A Nova Organização Do Ensino Médio: pontos e contrapontos
Introdução
No atual cenário da educação básica, ainda marcado pelos efeitos da pandemia da Covid-19, os sistemas públicos de ensino e as escolas (públicas e privadas) de ensino médio estão às voltas com as ações de implementação da nova organização do ensino médio (BRASIL, 2017, 2018a, 2018b). Em meio a essa tarefa vários estudos acadêmicos tensionam as orientações curriculares, os discursos e as políticas educacionais voltadas à reorganização do ensino médio brasileiro, considerando os problemas históricos que afetam esse nível de ensino, tais como: quedas sucessivas nas taxas de matrículas; alto índice de desistência e evasão escolar; ausência de professores especialistas, sobretudo para as disciplinas de química, física e biologia; baixo desempenho dos estudantes nas avaliações de larga escola (Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB e o Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM), entre outros (CUNHA, 2017; FERRETI, 2018; FERRETI, SILVA, 2017; GOMES, DUARTE, 2019; MOTTA, FRIGOTTO, 2017; SILVA, 2018).
Diante dessa realidade objetiva-se, neste estudo, apontar dados documentais e desenvolver reflexões acerca da nova organização do ensino médio brasileiro, instituída pela Lei n. 13.415 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017) que fundamentou as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2018a) e a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018b) para esse nível da educação básica. A escolha dos dados e o desenvolvimento das análises foram norteadores pela seguinte problematização: em que medida a chamada nova organização do ensino médio favorece o enfrentamento dos problemas históricos deste nível de ensino na perspectiva de garantir do direito dos jovens ao ensino médio?
Metodologicamente, o estudo está fundamentado em pesquisa documental e bibliográfica, tomando como aspectos centrais do estudo e da exposição escrita o ensino médio como política pública para educação formação da(s) juventude(s) brasileira na escola básica. O texto está subdivido em duas sessões que se complementam e se articulam em torno dos pontos e contrapontos da “nova” organização do ensino médio.
Reforma do ensino e o direito à educação
Quando se pensa no ensino médio como política pública para educação formal dos sujeitos cuja fase da vida é sociologicamente considerada como juventude (14 a 29 anos) faz-se necessário destacar que, como salienta Pais (1990), é um equívoco epistemológico e político compreender a juventude (fase da vida) e o jovem (sujeito) como uma unidade social ou como grupo etário marcado por interesses e projetos de vida comuns. Nesta direção, o autor afirma que os estudos progressistas no campo da sociologia reconhecem que,
[...] a juventude é tomada como um conjunto social necessariamente diversificado, perfilando-se diferentes culturas juvenis, em função de diferentes pertenças de classe, diferentes situações económicas, diferentes parcelas de poder, diferentes interesses, diferentes oportunidades ocupacionais, etc. [...] (p. 140).
Considerando a complexidade que envolve a concepção e o conceito de juventude é necessário ressaltar que, nos documentos norteadores da nova organização do ensino médio, fica evidenciada que concepção de juventude ali presente prima pela compreensão única e homogenia de juventude (GOMES, DUARTE, 2019). Nesse sentido, entende-se que a reforma e reorganização do ensino médio atenderá os anseios, as expectativas e perspectivas de vida e de projetos de jovens negros, brancos, indígenas, ricos, pobres, do meio urbano e rural, de norte ao sul do país. Como anunciado pelos arautos desta reforma, a reorganização dos tempos, espaços do currículo escolar tem como foco dar centralidade e protagonismo ao sujeito da aprendizagem: o estudante do ensino médio, portanto, a juventude brasileira.
Sem considerar as identidades e especificidades dos sujeitos para quais a política de reforma do ensino médio foi pensada e está sendo implementada inviabiliza, jurídica e politicamente, a garantia do direito ao ensino médio para todos os jovens brasileiros. Pois, o direito à educação não se efetiva sem a garantia do acesso, a permanência e aprendizagem significativa dos sujeitos na escola e, nem tampouco, com a imensa desigualdade social que afeta uma grande parcela de jovens brasileiros. O enfrentamento destas desigualdades exige o conhecimento e o reconhecimento das diferentes juventudes com suas diferentes demandas e necessidades sociais e educacionais. Para os estudiosos da educação, professores, estudantes e, sobretudo, gestores educacionais conhecer essa realidade/diversidade é de suma importância para que não se busque, no âmbito das políticas educacionais, “soluções” únicas, imediatas, padronizadas, uniformizadoras do currículo, dos estudantes e do trabalho docente para “maquiar” os desafios e os dualismo da escola brasileira, principalmente, a escola pública.
Segundo Frigotto (2005), em pleno século XXI, a escola brasileira, em todos os níveis, ainda não conseguiu superar o modelo dualista de educação que historicamente foi sendo construído e consolidado por meio da ação de diferentes governos: uma escola pensada e organizada para atender as camadas populares e uma para atender os filhos das elites. Esse modelo deixou como herança uma dívida quantitativa e qualidade para a escola pública, da qual o ensino médio pode ser tomado como emblema do dualismo educacional. Esse dualismo educacional evidencia também as desigualdades sociais estruturantes da sociedade capitalista brasileira que, historicamente, produz e reproduz a exclusão de parcela significativa da população.
A realidade do ensino médio no Brasil, se comparada ao ensino fundamental, evidencia o tamanho da dívida social que o Estado brasileiro tem com esse nível da educação básica, expresso na negação do direito ao acesso, à permanência e à aprendizagem, principalmente dos filhos da classe trabalhadora. Assegurar que os jovens acessem e permaneçam no ensino médio é desafio para que Brasil consiga, conforme previsto no Plano Nacional de Educação – PNE (BRASIL, 2014) universalizar o atendimento à população na faixa etária de 15 a 17 anos até 2016. Contudo, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (BRASIL. 2019), a evasão escolar continua a afetar, sobretudo, esses jovens.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad, 2019), evidenciam que, em 2018, 11,8% dos jovens estavam fora da escola, quase 1,1 milhão de pessoas. O Censo Escolar (BRASIL, 2019), elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), demostra que a evasão escolar entre os jovens matriculados no ensino médio é alarmante. Das 7,9 milhões de matrículas no ensino médio, em 2018, a taxa de evasão chegou a de 12,7% e a taxa de repetência a 15,2%. A evasão e a repetência são maiores entre os estudantes mais pobres, pretos e pardos. A realidade apreendida pelo Inep e o IBGE é expressão da desigualdade social que se materializa em diferentes espaços sociais, inclusive na escola, como parte constituinte e constitutiva da vida social mais ampla. Essa realidade foi potencializada com o ensino remoto emergencial (ERE) em contexto de pandemia e distanciamento social que impactarem diretamente o acesso, a permanência e aprendizagem de crianças, adolescentes e jovens, sobretudo, das camadas populares.
Nesse sentido, a garantia do direito à educação aos jovens e às diferentes juventudes implica o enfrentamento das desigualdades sociais e das discriminações e preconceitos étnico-raciais, de gênero e orientação social presentes na sociedade e na escola. No que se refere à desigualdade social, Frigotto afirma que,
Há, na sociedade brasileira, um tecido estrutural profundamente opaco nas relações de poder e propriedade que se move em conjunturas muito específicas, mas que, no seu núcleo duro, de marca excludente, de subalternidade e de violência, se mantém recalcitrante. Um olhar atento sobre a estrutura de classe e o desenvolvimento histórico do capitalismo no Brasil nos revelará um exemplo emblemático de sociedade que mantém uma estrutura de desigualdade brutal [...] (2005, p.8).
No Brasil, a desigualdade social, materializada em projeto de nação, é para Florestan Fernandes (1960) constitutiva e constituinte do capitalismo brasileiro. Para ele, a classe dominante, principalmente nos momentos de crises conjunturais, vai se rearticulando como estratégia de conciliação de interesses para manter a hegemonia necessária à reprodução do capital e à manutenção das desigualdades estruturantes. Para Francisco de Oliveira (2003), o desenvolvimento capitalista brasileiro se fundamentou e se alimenta da desigualdade social, portanto alimenta-se da exclusão e da exploração do homem. Seguindo as perspectivas apresentadas por esses dois estudiosos da sociedade brasileira, é possível afirmar que, a escola dualista, da educação básica ou ensino superior, é expressão desta lógica socioeconômica desigual e combinada estruturante do capitalismo no Brasil.
Segundo Frigotto (2005, p. 31), na história da educação brasileira, as políticas e a organização curricular do ensino médio evidenciam, em grande medida, a contradição fundamental entre capital e trabalho que, desde a década de 1970, se repõe e expressa um falso dilema da identidade deste nível de ensino: “formação propedêutica ou preparação para o trabalho?”. Como resposta, a este, suposto dilema, passando pela Reforma de 1971Ler: Germano (2011). à Reforma de 2017Verificar: Ferreti e Silva (2017) sobre as disputas de projetos em torno do ensino médio do Governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) ao Governo Temer (2016-2018)., o ensino médio é/foi alvo de debates e disputas que envolvem concepções de sociedade, educação e formação divergentes e, portanto, antagônicas.
Em meio a essas disputas, os idealizadores das reformas criam, como base numa concepção liberal de sociedade e de Estado, o consenso em torno da ideia que, principalmente para os filhos das camadas populares o ensino médio tem como sentido e finalidade a preparação técnica para o mercado de trabalho. Por detrás deste consenso está a lógica de que “[...] a formação profissional passa a assumir um importante papel no campo das mediações da prática educativa, no sentido de responder às condições gerais da produção capitalista” (FRIGOTTO, 2005, p. 32). Essa constatação pode ser verificada nas reformas do ensino médio no período de ditadura militar, no Governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e no Governo Lula (2003-2011) (FERRETI, SILVA, 2017).
Segundo Ferreti e Silva (2017), a ideia de que mudanças na estrutura curricular do ensino médio são necessárias para responder às necessidades e às demandas postas pelo sistema de produção ganhou centralidade nos discursos e nas ações dos idealizados da Reforma de Ensino, instituída pela Lei n. 13.415 de fevereiro de 2017, sancionada pelo Governo Temer (2016-2018) e, em fase de implementação, pelo Governo Bolsonaro (2019-2023). Desde a Medida Provisória n. 746 de 22 de setembro de 2016, reiterou-se, no âmbito do executivo federal, o discurso de que a Reforma do Ensino, além de favorecer o protagonismo juvenil na escolha do seu itinerário formativo, atenderia às novas exigências sociais do mercado de trabalho. Observou-se que, por meio de uma intensa propaganda em diferentes mídias e redes sociais acerca dos supostos benefícios da Reforma do ensino médio, foi-se produzindo consensos e adesões em torno da proposta.
As políticas educacionais do Governo Temer e do Governo Bolsonaro para educação básica têm se pautado na construção de consensos em torno da ideia de que as mudanças são respostas ao anseio da sociedade civil. No caso do ensino médio, criou-se e reafirma a mística em torno do protagonismo juvenil na escolha de seu próprio itinerário formativo, desconsiderando os limites dos próprios sistemas de ensino em implementar o que a lei determina. Sem um debate profundo, a Reforma e a reorganização do ensino médio foi/é apresentada e defendida pelo governo federal como uma estratégia importante para ampliação dos números do acesso, permanência e conclusão deste nível de escolarização e para a melhoria dos resultados dos estudantes no Exame de Avaliação do Ensino Médio (ENEM). Ideologicamente, a política educacional foi tratada como solução para os problemas do ensino médio, sem, contudo, apontar e enfrentar às questões sociais externas à escola (formação para a construção da cidadania e problemas como: desemprego, violência urbana, exclusão social, etc) que, dialeticamente interferem no cotidiano escolar e na permanência do jovem no ensino médio (FERRETI, 2018. FERRETI, SILVA, 2017).
Tal perspectiva reforça o que, até mesmo, os intelectuais do campo liberal criticam, a exemplo de Dubet (2008), de que, nas sociedades liberais se produziu um conjunto de ficções que têm por objetivo reduzir as contradições (desigualdade e injustiça) inerentes a essa sociedade. Para o autor, a ficção se materializa na medida em que, se faz da desigual performance dos alunos o produto de seu próprio mérito, oriundo de sua liberdade e de sua igualdade. Nesse sentido, a ficção mais eficaz consiste em transformar e tratar os resultados escolares dos alunos como consequência direta de seu esforço, de sua coragem, de sua atenção, do seu engajamento livre no trabalho escolar. O fracasso, nesse caso, é o resultado direto da falta de trabalho, de atenção e de seriedade dos estudantes.
Numa perspectiva crítica, o que se evidencia é que a ideia de protagonismo juvenil camufla a perversidade de se colocar nos sujeitos a culpa pelo fracasso escolar, oriundo de suas supostas liberdades de escolhas. Essa perversidade manifesta-se no que Bourdieu (2001) classifica como contradição entre esperanças subjetivas e oportunidades objetivas dos agentes.
Na busca do consenso social, capitaneada pela ideia do protagonismo juvenil e pela qualidade da escola de ensino médio, o Governo Temer e o Governo Bolsonaro apoiou-se em setores empresariais (bancos, indústrias de material didático, empresários da educação)Segundo Cerasoli (2017), a Reforma do Ensino encontrou respaldo, sobretudo nos discursos e ações da Fundação Lemann, Itaú Social, Fundação Bradesco, Organizações Globo, Instituto Unibanco, Grupo Gerdau, Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton Senna, entre outros. para busca de adesões junto aos sistemas de ensino. Atualmente, esses setores são os grandes parceiros do governo na implementação da nova organização do ensino médio. No processo de elaboração e apresentação dos pontos centrais da reforma, o Ministério da Educação (MEC) ocultou, ou, de certa forma, negou a importância da participação de professores, entidades de pesquisas, universidades, sindicatos dos trabalhadores da educação no debate em torno da reforma e de suas implicações para a formação da juventude brasileira, público-alvo da política educacional proposta, e para a formação e a profissão docente.
A nova organização do ensino médio: pontos e contrapontos
Para fins da análise da nova organização do ensino serão destacados a seguir alguns pontos da Reforma do Ensino, instituída pela Lei n. 13.415 (BRASIL, 2016) cujos desdobramentos podem ser observados na Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2018a) e na BNCC (BRASIL, 2018b).
- Ampliação da Jornada Escolar em escolas de tempo integral. O ensino médio, em conformidade com a atual legislação, passou de 800horas/anuais para 1.400, mantendo a obrigatória de 2000 dias letivos, conformes já previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
- Organização do Currículo escolar. O currículo deverá ser estruturado por meio de cinco (5) Itinerários Formativos: Linguagens, Matemática, Ciências da natureza, Ciências Humanas; e Formação Técnica e Profissional.
- Obrigatoriedade das disciplinas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Matemática. As demais disciplinas serão cursados pelos estudantes, conforme a escolha dos itinerários formativos.
- Autorização do notório saber para exercício da docência no Itinerário Formativo de Formação Técnica e Profissional. Abre-se também a possibilidade dos sistemas de ensino e das escolares estabelecerem parceria com instituições privadas para oferta deste itinerário, conforme pode ser verificado no Artigo 36, Parágrafos 6º ao 12º.
§ 6oA critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação com ênfase técnica e profissional considerará:
I - a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional;
II - a possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade.
§ 7o A oferta de formações experimentais relacionadas ao inciso V do caput, em áreas que não constem do Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos, dependerá, para sua continuidade, do reconhecimento pelo respectivo Conselho Estadual de Educação, no prazo de três anos, e da inserção no Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos, no prazo de cinco anos, contados da data de oferta inicial da formação.
§ 8o. A oferta de formação técnica e profissional a que se refere o inciso V do caput, realizada na própria instituição ou em parceria com outras instituições, deverá ser aprovada previamente pelo Conselho Estadual de Educação, homologada pelo Secretário Estadual de Educação e certificada pelos sistemas de ensino.
§ 9o. As instituições de ensino emitirão certificado com validade nacional, que habilitará o concluinte do ensino médio ao prosseguimento dos estudos em nível superior ou em outros cursos ou formações para os quais a conclusão do ensino médio seja etapa obrigatória.
§ 10. Além das formas de organização previstas no art. 23, o ensino médio poderá ser organizado em módulos e adotar o sistema de créditos com terminalidade específica. § 11. Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:
I - demonstração prática;
II - experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III - atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas;
IV - cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V - estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras;
VI - cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.
§ 12. As escolas deverão orientar os alunos no processo de escolha das áreas de conhecimento ou de atuação profissional previstas no caput.” (NR) (BRASIL, 2017b).
- Aproximação entre o ensino médio e o mercado de trabalho. Os idealizados da reforma apostam que o novo desenho curricular favorecerá a preparação dos jovens, sobretudo das camadas populares para o mercado de trabalho, sem que seja necessária uma formação no ensino superior.
De acordo com Cunha (2017), a Medida Provisória que instituiu a Reforma do Ensino médio, ao trazer no itinerário de formação técnica, acaba distanciando esse itinerário dos quatro anteriores de formação propedêutica. Nesse sentido, abre precedentes para algumas escolas, sobretudo, as privadas continuarem formando para ingresso ao ensino superior e outras formando para inserção imediata ao mercado de trabalho. Dessa forma, “[...] retorna, assim, a antiga concepção do Ensino Médio como preparação para o Ensino Superior para uns, e formação para o trabalho para outros (p. 379).
Cunha afirma que, por traz desta lógica de organização do ensino médio está em curso uma política educacional “contenedora” dos estudantes pobres. Nesta lógica, o ensino médio é compreendido como um marco de terminalidade dos estudos escolares de uma grande parcela dos jovens brasileiros oriundos da classe trabalhadora. Para estes a formação técnica seria o suficiente e o necessários para ocupação de postos de trabalhos em conformidade com as demandas imediatas e imediatas do mercado. Reitera-se, pois, a lógica dualista de escola citada por Frigotto (2005) e que, portanto, de “nova” não apresenta nenhuma novidade, pelo contrário, pega, segundo Cunha (2017), “um atalho para o passado” expresso na reforma do ensino médio, realizada em 1968, no auge do período da ditadura militar (1964-1985).
Nesse sentido, mesmo, em fase de implementação, a Reforma e a “nova” organização pelo que anuncia e propõe para educação formação dos jovens brasileiros foi/é objeto de crítica e embates expressos em discursos favoráveis e contrários à proposta. Estudiosos do ensino médio (CUNHA, 2017; FERRETI, 2018; FERRETI, SILVA, 2017; GOMES, DUARTE, 2019, MOTTA, FRIGOTTO, 2017, SILVA, 2018) alertam quanto às concepções e as implicações da nova organização para a escola, para os profissionais da educação, para a educação e a sociedade brasileira. Entre as críticas apresentados ressaltam-se:
- O não enfrentamento dos problemas históricas do ensino médio e da escola pública de educação básica. A Reforma, como foi pensada e está sendo implementada, não enfrenta os problemas históricos e estruturais da escola pública brasileira, tais como: Falta de professores habilitados, sobretudo nas áreas de Biologia, Física, Química e Matemática; Precariedade da estrutura física das instituições escolares; desvalorização da formação e da profissão docente; Pouca atratividade da docência; Ausência de políticas públicas que favoreçam à permanecia dos jovens da classe trabalhadora na escola de tempo integral; Melhoria da qualidade do ensino fundamental (1º ao 9º ano); Universalização da educação infantil.
- Ausência de participação popular na elaboração da proposta. A proposta, na fase de elaboração e aprovação, não foi objeto de discussão e de consulta pública. Todo o processo foi caracterizado pela ausência de participação de professores, alunos e de instituições de ensino superior de formação docente.
- Atrelamento do ensino médio ao mercado de trabalho. Discurso hegemônico aliando e articulado às demandas e à lógica de mercado, sobretudo no que se refere o sentido e a finalidade do “Itinerário de Formação Técnica”.
- Hegemonia de determinadas disciplinas em detrimento de outras. Desvalorização das disciplinas, sobretudo da área de humanas, artes e educação física. Uma perspectiva curricular que negligencia ou nega a importância das ciências humanas e das linguagens artísticas e corporais na formação dos estudantes, numa proposta de escola de período integral que se dizem comprometida com a formação integral dos sujeitos.
- Padronização de um modelo único de ensino médio por meio de uma orientação curricular que desconsidera a realidade socioeconômica das diferentes regiões brasileiras. A transformação do ensino médio numa mercadoria disputada pelo mercado nacional e internacional de educação, representada por grupos empresariais com experiência no investimento financeiro no ensino superior.
- Desvalorização da formação e da profissão docente. Ao permitir que professores com notório saber assumam a regência de sala no ensino médio, no Itinerário de Formação Técnica, o governo, de certa forma, legitima a contratação de leigos para o exercício da docência, desconsiderando as lutas e as conquistas históricas da categoria na defesa da formação e da profissão docente.
- Pouco investimento financeiro do governo federal para custear a implementação da proposta. Até o momento, o governo federal ainda não apresentou quais as fontes de recursos financiaram a reforma do ensino médio em escolas de tempo integral, considerando que por meio da Emenda Constitucional n. 95 (BRASIL, 2017), o governo federal congelou os gastos públicos, principalmente nas áreas sociais (educação, saúde, previdência, seguridade e assistência social) por vinte (20) anos. Dessa forma, nos induz a afirmar que os sistemas públicos de educação se adequarão as determinações da lei de forma improvisada e precária, portanto na contramão da qualidade anunciada pelos reformadores.
- A formação técnica e profissional como solução para empregabilidade dos jovens pobres, em detrimento da formação integral e interdisciplinar. A formação técnica como marco da terminalidade da escolarização deste grupo social.
- A ocultação da relação entre a desigualdade social e desigualdade educacional. Pesquisas evidenciam (CIAVATTA, 2005; FRIGOTTO, 2005) que a desigualdade social implica diretamente no acesso, na permanência e a na aprendizagem do jovem das camadas populares no ensino médio. Contudo, os idealizadores da reforma apostam nas capacidades individuais dos sujeitos para alcançar os objetivos anunciados, não expressando nenhuma preocupação com a construção da cidadania e da justiça social, mesmo que dentro de uma perspectiva liberal clássica.
Essas críticas, mesmo considerando que, a Reforma do Ensino Médio, ainda esteja em processo de implementação, evidenciam que as políticas educacionais em curso para o ensino médio, mesmo que precedidas por um discurso de qualidade em educação, protagonismo juvenil e justiça social, estão inseridas e articuladas a uma lógica capitalista de sociedade e de Estado neoliberal. Nesta lógica, o Estado deve ser mínimo para as demandas da área social e máximo para o capital, sobretudo o financeiro mundializado, portanto na contramão da justiça social liberal e bem distante da ideia de emancipação humana defendida pelos pensadores críticos da educação.
Assim, a reforma e a nova organização do ensino médio, considerando as bases teóricas e políticas que a sustenta, não tem potencialidade pedagógica para contribuir com a formação integral e integradora dos sujeitos, nem mesmo para uma formação de sujeitos para a construção cidadania e da justiça social. Para Ciavatta (2005, p. 98),
O primeiro pressuposto da formação integrada é a existência de projeto de sociedade no qual, ao mesmo tempo, se enfrente os problemas da realidade brasileira, visando a superação do dualismo de classes, e as diversas instâncias responsáveis pela educação (governo federal, secretariais de educação, direção das escolas e professores) manifestem a vontade política de romper com a redução da formação à simples preparação para o mercado de trabalho.
Uma proposta de ensino médio, fundamentada numa perspectiva crítica e emancipadora do homem, que prepare os sujeitos para o exercício da cidadania e para sua prática produtiva no mundo trabalho (e não meramente para o mercado), necessariamente deverá estar articulada a um projeto de sociedade democrática e igualitária. Nessa direção, Frigotto (2005), afirma que uma proposta de ensino médio que integre conhecimentos científicos-culturais e a prática de trabalho
[...] busca romper com a dicotomia entre educação básica e técnica, resgatando o princípio da formação humana em sua totalidade; em termos epistemológicos e pedagógicos, esse ideário defendia um ensino que integrasse ciência e cultura, humanismo e tecnologia, visando ao desenvolvimento de todas as potencialidades humanas. Por essa perspectiva, o objetivo profissionalizante não teria fim em si mesmo nem se pautaria pelos interesses do mercado, mas constituir-se-ia numa possibilidade a mais para os estudantes na construção de seus projetos de vida, socialmente determinados, possibilitados por uma formação ampla e integral (p. 36).
Nesse projeto emancipatório de sociedade e de formação humana, os conhecimentos escolares são os meios para a formação integral dos estudantes num movimento de articulação da educação formal à prática social e ao mundo trabalho. Contudo, de acordo com Frigotto (2005), a adequação do Estado brasileiro, na década de 1990, à lógica de gestão e regulação neoliberal tive incidência direta na organização da educação escolar, impulsionando um processo de exclusão social dos jovens pobres à educação básica. No âmbito das políticas educacionais, a Reforma do Ensino médio do Governo Temer, premida também pela lógica neoliberal, contribuiu para agudizar ainda mais o processo de exclusão dos jovens trabalhadores desse nível de ensino.
Os movimentos sociais juvenis e de defesa da educação pública foram desconsiderados e desqualificados, em nome da suposta qualidade da educação. Nesse projeto educacional, o objetivo da educação não se configura como elemento propulsor de cidadania, de participação efetiva dos cidadãos na política e social, mas de preparação exclusiva para o mercado de trabalho. Portanto, caminha na contramão do direito à educação e a ideia de justiça social construída, desde 1948, com a declaração dos direitos humanos, mesmo em sua perspectiva burguesa e liberal.
Considerações finais
Entre os pontos e contrapontos da “nova” organização do ensino médio consta-se que, no campo das políticas educacionais, a lógica neoliberal anunciada e assumida, não coaduna com a ampliação do protagonismo juvenil, considerando a diversidade de sujeitos, e com a responsabilização do Estado na garantia do direito a educação às diferentes juventudes. Na verdade, confirma o caminho inverso, qual seja, o da exclusão de grande parcela da juventude trabalhadora do acesso, permanência e aprendizagem na escola de ensino médio. Nesse projeto de Estado e de sociedade, sintetizado no texto da Reforma (BRASIL, 2017), o modelo de formação escolar, necessariamente deve estar voltado para o fornecimento de mão-de-obra técnica para o mercado de trabalho.
Nessa perspectiva, o que está em questão é como a educação básica poderá estar a serviço da preparação de sujeitos que atendam às novas demandas do mercado, inclusive por meio do desemprego e do consumo. Não se trata, portanto, de incluir a população nos benefícios materiais e simbólicos produzidos pelo mundo global, mas de evitar que parte dela não se constitua numa classe perigosa, em um mundo de desemprego, de precarização do trabalho, de racismos, xenofobismos e várias formas de injustiças sociais.
Sobre a autora
MARCILENE PELEGRINE GOMES • Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora Adjunta da UFG, atuando como professora e pesquisadora na área de políticas educacionais e fundamentos da educação. Vice-diretora da Associação Nacional de Política e Administração da Educação – ANPAE/Seção Goiás. E-mail: professoramarcilene@ufg.br Link do Lattes http://lattes.cnpq.br/5331483162797865
Referências
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