Os Circuitos do Empresariamento da Educação Pública em Goiás e o Pacto pela Escolarização: Implicações para o Trabalho Docente
O empresariamento da educação pública como política - considerações iniciais
A análise dos circuitos de desenvolvimento do capitalismo em Goiás, especialmente após sua inserção no movimento de internacionalização do capital globalizado, não pode desconsiderar, em nenhum momento, que a educação formal é parte estrutural deste processo, sendo uma das condições gerais de produção necessárias à reprodução ampliada do capital na lógica da acumulação flexível. Essa tese está melhor desenvolvida na obra “Armadilhas no Labirinto: escolarização e trabalho docente desafiados pelo pacto da educação em Goiás” (ALMEIDA, 2018).
A leitura do desenvolvimento da economia e da política goianas, fundamentada nas teorias do desenvolvimento desigual e combinado (OLIVEIRA, 1987) e na categoria acumulação flexível do capital (HARVEY, 1993), evidencia que o estado de Goiás não é totalmente atrasado ou simplesmente moderno. É, de fato, ao mesmo tempo, atrasado e moderno, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento econômico e produtivo. Isto é, o mais desenvolvido (industrialização induzida do agronegócio) se alimenta do menos desenvolvido (atraso político e cultural) e se tornam um mesmo movimento que se entrelaça e forma uma totalidade necessária à reprodução do capital (ALMEIDA, 2018).
As reformas implementadas na educação escolar estadual, especialmente a partir de 2011, são constantemente justificadas pelos aspectos positivos que trazem ao desenvolvimento econômico e produtivo do estado, com ênfase na necessidade de inovação técnica e tecnológica permanente, que se deve buscar em todos os setores da economia e na educação. Aparentemente, a inovação técnica e tecnológica seria o cerne das reformas educacionais, mas, na essência, sob a égide da acumulação flexível, a escolarização vai sendo modificada estruturalmente ‒ conteúdos, metodologias de ensino e formas de avaliação ‒, objetivando atender as demandas do capitalismo no seu movimento real de reprodução e desenvolvimento.
No Brasil, o empresariamento da educação se intensificou a partir da constituição da organização Todos pela Educação (TPE). Trata-se de um movimento empresarial que tem interferido sistematicamente nas políticas de educação básica e de formação de professores, contribuindo enormemente para a materialização da teoria do antivalor na realidade econômica e política brasileira, a destruição dos direitos sociais e a privatização da educação pública (OLIVEIRA, 1998).
Esses reordenamentos das políticas sociais são fundamentais à manutenção e ao desenvolvimento do regime de acumulação flexível. Agências internacionais como UNESCO, Banco Mundial (BM) e Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), assim como organizações empresariais nacionais como Confederação Nacional da Indústria e do Comércio e o TPE, defendem reformas estruturais no campo educacional, apregoando a urgente necessidade de a escolarização se alinhar ao pensamento empresarial, bem como aos seus valores, sentimentos e atitudes perante o projeto de desenvolvimento neoliberal.
O que se consolidou na conjuntura internacional dos últimos 30 anos foi a construção de um consenso em torno de uma concepção de escolarização totalmente vinculada à ideia de que, por meio da escola, será possível alcançar o mesmo patamar de desenvolvimento técnico e tecnológico dos países do centro do capitalismo, totalmente subordinada à ideologia neoliberal, no que diz respeito ao entendimento de como deve ser a formação de uma pessoa.
75Agentes importantes, como os organismos internacionais, as corporações, os bancos, as empresas e os governos se organizaram num movimento amplo e opressivo e dominaram o debate educacional das décadas de 1990 e 2000. Impuseram, ainda, suas ideias e concepções educativas na elaboração, gestão e implementação de reformas educacionais de cunho neoliberal em diversos países, dentre eles, o Brasil.
A Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada na Tailândia no ano de 1990, é apontada por muitos estudiosos como o marco inicial desse amplo movimento a que se assistiu consolidar-se. Financiada UNESCO, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo BM, a conferência contou com a participação de governos de 155 países, além de inúmeras agências multilaterais, organizações não governamentais e associações educativas (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2007).
Foi a partir da Conferência Mundial Educação para Todos que a organização “Todos pela Educação” foi formada em estreita articulação com a Rede Latino-americana de Organizações da Sociedade Civil para a Educação (REDUCA). A REDUCA é formada por organizações sociais de 14 países latino-americanos e se apresenta, em seu repertório, com objetivo de participar ativamente dos processos e práticas educativas formais e contribuir para a construção das políticas educacionais dos países da América Latina.
Entendemos o Pacto pela educação em Goiás como síntese da política educacional, resultado da articulação e o entrelaçamento da esfera pública com a iniciativa privada, sobretudo a partir dos anos 1990, em níveis que abrange o regional, o nacional e o internacional, envolvendo governos, o empresariado e organismos internacionais como BM e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Esse artigo discute as tramas econômicas e políticas que atravessam o Pacto pela educação em goiás e seu caráter empresarial.
Todos pela Educação, parcerias público-privadas e reforma educacional goiana
Em nosso entendimento o pacto é síntese das articulações de interesses políticos, econômicos, empresariais e educacionais nos quais se apresenta uma concepção de trabalho docente praticista e a escolarização como sinônimo de treinalidade, revelados através das análises das diretrizes da reforma educacional goiana e outros documentos em recente pesquisaA pesquisa Armadilhas no labirinto: escolarização e trabalho docente desafiados pelo pacto da educação em Goiás analisa o Circuitos de Gestão do Instituto Unibanco, o Programa Reconhecer da Secretaria do Estado da Educação, Cultura e Esportes (SEDUCE), o Currículo Referência do Estado de Goiás como mecanismos de controle e gerenciamento do trabalho docente e da escolarização dos goianos. Trata-se de uma tese de doutorado, defendida na Universidade Federal de Goiás, no ano de 2018. O autor defende que o trabalho docente se tecnificou e a escolarização se constituiu como treinalidade reificada. No limite, de sua análise o trabalho docente tecnificado e a escolarização como treinalidade se constituem como eficazes elementos no processo de reificação (ALMEIDA, 2018). (ALMEIDA, 2018). Esse entrelaçamento se materializou em Goiás por meio da organização Todos pela Educação, momento de constituição de um novo contrato em torno da escolarização, no ano de 2006 (PIRES, 2015).
76A gestão do Pacto pela Educação envolveu os meios de comunicação de massa, o governo de Goiás, grupos de políticos de diferentes partidos aliados do governo, organizações sociais, empresários e educadores goianos que acreditam nas propostas apresentadas pelos articuladores da organização TPE no Estado.
O comitê regional do TPE foi criado no dia 20 de dezembro de 2007, na Sede da Associação Comercial e Industrial de Goiás (ACIEG), pelo então Deputado Estadual Thiago Peixoto (PMDB), a Deputada Federal Raquel Teixeira (PSDB), a Professora Eliana França (ex-secretária de Estado da Educação de Goiás) e o então Senador Marconi Perillo (PSDB).
No evento de fundação, a educação de qualidade foi apresentada pelos articuladores da organização TPE em Goiás. Thiago Peixoto ressaltou o caráter suprapartidário da iniciativa e afirmou: “A Educação de qualidade a ser proporcionada pelo movimento vai gerar benefícios a curto, médio e longo prazo. Podemos citar a redução da criminalidade, o crescimento econômico e o desenvolvimento social”Disponível em: https://portal.al.go.leg.br/noticias/ver/id/65161/tipo/gabinete/thiago+articula+todos+pela+educacao+em+goias. Acesso em: 20 abr. 2017..
O fato revela três detalhes importantes para pensarmos os interesses por detrás do lançamento do comitê regional: o consentimento em torno da proposta educacional da organização TPE, capaz de aproximar tradicionais partidos de oposição, o então PMDB e o PSDB em Goiás; a afirmação de que a educação proposta pela organização TPE é de qualidade e o fato do lançamento ser na sede da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Goiás (ACIEG) em Goiânia e não em outro lugar.
Na aparência, PMDB e PSDB são partidos de oposição na arena política do Estado de Goiás, mas na essência são tradicionais partidos agremiadores de grupos políticos conservadores e reacionários que defendem os interesses comuns do capital. É nesse sentido que a participação de Thiago Peixoto na formação do comitê da Organização Todos pela Educação expressa interesses comuns na educação pública em Goiás que vão muito além das siglas partidárias.
Ao afirmar que a educação da organização Movimento Todos pela Educação é de qualidade e traria benefícios como redução da criminalidade, crescimento econômico e desenvolvimento social, o político Thiago Peixoto expressa uma concepção de educação comum à teoria do capital humano. A escolarização, nesta perspectiva, é considerada mola propulsora do desenvolvimento econômico e social e, no mesmo movimento, instrumento garantidor da coesão social.
Educação de qualidade seria aquela que propicia o crescimento do capital e seu intrínseco processo de acumulação, bem como o desenvolvimento da sociedade burguesa. É o desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção necessárias ao capital, porém com intensificações dos processos de escamoteamento das estruturas de exploração capitalistas.
A criação do comitê na sede da ACIEG, e não em outro lugar, sinaliza que o empresariado goiano dos três setores da economia tem interesses nos processos de escolarização dos goianos. A ACIEG é uma organização, cujo objetivo principal é a defesa dos interesses políticos e econômicos do empresariado goiano, que se entrelaçam.
77O pilar de atuação da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Goiás (Acieg) é a defesa incondicional do empresariado e dos princípios de organização e união para vencer os novos desafios em um mundo globalizado e competitivo. A história empresarial de Goiás é a própria história de lutas e conquistas da Acieg, iniciada em 1937. Com uma trajetória gloriosa, a Entidade está voltada para o presente e o futuro do nosso EstadoDisponível em: https://acieg.com.br/apresentacao. Acesso em: 07 maio 2018..
Desse modo compreendemos que o Pacto pela Educação, deflagrado pela organização TPE em Goiás, é, sobretudo, empresarial, e manifestou-se como produto de articulações entre pessoas vinculadas ao mundo dos negócios capitalistas. Isto é, os empresários interessados nos fundos públicos, bem como nos processos de escolarização dos goianos, para perceber a educação como mercadoria e meio para obter lucros.
No Brasil, a escolarização passou a ser apresentada não mais como direito público subjetivo, propriedade social exclusiva do Estado, ou, como defendeu Oliveira (1998), antimercadoria, salário indireto formado através da lei do antivalor, mas como serviço a ser ofertado por atores da “sociedade civil”. Como exemplos, temos as organizações sociais, organizações não governamentais e projetos vinculados a fundações empresariais, especialmente aquelas ligadas ao capital financeiro, como a Fundação Bradesco, o Instituto Unibanco ou Instituto Ayrton Senna.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, a educação é um direito social, assim como a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Além de ser um direito na carta constitucional, a educação é dever do Estado e da família. O dever do Estado se efetua mediante a garantia do acesso ao ensino fundamental, obrigatório e gratuito, que por força da lei constitucional tornou-se, no Estado brasileiro, direito público subjetivo (BRASIL, 2000).
O que temos que perceber é que se constituíram significativas mudanças nas legislações que dizem respeito ao terceiro setor, posteriores à promulgação da Constituição de 1988, que possibilitaram a participação das OS, ONGs, OSCIP e das fundações nos processos de escolarização, além do acesso aos fundos públicos por meio das parcerias público-privadas (PPP) Leis Federais: LEI N° 9.637, DE 15 DE MAIO DE 1998: Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências. LEI N° 11.079, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2004: Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. DECRETO Nº 7.594, DE 31 DE OUTUBRO DE 2011: Altera o Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007, que dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse. LEI N° 9.790, DE 23 DE MARÇO DE 1999: Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Leis estaduais: LEI Nº 14.910, DE 11 DE AGOSTO DE 2004: Dispõe sobre a instituição do Programa de Parcerias Público-Privadas, da constituição da Companhia de Investimentos e Parcerias do Estado de Goiás e dá outras providências. LEI Nº 15.503, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2005: Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais estaduais, disciplina o procedimento de chamamento e seleção públicos e dá outras providências..
78No caso do estado de Goiás, as parcerias firmadas com a Fundação Ayrton Senna, que implementou os Programas “Acelera” e “Se liga” entre os anos de 1999 a 2004 e com o Instituto Unibanco, com implementação do Projeto Jovem de Futuro – Circuito de Gestão, exemplificam o processo de privatização do público e de acesso aos fundos públicos que são destinados à iniciativa privada.
A parceria com o Instituto Ayrton Senna foi obtida com a implementação dos programas Se Liga, de alfabetização, e Acelera Brasil, de aceleração da aprendizagem. O relatório da Controladoria Geral do Estado (CGE) mostra que só no ensino médio foram aplicados R$ 6.943.989,35 reais para atender aproximadamente 23.000 alunos nesses programas em parcerias público-privadas pagas com o dinheiro público (SILVA; SIQUEIRA, 2016).
No ensino médio, realizou-se a parceria da Secretaria de Educação com o IU quando foi implantado o Projeto Jovem de Futuro. Em 2012, o instituto realizou seminário de capacitação da equipe gestora com 220 profissionais que subsidiariam a implantação e execução do projeto (entre coordenadores, supervisores, diretores e professores). Consequentemente, no mesmo ano, nas cidades de Goiás e Pirenópolis, foram realizadas oficinas de capacitação, que atenderam 1.490 profissionais (SILVA; SIQUEIRA, 2016).
Essas parcerias exemplificam formas discretas de redirecionar os fundos públicos à iniciativa privada. “Ao contrário do que apresentam, esses programas oferecidos pelas empresas e fundações prestadoras de serviços educacionais e contratados pela Secretaria Estadual, são pagos com as verbas da educação públicas” (SILVA; SIQUEIRA, 2016, p. 273).
O papel do Estado nesses acordos é de colocar os fundos públicos ao dispor dos “novos” agentes (ONGs, Fundações e OSCIP) para que realizem atividades privadas, porém de interesse público. É o Estado que qualifica essas entidades, afirmando o reconhecimento de sua capacidade técnica para atuar em parceria ou celebração dos contratos de gestão firmados.
No campo das políticas públicas, o pacto consolida a indistinção entre a esfera pública e a iniciativa privada e, no mesmo movimento, revela a desresponsabilização do Estado com a educação pública. Isto se efetiva com a transferência de atividades como gestão do trabalho pedagógico e outras atividades no âmbito do ensino, bem como o redirecionamento dos fundos públicos em favor da iniciativa privada e do seu projeto educacional. O processo de redirecionamento dos fundos públicos é uma forma fragmentada e parcelar, através das parcerias, dos programas e dos projetos vinculados às entidades do terceiro setor.
Com a justificativa da busca pela qualidade da educação nos diferentes níveis e modalidades, associada ao discurso da redução das desigualdades educacionais, vários programas e ações foram implementados na rede pública de ensino, em parceria com entidades públicas não estatais. As parcerias firmadas com o Instituto Ayrton Senna, a Fundação Banco Itaú e o IU exemplificam esse processo de privatização da educação pública.
Por um lado, essas parcerias revelam que partes dos fundos públicos são destinados a instituições educacionais regidas pelo direito privado, que fazem parte do terceiro setor e são chamadas de organizações públicas não estatais. Por outro, existe um ocultamento dos reais sentidos das parcerias público-privadas: um projeto econômico e político maior de desregulamentação do Estado e de efetiva privatização dos processos de escolarização que se realiza a conta gotas e de forma sutil.
79As organizações do terceiro setor se apresentam como alternativas frente às instituições públicas de Estado (muitas vezes consideradas burocráticas e ineficientes) e as instituições privadas do mercado (consideradas como aquelas que só desejam lucrar). Uma espécie de terceira via entre as instituições públicas e as que atuam na iniciativa privada.
A realização dessas parcerias público-privadas só se tornou possível pela disseminação da ideologia neoliberal como parte das estratégias de dominação hegemônica. A escola pública é apresentada como exemplo de instituição de formação considerada precária, marcada pela ineficiência e insolência, em contraposição à escola privada, considerada empreendedora, eficiente e inovadora. Por muito tempo o setor público foi objeto de depreciação, taxado de ineficiente em detrimento do setor privado.
A idéia-força balizadora do ideário neoliberal é a de que o setor público (o Estado) é responsável pela crise, pela ineficiência, pelo privilégio, e que o mercado e o privado são sinônimo de eficiência, qualidade e equidade. Desta idéia-chave advém a tese do ‘Estado mínimo’ e da necessidade de zerar todas as conquistas sociais, como o direito à estabilidade de emprego, o direito à saúde, educação, transportes públicos, etc. Tudo isso passa a ser regido pela férrea lógica das leis de mercado. Na realidade, a ideia de ‘Estado mínimo’ significa o Estado suficiente e necessário unicamente para os interesses da reprodução do capital (FRIGOTTO, 1999, p. 83).
Nesse sentido, a política educacional em desenvolvimento, a partir de diversas ações governamentais, se coaduna com os interesses do capital na preparação da força de trabalho e na lógica das empresas capitalistas. No mínimo a escola e a educação escolar seriam geridas utilizando os conceitos e práticas do mundo dos negócios, isto é, o atravessamento do capital na escola e a reestruturação pedagógica do capitalismo por meio dos processos de escolarização.
A análise de Araújo Júnior (2013) se fundamenta em elementos estruturais dos aspectos pedagógicos e econômicos em suas relações. De acordo com o autor, o pacto é o começo para a construção de um novo modelo de escolarização, cujo objetivo principal é atender as demandas educacionais no Estado de Goiás, em consonância com a lógica da acumulação flexível e os princípios pedagógicos empresariais.
É nesse sentido que Araújo Júnior (2013) defende que o Pacto pela Educação é a concretização no espaço educacional do estado de Goiás, das necessidades criadas pela reestruturação administrativa originada na mais recente fase da modernização do Estado brasileiro.
A expansão do terceiro setor foi resultado da reforma do Estado brasileiro. É a síntese do movimento social que abrange os complicados tensionamentos entre sociedade civil e Estado, a partir das disputas e dos interesses em torno dos direitos de cidadania, dos desdobramentos da constituição de 1988 e da formação de novos cenários e tendências que articulam as ONGs, OSCIP e fundações privadas (CRUZ, 2005).
No estado de Goiás, a reforma administrativa foi idealizada a partir dos princípios de governança construídos para afirmar os interesses do privado em detrimento do público. A reforma possibilitou a objetivação do alargamento das fronteiras entre o público e o privado, por um lado, e o estreitamento da relação no estabelecimento das parcerias entre o Estado e a iniciativa privada, por outro (CRUZ, 2005).
80O empresariamento da educação pública e as implicações para o trabalho docente
O trabalho é a atividade que constitui o ser humano. Na superação dos limites impostos pela natureza, por meio do trabalho se tornou possível o desenvolvimento superior do homem, ao se relacionar com os outros homens e com a natureza, transformando-a e transformando a si próprio e produzindo cultura (MARX, 1984; LUKÁCS, 1989).
Entendemos que a centralidade do trabalho, e conse-quentemente, das classes sociais e da classe trabalhadora para a compreensão dos fenômenos humanos da atualidade é indispensável. Não se pode falar em “fim do trabalho” num momento em que os trabalhadores são expropriados de seus direitos e explorados no grau máximo de suas capacidades laborativas. No caso do trabalho docente, segundo Silva e Limonta (2013, p. 176), "(...) tal subordinação tem se agravado na medida em que se aprofunda a divisão do trabalho na escola e as complexas relações entre formação e trabalho são ocultadas numa simples equação: o professor precisa apenas adquirir capacidade de transmissão de certas informações via determinadas técnicas". Nesse sentido, o trabalho docente é impactado pelo processo de empresariamento da educação.
O trabalho docente é uma atividade complexa desenvolvida por um sujeito que deve possuir determinados conhecimentos que lhe tornem capaz de realizar ações de ensino, de modo a prover elementos que promovam o processo de aprendizagem e desenvolvimento, ou seja, a formação de outros sujeitos, por meio do processo de ensino e aprendizagem da cultura em geral e mais particularmente dos conhecimentos científicos historicamente acumulados pela humanidade. A complexidade do trabalho docente não está apenas na atividade de ensinar algo a alguém, mas também por se constituir como uma profissão mediada por relações historicamente humanas e isso exige para além de competências técnico-científicas uma sólida formação teórico-conceitual, política, cultural e ética, que possibilite um claro posicionamento político, articulado às finalidades educativas (CAMARGO; ROSA, 2018).
O empresariamento da educação pública por meio de diferentes "circuitos", como evidenciamos anteriormente (avaliação e currículo padronizados; remuneração por mérito e implantação do circuito de gestão) formam um conjunto de proposições e medidas que gerenciam e controlam o trabalho pedagógico.
O processo de empresariamento da educação afeta diretamente o trabalho docente e recaem sobre os professores exigências para que a escola responda de maneira rápida e eficiente às nem tão "novas" exigências do mundo do trabalho. Para nós, quando o trabalho educativo se reduz à formação de habilidades estreitamente vinculadas ao mundo do trabalho, não é possível realizar o pleno desenvolvimento de todas as capacidades humanas.
A ênfase dada à formação para o mercado de trabalho e as exigências que os setores produtivos fazem aos sistemas escolares, na realidade, como fica claro no processo de empresariamento da educação pública, objetivam que a escola realize uma formação mínima, que não precisa ser ampla e profunda, muito menos clássica e científica, mas sim que leve à aquisição de habilidades e hábitos que sirvam para a adequação das pessoas à ordem produtiva.
81Há hoje um grande contingente de alunos, procedentes das camadas populares que vivem o seu ocaso no interior das escolas, desacreditados nas salas de aula ou relegados a programas de recuperação, aceleração, progressão continuada e/ou automática, educação de jovens e adultos, pseudo-escolas de tempo integral, cuja eliminação da escola foi suspen- sa ou adiada e aguardam sua eliminação definitiva na passagem entre ciclos ou conjunto de séries, quando então saem das estatísticas de reprovação, ou em algum momento de sua vida escolar onde a estatística seja mais confortável (FREITAS, 2007, p. 968).
O sentido do trabalho docente não estaria no mercado de trabalho, mas na práxis educativa. Compreendemos práxis como ação humana consciente e transformadora, que no caso do trabalho docente é uma ação prática eivada e nutrida de teoria, que objetiva a formação do humano em cada estudante. A complexidade da ação educativa necessariamente a torna uma práxis social e, portanto, o trabalho docente não pode ser pensado sem que se considere as relações de produção nas quais ele se insere.
Esperamos que as reflexões apresentadas neste texto contribuam para a resistência e o enfrentamento do empresariamento da educação pública, tanto na luta por melhores políticas como para a construção de alternativas pedagógicas para a formação escolar da classe trabalhadora. O trabalho docente não pode se reduzir a um processo de treinamento e adequação dos jovens e adultos que estão na escola pública, pois que é "(...) o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 1997, p. 21).
(...) ensinar tem como valor e objetivo final dar oportunidade para o outro apropriar-se do conhecimento produzido socialmente, desvelar as contradições da realidade e assim fazer valer seus direitos e buscar a transformação social. Ao construir a docência tendo esta perspectiva do ensino como fundamento, é possível que o professor se reconheça em seu trabalho e encontre sentido no ato de ensinar, um fazer intencional, uma dialética construtiva em busca da libertação humana por meio do conhecimento que eleva moral e intelectualmente o homem, levando-o do senso comum para a consciência filosófica (SILVA; LIMONTA, 2013, p. 178).
Sobre os autores
ROSIVALDO PEREIRA DE ALMEIDA • Doutor em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em Educação pela UFG, especialista em História Cultural pela Faculdade de Ciências Humanas da UFG, licenciado em História. É professor da Universidade Estadual de Goiás e tem experiência na área de Fundamentos dos Direitos Humanos e Fundamentos da Educação, atuando com os seguintes temas: relação Estado, sociedade e movimentos sociais, sentidos da escolarização na modernidade; educação prisional; fascismo brasileiro contemporâneo e procedimentos de eliminação dos diferentes. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2151533043843510. E-mail: rosivaldo2705@hotmail.com.
SANDRA VALÉRIA LIMONTA ROSA • Pós-doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC GO), Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Marília), licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professora associada da UFG na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo de Pesquisa Trabalho Docente e Educação Escolar (TRABEDUC). Temas de ensino e pesquisa: trabalho docente, conhecimento escolar, ensino e aprendizagem no Ensino Fundamental. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6361226363713191. E-mail: sandralimonta@gmail.com.
Referências
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