade-objeto conforma um certo movimento circular, pelo qual poderia parecer arbitrário eleger um de seus elos como momento inicial. Porém, este movimento não se produz em círculo fechado. O círculo se interrompe e interrompe, precisamente dentro da própria atividade sensório-prática.

Aqui está a possibilidade de aprendizagem dos que estão em atividade pedagógica, quando assumem a AOE como esse modo de colocar em movimento o ensino e a aprendizagem. Em seu desenvolvimento, a AOE parte da ação consciente, direcionada pelos motivos dos sujeitos que a realizam. Assim, quando tomamos a AOE como possibilidade de objetivar o ensino e a aprendizagem de um conceito, ela assume o caráter de mediação entre a atividade de ensino e a atividade de aprendizagem desse conceito (MOURA; ARAÚJO; SERRÃO, 2018). Na atividade de formação, dá-se o trânsito: atividade de ensino-atividade orientadora de ensino-atividade de aprendizagem. A AOE, tal como nos diz Leontiev (1983), assumida como mediação, dá nova qualidade ao antes idealizado, pois as ações e as operações dos que a realizam estão em processo de análise e síntese dinamicamente, incorporando, no seu fazer, novo nível de qualidade, ao objetivar a aprendizagem de um conceito.

Para a objetivação da aprendizagem, a atividade orientadora de ensino coloca em desenvolvimento a atividade de ensino idealizada, seu motivo, as ações e as operações em concordância com as condições concretas para a sua realização. Nessa dimensão executora da atividade (ARAUJO, 2019), aparecem os inesperados. Estes, como nos diz Caraça (1989), são constitutivos do processo humano de produção de conhecimento. Tanto na educação como na atividade humana há produção de conhecimento sobre o seu desenvolvimento. Oficinas Pedagógicas e Clubes de Matemática e Ciência, como espaços de vivência do ensino e da aprendizagem, constituem espaços de formação para a docência pela dinâmica da criação do plano de ensino e de sua execução em que são consideradas as condições objetivas do seu desenvolvimento. Assim, a criação e desenvolvimento coletivo de atividades de ensino, segundo os princípios da atividade orientadora de ensino, potencializam os processos contínuos da significação da atividade pedagógica por professores e estudantes participantes dessa atividade.

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