Governo Federal República Federativa do Brasil Ministério da Educação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Universidade Federal de Goiás

EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR:

DIDÁTICA, CURRÍCULO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS EM DEBATE

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SEÇÃO 2
AUTORAS Zilene Moreira Pereira Soares • Nathany Ribeiro Lima dos Santos • Sara Pereira
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Documentos Curriculares: Gênero e Sexualidade em Discussão

Introdução

Crianças denunciam estupro após assistirem palestra sobre abuso sexual e suspeito é preso em MT – Vítimas, de 10 anos, procuraram professora e relataram que eram vítimas. Suspeito tinha proximidade da vítima e aproveitava a confiança para cometer abusos (G1- Mato Grosso, TV Centro América, 30/05/2018).

Notícias como essa são apresentadas com frequência nos meios de comunicaçãoDisponível em: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/criancas-denunciam-estupro-apos-assistirem-palestra-sobre-abuso-sexual-e-suspeito-e-preso-em-mt.ghtml; https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/menina-relata-estupro-apos-palestra-sobre-violencia-sexual-e-padrasto-e-preso.ghtml. De acordo com a reportagem, após assistirem a palestra sobre violência sexual, as crianças perceberam a semelhança entre os fatos narrados e as situações vivencias por elas em casa. Relatos como esse reafirmam a importância de que as temáticas envolvendo as relações de gênero, cuidados com o corpo, e a construção da sexualidade sejam inseridas nos currículos escolares, como forma de cuidado e prevenção da violência sexual entre crianças e adolescentes. Ressalta-se, porém, que a abordagem deve ser contínua, e não pontual, em todos os níveis de escolaridade, e com linguagem adequada à faixa etária a qual se destina (PEREIRA, 2014).

A literatura na área destaca a escola como um ambiente privilegiado para a detecção e prevenção da violência sexual entre crianças e jovens (UNGARETTI, 2017; SPAZIANI; MAIA, 2015; LANDINI, 2011; XAVIER FILHA et al., 2008). Segundo os dados do Ministério da Saúde a maioria dos casos (62,9%) ocorrem na residência, e os agressores (37%) têm algum vínculo familiar (BRASIL, 2018), o que indica a dificuldade de identificação dos prováveis autores da violência e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes.

Corroborando com essa perspectiva o Guia de Educação em Sexualidade da ONU (Organização das Nações Unidas), recentemente atualizado (UNESCO, 2018), afirma que a educação em sexualidade contribui, dentre outros aspectos, para maior responsabilidade dos jovens em relação a sua saúde sexual e reprodutiva. Abordar a sexualidade na escola não estimula a atividade sexual entre jovens, e ao mesmo tempo não é garantia para evitar a iniciação sexual precoce ou a frequência de relações sexuais (ONU, 2018).

Entretanto as iniciativas voltadas para abordagem das temáticas gênero e sexualidade no contexto do ensino básico representam um desafio frente aos diferentes valores e às normas morais, culturais, religiosas e familiares que permeiam esses temas. Essa tensão é resultado principalmente de forças reacionárias diante de conquistas de coletivos políticos (movimento feminista, LGBTI, etc.) no plano dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos. A pressão exercida por esses grupos tem impactado as políticas públicas, especialmente na área da Saúde e da Educação voltadas para as ações de igualdade de gênero e liberdade sexual (PEREIRA, 2014).

Considerando que ações educativas podem desestabilizar saberes e práticas naturalizados na sociedade, é importante conhecer o que os documentos curriculares sugerem (ou não) a respeito da temática a fim de que a/o docente tenha amparo em suas ações pedagógicas. Foi realizada a busca dos principais documentos curriculares no âmbito nacional e, após a leitura na íntegra dos documentos, buscou-se identificar se e como aparecem os temas gênero e sexualidade, bem como a concepção apresentada sobre esses temas nos documentos. Considerando a área de interesse e atuação das pesquisadoras foi dado um enfoque mais detalhado para orientações específicas na área de ensino de ciências. Dentre os principais documentos curriculares que norteiam a Educação Básica e que serão aqui analisados estão: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN), o Plano Nacional de Educação (PNE), e a Nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para Educação Infantil e Ensino Fundamental.

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Parâmetros Curriculares Nacionais (1997/1998)

No campo das diretrizes educacionais os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) trouxeram melhorias em relação à inclusão de novas perspectivas na abordagem do tema sexualidade na Educação Básica. Na elaboração desses documentos, especialistas de várias partes do país se reuniram a convite do MEC e analisaram currículos de outros países, além de indicadores da educação no Brasil, teorias sobre currículo, ensino, aprendizagem e avaliação. Em 1997 os PCN foram publicados como um guia de referência, incluindo uma proposta de conteúdo, visando orientar tanto a formação do/a professor/a quanto a prática em sala de aula (VIANNA; UNBEHAUM, 2006).

Os PCN estão organizados por áreas do conhecimento, e cada uma dessas áreas conta com um documento específico composto por uma proposta detalhada em objetivos, conteúdos, avaliação e orientações didáticas. Frente à necessidade de tratar temas “urgentes” no âmbito das diferentes áreas curriculares foram desenvolvidos os Temas Transversais, dentre eles, o Caderno “Orientação Sexual” (BRASIL, 1998a). Esse caderno aponta que a finalidade do trabalho de Orientação Sexual é contribuir para que os/as aluno/as possam exercer sua sexualidade com prazer e responsabilidade, e que ao fim do Ensino Fundamental sejam capazes de: respeitar a diversidade de valores, crenças e formas de expressão relativos à sexualidade; identificar e repensar tabus referentes à sexualidade; reconhecer que características atribuídas ao masculino e feminino são construídas socialmente e posicionar-se contra a discriminação associada a essas construções; proteger-se de relacionamentos sexuais coercitivos ou exploradores; adotar práticas de sexo protegido; prevenir-se de uma gravidez “indesejada”; e usarem corretamente os métodos contraceptivos.

No documento da área de Ciências Naturais (BRASIL, 1998b) aparecem conteúdos referentes à sexualidade, norteados pelo caderno de Orientação Sexual. Destaca-se a importância das discussões sobre as emoções envolvidas na sexualidade, e a forma de apresentação do conteúdo não como prescrições de normas de conduta, mas sim na circulação de ideias e opiniões baseadas no respeito mútuo (BRASIL, 1998). De acordo com os PCN as informações objetivam combater preconceitos que atrapalham o desenvolvimento da sexualidade, buscando tranquilizar os estudantes ao invés de sobrecarregá-los com detalhes anatômicos e fisiológicos. Ao chamarem a atenção para discussão de valores morais, tabus e preconceitos, os PCN sugerem que o/a professor/a deva se preparar para a abordagem dessas questões. Esse preparo inclui o acesso aos fundamentos teóricos sobre a dimensão biológica e sociológica da sexualidade e da reprodução, discussão com os pares (docentes de diferentes áreas), e atualização sobre os assuntos presentes nas diversas mídias, com vistas a reconhecer como legítimos os diferentes valores e crenças presentes na sociedade.

Com relação aos métodos contraceptivos, os PCN consideram que a discussão dos aspectos subjacentes à contracepção, como por exemplo, a negociação do uso do método contraceptivo, pode estimular a adoção de práticas preventivas. Ademais sinalizam para a rigidez das regras nas relações de gênero, apontando para a diversidade de formas de ser homem ou mulher e para variação das expressões do masculino e feminino ao longo da história e entre as culturas.

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No tema DST/AIDS é destacado que o enfoque precisa ser coerente com a associação entre sexualidade, vida e prazer, e não na ligação entre sexualidade e doença ou morte. O documento também trata detalhadamente sobre a gravidez na adolescência, prevenção do abuso sexual, aborto e legislação sobre o tema. Além dos exemplos citados acima, os PCN mencionam outros conteúdos que devem ser debatidos em sala de aula, porém sem detalhamentos: masturbação, início do relacionamento sexual, homossexualidade, prostituição, erotismo e pornografia, etc.

Certamente os PCN apresentam um avanço ao legitimar a discussão de temas de caráter “urgente” na escola, e principalmente de forma transversal, na qual as questões tratadas perpassam todas as áreas de conhecimento. Exemplo disso são as relações de gênero articuladas às questões biológicas, a predisposição para a mudança de postura frente à discriminação e desigualdade na escola, o destaque para uma visão ampla, não reducionista de temas que envolvem a sexualidade e a projeção da discussão sobre AIDS, reconhecendo a mudança de enfoque na prevenção da epidemia nos últimos anos. Todos esses exemplos assinalam progresso nas intervenções com vistas a diminuir a vulnerabilidade dos/as jovens.

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN)

As DCN (BRASIL, 2013) constituem um documento de caráter normativo, homologadas pelo parecer do Conselho Nacional de Educação em 2010, com o objetivo de estabelecer bases comuns nacionais para a Educação Básica. Elas trazem orientações explícitas de como deve ser pensada e conduzida a educação. Esse documento está organizado em vários textos, os quais encarregam-se de apresentar as Diretrizes Nacionais Gerais para as várias etapas e modalidades da educação.

No documento referente ao Ensino Fundamental, no tópico “As múltiplas infâncias e adolescências” os termos gênero e sexualidade são apresentados juntamente com o reconhecimento das transformações biológicas, psicológicas, sociais e emocionais que ocorrem durante essa fase, e reforçam que os conhecimentos sobre sexualidade e as relações de gênero permitem a construção de valores durante essa faixa etária. Nesse mesmo tópico chama a atenção para a questão do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Tais questões comprometem o desenvolvimento e a aprendizagem e cabe à escola fazer os devidos encaminhamentos aos órgãos competentes.

As Diretrizes sustentam que em concordância à Base Nacional Comum e à parte diversificada do currículo, as diversas áreas de conhecimento devem articular-se a temas abrangentes e contemporâneos que afetam a vida humana, tais como: sexualidade, gênero, saúde, direitos das crianças e adolescentes, meio ambiente, etc. Da mesma forma estimulam que os órgãos executivos dos sistemas de ensino produzam e disseminem materiais que contribuam para a eliminação de discriminações e preconceitos, aí incluídos o racismo, sexismo e a homofobia. As DCN apresentam a exigência de problematizar questões organizacionais da escola, fomentando o debate sobre a complexidade da diversidade humana e as práticas sociais voltadas para grupos excluídos historicamente. Assim, referem-se, dentre outras temáticas, às questões de gênero, às mulheres, às diferentes orientações sexuais, e a “todos que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a ser contemplados pelas políticas públicas” (BRASIL, 2013, p. 16).

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Além disso, afirmam que a escola, em sua missão de formar cidadãos e cidadãs na cultura de direitos humanos, seja reconhecida como uma instituição acolhedora e transgressora destinada a múltiplos sujeitos, tendo como objetivo “a troca de saberes, a socialização e o confronto do conhecimento” sob diferentes abordagens (BRASIL, 2013, p. 25). Os pressupostos nos quais se fundamenta a escola devem apontar para o respeito e valorização das diferenças de classe social, gênero, etnia, dentre outras, com o objetivo de superar desigualdades de qualquer natureza.

Especificamente na Educação Básica há inúmeras referências às questões de gênero. Logo no primeiro tópico, de apresentação do documento, explicita-se que a problematização, o debate e as práticas relacionadas ao processo de inclusão social são imprescindíveis, de modo que as discussões sobre gênero, orientação sexual, mulheres, entre outros temas, precisam existir para abranger a diversidade da sociedade brasileira contempladas pelas políticas públicas.

As DCN também apontam que as escolas, na elaboração de seus Projetos Político-Pedagógicos (PPP), devem incorporar temas que se relacionem com fatos relevantes da realidade. Nesse aspecto as questões de gênero, etnia, classe, dentre outras, devem subsidiar as partes integrantes do PPP e do Regimento Escolar.

Segundo a Nota Técnica nº 32/2015Nota Técnica elaborada pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) com o objetivo de trazer o escopo legal para subsidiar as redes de ensino quanto à pertinência da abordagem de temas relacionados à gênero e sexualidade. as DCN (BRASIL, 2013):

Indicam para tanto uma abordagem focada não na padronização de comportamentos ou na reprodução de modelos pré-definidos, mas, ao contrário, na reflexão crítica, na autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso à informação e ao conhecimento, no reconhecimento das diferenças, na promoção dos direitos e no enfrentamento a toda forma de discriminação e violência (NOTA TÉCNICA Nº 32/2015, p. 3).

Portanto, por mais que não aprofundem nas questões de gênero, são documentos importantes para esta temática, porque propõem a necessidade de discutir as diferenças. Assim, as diretrizes podem ser vistas como uma forma de fazer com que a escola saia de sua comodidade e cumpra seu papel na superação das desigualdades.

Diante da análise pode-se concluir que as DCN além de recomendar a abordagem das questões de gênero e sexualidade, sugerem que elas sejam inseridas nos PPP das escolas nos diversos níveis e modalidades de ensino. Indicam também que estas temáticas sejam abordadas ao longo de toda a trajetória escolar, para a construção de um ambiente plural e de respeito às singularidades dos indivíduos, à igualdade de gênero e à orientação sexual.

Plano Nacional da Educação (2014-2024)

O Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2014), representado pela Lei nº 13.005/2014, determina as diretrizes, metas e estratégias para a política educacional. Este documento está dividido em quatorze artigos que apresentam as providências da lei. Além disso, compõe-se de vinte metas (cada uma delas acompanhada das respectivas estratégias) que abrangem todos os níveis de ensino, desde Educação Infantil ao Ensino Superior. Vale destacar que após a aprovação desse Plano, seus objetivos devem ser executados nos dez anos seguintes (2014-2024), uma vez que antes dessa versão sua modificação era plurianual. Essa alteração e muitas outras foram alvo de contestações envolvendo o documento.

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Uma grande polêmica relacionada às alterações diz respeito ao artigo 2º, inciso III, que antes da modificação dispunha que uma das diretrizes do PNE era promover a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção de igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. No entanto, o trecho foi substituído por “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” (BRASIL, 2014 p. 43).

Esta alteração está muito ligada à atuação da bancada evangélica no Congresso, cujas reivindicações na maioria das vezes possuem impacto midiático (GONÇALVES, 2016). Destaca-se que esse movimento reacionário na educação se intensificou na contestação do Projeto Escola Sem Homofobia de 2011. De acordo com Oliveira Junior e Maio (2017) o projeto Escola sem Homofobia suscitou uma explosão discursiva na mídia sob a argumentação de que o governo estaria incitando práticas homoafetivas para crianças e adolescentes.

Nesse contexto grupos religiosos conservadores causaram grande repercussão nacional ao deturpar o conteúdo de gênero e sexualidade nos documentos escolares, alegando que toda essa discussão acerca do tema colocaria em risco o conceito de homem e mulher e destruiria o modelo de família tradicional, com o argumento que esse assunto é dever dos pais e não da escola, e com isso disseminaram um termo pejorativo chamado “ideologia de gênero” (ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE; GOMES, 2016). Essa resistência conservadora constitui-se num obstáculo para a equidade de gênero e o livre exercício da sexualidade.

A opressão e exclusão que envolve as questões de gênero abre espaço para que os indivíduos continuem a sofrer agressões e desrespeito. O próprio Estado acaba por acentuar a violência sofrida por estudantes ao ocultar as questões de gênero e sexualidade nos documentos, consequentemente exerce um efeito de privação de direitos sobre crianças e jovens (ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE; GOMES, 2016).

De acordo com Dourado (2016) o plano aprovado possui uma concepção restrita de inclusão e participação haja vista a repulsão na relação entre educação e a diversidade sexual e de gênero. A ideia de diversidade visa uma convivência harmoniosa com as diferenças, considerando que a escola ainda naturaliza a heterossexualidade, transmitindo a representação patriarcal e de dominação masculina (PANIZZI, 2015).

Desse modo, observa-se um retrocesso significativo por parte do Estado em relação a retirada desses termos nos planos de educação, não reconhecendo os direitos das minorias. Além disso não reconhece a autonomia do sujeito no que tange a questões individuais e da vida privada, pois reprime esse direito na formação escolar das crianças e dos jovens.

Base Nacional Comum Curricular (2017)

A BNCC é um documento de caráter normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo da Educação Básica. A Base está prevista na Constituição de 1988, na LDB de 1996, nas DCN de 2013, e no PNE de 2014.

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Em 1996 a LDB determinava que a União firmasse um pacto Inter federativo, ou seja, um acordo entre os vários níveis de governo para estabelecer competências e diretrizes capazes de orientar os currículos. Em 2014 o PNE reafirmava a necessidade de estabelecer diretrizes pedagógicas para a educação básica, e de criar uma Base nacional que orientasse os currículos de todas as unidades da federação. Em abril de 2017, o Ministério da Educação (MEC) encaminhou a última versão do documento ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a fim de que este fizesse a apreciação da proposta da BNCC para produção de um parecer e de um projeto de resolução que ao ser homologado pelo Ministro da Educação transformou-se em norma nacional. O CNE realizou audiências públicas em diversas capitais brasileiras de caráter consultivo a fim de coletar subsídios para a elaboração de uma norma instituidora da BNCC.

No dia 15 de dezembro, o parecer e o projeto de resolução apresentados pelos conselheiros relatores do CNE foram votados em Sessão do Conselho Pleno e aprovados com 20 votos a favor e 3 contrários. Com esse resultado, seguiram para a homologação no MEC, que aconteceu no dia 20 de dezembro. No dia 22 de dezembro de 2017 foi publicada a Resolução CNE/CP nº 2, que institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular a passa a ser referência obrigatória para elaboração dos currículos e propostas pedagógicas para Educação Infantil e o Ensino Fundamental. A base impacta diretamente a formação de professores, os processos avaliativos, e o material didático das escolas públicas.

É importante destacar que o caráter democrático de construção da Base é questionável, haja vista que sua 3ª versão apresentada à equipe dirigente do MEC, não foi discutida com a sociedade e possui como opositores as principais organizações científicas educacionais e os sindicatos dos educadores do ensino básico (AGUIAR, 2018).

Neste documento, as redes de ensino pública e particulares passam a ter uma referência obrigatória para a elaboração dos currículos. Dentre os principais objetivos da BNCC, além da adequação curricular, está o desenvolvimento dos estudantes no respeito às diferenças, repúdio à discriminação e ao preconceito e a redução das desigualdades educacionais no Brasil. A BNCC do ensino fundamental está estruturada em: áreas do conhecimento, competências específicas de área, componentes curriculares e competências específicas de componente.

A BNCC reconhece a educação básica como essencial para a formação plena do estudante, voltada para a singularidade e a diversidade. Ademais afirma “a escola como um espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva, de fortalecimento de práticas não coercitivas, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades” (BRASIL, 2017, p. 14). Nesse sentido o cotidiano escolar deve reconhecer as desigualdades entre os estudantes definidas por raça, sexo e condição socioeconômica objetivando a igualdade, diversidade e equidade.

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Segundo com Oliveira et al. (2017) a possibilidade de inclusão da discussão sobre identidade de gênero e sexualidade nos currículos é polêmica e vem provocando calorosos debates entre grupos favoráveis e contrários a sua inserção. O exemplo mais recente desse embate foi a retirada das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” da versão final da BNCC devido a pressões exercidas por grupos religiosos conservadores. Consoante com Adrião e Peroni (2018) essa ausência foi questionada pela Relatora Especial para o Direito à Educação da ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, a partir de denúncia apresentada pela Campanha Nacional pelo direito à Educação. Para a relatora a exclusão do termo “orientação sexual” do currículo escolar vai de encontro às recomendações do Comitê dos Direitos das Crianças ratificado pelo Brasil em 30 de outubro de 2015. O Comitê recomenda que o Brasil fortaleça seus esforços no combate à discriminação de crianças vivendo áreas marginalizadas; proíba a incitação da violência baseada na orientação sexual e na identidade de gênero, dê continuidade a projetos contra a homofobia na escola; e priorize a eliminação de atitudes patriarcais e estereótipos de gênero por meio de programas educativos e de conscientização.

Na versão inicial da BNCC apareciam os termos sexualidade e gênero, já a versão aprovada limitou-se à sexualidade, como ilustra o trecho a seguir da área de ciências naturais:

Nos anos iniciais, pretende-se que, em continuidade às abordagens na Educação Infantil, as crianças ampliem os seus conhecimentos e apreço pelo seu corpo, identifiquem os cuidados necessários para a manutenção da saúde e integridade do organismo e desenvolvam atitudes de respeito e acolhimento pelas diferenças individuais, tanto no que diz respeito à diversidade étnico-cultural quanto em relação à inclusão de alunos da educação especial.

Nos anos finais, são abordados também temas relacionados à reprodução e à sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância social nessa faixa etária, assim como são relevantes, também, o conhecimento das condições de saúde, do saneamento básico, da qualidade do ar e das condições nutricionais da população brasileira” (BRASIL, 2017, p. 325).

Mais adiante no documento, no 8º ano da área de ciências observa-se que a sexualidade aparece como um dos objetos de conhecimento, e as respectivas habilidades objetivam (BRASIL, 2017, p. 347):

Analisar e explicar as transformações que ocorrem na puberdade considerando a atuação dos hormônios sexuais e do sistema nervoso;

Comparar o modo de ação e a eficácia dos diversos métodos contraceptivos e justificar a necessidade de compartilhar a responsabilidade na escolha e na utilização do método mais adequado à prevenção da gravidez precoce e indesejada e de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST);

Identificar os principais sintomas, modos de transmissão e tratamento de algumas DST (com ênfase na AIDS), e discutir estratégias e métodos de prevenção;

Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética).

Se por um lado legitima-se a abordagem da sexualidade nos currículos, como fazê-la desatrelada das questões de gênero? Como abordar as múltiplas dimensões da sexualidade, as IST, os cuidados com o corpo, o uso de contraceptivos sem destacar as desigualdades, os obstáculos e as hierarquias de gênero? Suprimir esses temas da BNCC reflete uma visão conservadora, como se ela fosse uma ameaça à chamada “família tradicional”, mas acima de tudo desconsidera o acúmulo de debates, pesquisas e conquistas dos movimentos sociais em busca da equidade de direitos.

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Por outro lado, a sexualidade é apresentada em associação com doenças, violência e gravidez, evidenciando um distanciamento entre a orientação proposta e a vivência dos estudantes. Denise Carreira coordenadora da área de educação da Ação Educativa complementa:

A escola é o espaço de inúmeras demandas sociais relativas a amplas parcelas da população e cenário importante de convivência de crianças, adolescentes e jovens. Neste sentido, a sexualidade não necessita ser inserida na educação, pois ela, sendo parte da vivência humana, já está dentro da escola, cabendo aos educadores reconhecer a legitimidade desse tema no âmbito da educação (CARREIRA, 2011, p. 98).

Desse modo a BNCC ressalta a importância da construção de propostas que atendam às necessidades e interesses dos estudantes, de modo que suas singularidades sejam consideradas (BRASIL, 2017). Entretanto o documento apresenta uma contradição com a supressão dos termos gênero e com a sexualidade articulada apenas à dimensão da saúde, diferentemente do proposto da abordagem em suas múltiplas dimensões.

Ressalta-se a descontinuidade entre as perspectivas dos documentos anteriores (PCN e DCN) e a nova BNCC. Segundo Girotto (2016) o que não está sendo dito na base possui uma importância maior pois marca a concepção de educação do documento e a difusão de um projeto de desenvolvimento econômico e social para o país. Vale destacar que tal a resistência conservadora a movimentos de minorias vem impactando diretamente as políticas educacionais. Entretanto convém destacar, segundo Ferreira e Mariz (2017), que existe a possibilidade de que o CNE emita posteriormente orientações sobre a abordagem de gênero e sexualidade considerando as diretrizes atuais vigentes.

Considerações finais

De acordo com Girotto (2017) tanto os PCN (BRASIL, 1997) quanto a BNCC (BRASIL, 2017) fazem parte de uma lógica de Estado que têm como base princípios neoliberais que atendem a interesses de determinados grupos econômicos, em especial do Banco Mundial. Esses grupos apontam para a necessidade da construção de um currículo único, que atenda aos requisitos das avaliações internacionais, e que sirvam de base para os cursos de formação de professores.

Soma-se a esse fator o crescimento de movimentos conservadores principalmente a partir do ano de 2010. Esse conservadorismo vai desde questões como a redução da maioridade penal, apoio à pena de morte, oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo até a oposição à descriminalização do aborto (TOLEDO, 2018).

Em se tratando de políticas educacionais, dentre os documentos analisados pode-se afirmar que, apesar das críticas, os PCN foram os documentos que possibilitaram o maior avanço na abordagem do tema. Vale destacar que os PCN foram concebidos num contexto do impacto da epidemia de HIV/Aids, e do grande número de casos de gravidez na adolescência que demandaram pesquisas e espaço para a abordagem da sexualidade e do gênero na escola (PEREIRA, 2014).

Embora sem grandes aprofundamentos, as DCN corroboram pelo respeito e valorização das diferenças seja de gênero, classe ou orientação sexual, cabendo à escola a abordagem dessas questões como forma de diminuir as desigualdades. Entretanto, em conformidade com a análise feita por Barbosa e Guizzo (2014) as DCN não fundamentam nem exemplificam como inserir essas temáticas nos currículos e no dia a dia em sala de aula.

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No PNE e na BNCC os termos gênero e orientação sexual foram excluídos como resultado da pressão de segmentos conservadores. Entretanto isso não significa dizer que esses temas não possam ser abordados em sala de aula, tendo em conta que fazem parte das demandas dos próprios estudantes. Além disso ainda constam nos PCN e nas DCN, que embora sejam menos recentes ainda continuam em vigor. A Nota Técnica nº 32/2015 corrobora com essa afirmação, haja vista que a ausência dos termos no PNE não exime as redes de ensino de seguirem as recomendações e normativas descritas nas DCN, e que qualquer restrição a essa abordagem estará em contradição com o que apontam as diretrizes.

Considera-se que falar de gênero e sexualidade na escola é fundamental para romper com o ciclo de violência e a maneira tradicional como são socializados homens e mulheres. Além disso constitui-se como direito de crianças e adolescentes o acesso à informação, sobretudo a conteúdos que contribuam para sua proteção, cuidado e redução das desigualdades.

Sobre as autoras

ZILENE MOREIRA PEREIRA SOARES • Doutora e Mestre em Ensino em Biociências e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ); Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade de Vassouras; Professora Adjunta da Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás. Link do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9827016932616129. E-mail: zilenemor@gmail.com

NATHANY RIBEIRO LIMA DOS SANTOS • Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Goiás; Estagiária do Laboratório Multiusuário de Microscopia de Alta Resolução (LabMic); Voluntária de Iniciação científica pelo Departamento de Morfologia pela Universidade Federal de Goiás; Link do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1711583887770816. E-mail: nathany.ribeiro.315@gmail.com

SARA PEREIRA • Licencianda em Ciências Biológicas; Estagiária do Instituto Euvaldo Lodi; Monitora de Zoologia dos Vertebrados pelo Departamento de Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Goiás; Link do currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9483402466936350. E-mail: psara2294@gmail.com

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