10. De Alvéolo em Alvéolo: construções algébricas e cooperação investigativa na sala de aula de Educação Matemática

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Sergio Muryllo Ferreira
Marcos Antonio Gonçalves Júnior

Resumo: Durante uma aula de Educação Matemática, para estudantes do 7º ano do Ensino Fundamental, um professor e seus alunos discutem uma atividade contextualizada na construção de alvéolos de uma colmeia. Há uma sequência numérica escondida naquela construção e o professor espera que seus alunos a reconheçam dentro de um trabalho de investigação coletiva. Como evidenciá-la? O objetivo do presente artigo é apresentar, em forma de narrativa, a experiência da construção do pensamento algébrico, em cenários para investigação (SKOVSMOSE, 2008), durante a realização dessa atividade. Nesse sentido, são apresentadas as contribuições teóricas de Alrφ e Skovsmose (2010) acerca da cooperação investigativa, de Usiskin (1999) no tocante ao modo de conceber o pensar algébrico no processo de escolarização e de Butts (1997) sobre a tipificação dos problemas matemáticos. Além da poética literária, algumas particularidades da narrativa enquanto caminho metodológico são apresentadas durante a trama, conforme propõe Bolivar Botia (2002). Por fim, a narrativa é utilizada para analisar a ação do professor que ensina matemática para turmas do Ensino Fundamental, em especial, sua postura de mediador pedagógico no contexto de aulas investigativas.

Palavras-chave: Cooperação Investigativa. Pesquisa Narrativa. Ensino. Sequências Numéricas.

Mas o que vocês estavam fazendo afinal?

As conversas despretensiosas com os colegas na sala dos professores, os alunos chegando para o início das aulas, cumprimentos, sorrisos... Vagarosamente, a vida vai rompendo o silêncio que, na madrugada, ocupou os ambientes do prédio escolar. Aquela poderia ser mais uma típica manhã de aulas. Sentado na sala de professores, meus olhos ziguezagueavam distribuindo atenções e captando as primeiras percepções do dia. Olhei para a mochila que deixara sobre a mesa, como se ali escondesse um precioso tesouro.

Lá estavam as folhas de atividades impressas que eu trazia de casa para a última aula do trabalho de campo, o smartfone usado para audiogravar os diálogos com os(as) alunos(as) e o computador que armazenava o vídeo sobre as abelhas. Quando o sistema de som raiou os primeiros acordes da música, anunciando o início das atividades da manhã de estudos, tomei logo a mochila nas mãos e caminhei até a sala do 7º ano. Os corredores guardavam os passos apressados daqueles que se atrasaram. Alguns alunos, que se detinham na porta da sala, me recepcionaram, enquanto outros permaneciam sentados em suas carteiras. Os mais ansiosos, que estavam à porta, foram logo dizendo “hoje tem aula diferente, né professor?”. Sem que tivesse tempo para qualquer palavra, percebi que a atmosfera estava inflada de expectativas; “mas é claro que sim! Você prometeu, professor.” Se alegraram quando confirmei que iríamos para o laboratório de Matemática da escola.

Aquietamos e cumprimos parte da rotina com a oração diária. Materiais em mãos e passos largos pelos corredores da escola até o laboratório de matemática. Em menos de cinco minutos, os grupos já estavam formados, o computador conectado à lousa digital e o vídeo pausado em seu início.

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Desde a primeira atividade investigativa, era notório que o interesse dos(as) alunos(as) aumentara. Muito por terem conseguido entender o novo formato de aula com investigações e debates, o que se resume a uma questão de perspectiva, uma forma diferente de olhar para aula (ALRØ; SKOVSMOSE, 2010, p.46). Os alunos e as alunas reconheceram que eu queria me afastar das aulas “tradicionais” com explicações na lousa, exercícios modelo e tarefas de casa. Esse olhar de reconhecimento é uma vista privilegiada, mas deslocar para consegui-la não é um movimento trivial como a brevidade das linhas sugerem. Antes dessa aula, já havíamos experimentado outros três momentos em que aflições e angústias haviam sido experimentadas, algo esperado quando caminhamos na zona de risco das mudanças desejadas.

O cenário estava se organizando para a investigação e o vídeo sobre a formação hexagonal dos alvéolos de uma colmeia agradou. Enquanto assistiam ao vídeo, retirei da mochila as folhas impressas. Terminado o vídeo, alguns comentários sobre a forma hexagonal, orientações gerais, e, com folhas em mãos, iniciamos a leitura coletiva. Os alunos começaram a desenvolver a atividade investigativa. Como carregava o smartfone comigo, gravei muitos diálogos.

Em certo momento me aproximei da dupla formada por Nina e Amanda. Conversamos.

Nina: – Professor, veja se está certo. Aqui ó... Seis vezes dois mais um.
Professor: – Mais ou menos?
Nina: – Mais! Mais seis, na verdade, ó. Seis... [pausa] Calma... Seis...
Professor: – Você lembra que essa parede aqui é compartilhada? Apontei para um desenho na folha impressa e continuei a pensar alto dizendo: – as abelhas não a constroem duas vezes.
Amanda: – Então, Nina, é só cinco...
Professor: – Quantas paredinhas têm aqui?
Amanda: – São onze!
Nina: – Onze!
Professor: – Por quê?
Nina: – Porque cada uma tem cinco mais uma partilhada. Então, não vai ser doze.
Amanda: – Então, a gente errou.

Por que eu me aproximei da dupla de alunas? Por que Nina precisava do meu aval para prosseguir? Por que eu não respondi simplesmente “está certo!” ou “não está certo!” Volte seus olhos ao diálogo, querido(a) leitor(a). Ele está carregado de uma riqueza de detalhes ímpar, de singularidades, de aprendizados. Note como a fala inicial de Nina salta aos olhos. Ela estava insegura quanto ao seu critério de formação da sequência e precisava que alguém o validasse. Alrφ e Skovsmose (2010, p. 26) chamam esse fenômeno de absolutismo burocrático. Ele denota uma gestão do conhecimento centrada na ação do professor e na passividade do(a) estudante. Veja como Amanda conclui sua apreciação “a gente errou”, elas estavam trabalhando juntas, construíram juntas aquelas ideias, pensaram juntas, erraram juntas, mantinham uma cooperação colaborativa por estarem em contato (ALRØ; SKOVSMOSE, p. 61). Olhe, leitor(a), há uma Matemática surgindo, “Seis vezes dois mais um...”. É uma Matemática construída, argumento por argumento, ideia por ideia, alvéolo por alvéolo, por pessoas que cursam o 7º ano do Ensino Fundamental.

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Aquela poderia ser mais uma típica manhã de aulas... Eu sei que eu já disse isso, mas não foi o que aconteceu. Ali, tive consciência que eu havia mudado e que aquela era uma mudança desejada e necessária. Eu me diverti com os alunos, conversando, apresentando ideias de forma a construir uma Matemática que não vinha pronta, seja dos livros ou das exposições no quadro, mas insistia para que a descobríssemos escondida naqueles alvéolos que se ajuntavam um após outro. Ficou curioso por saber o que estávamos fazendo ali?

Revirando o baú dos avós

Era inevitável. Tão logo, eu e meus primos começávamos com as brincadeiras ferinas, minha avó paterna nos chamava em grupo e punha-se a contar estórias. Eram causos que narravam fatos da sua vida modesta como agregada em fazendas do interior de Goiás, Leopoldo de Bulhões e Silvânia, cidades na região da antiga estrada de ferro que ligava Goiânia à Araguari – MG. Ela era hábil em nos cativar a atenção com as porteiras que abriam sozinhas, os relâmpagos que talhavam pedras, a ponto de torná-las machadinhas, e as aparições assombrosamente inexplicáveis de personagens das florestas.

Mas isso servia como pano de fundo para outra narrativa que minha avó tecia paralelamente ao fantástico, com meandros que entrelaçavam o real e o irreal do mundo a ponto de não conseguirmos diferenciá-los. No clímax de tudo isso, quando pensávamos não ter um fim que não fosse o pior, ela abrandava o fato com a sabedoria da vida vivida, experimentada, evidente em suas cãs e dizia-nos, “mas isso aconteceu porque era pequena e havia desobedecido aos mais velhos” ou “aquilo foi para mim como castigo por ter machucado minha amiga”.

Essa é uma das memórias afetivas da minha infância. Aprendi muitas coisas ouvindo histórias. Valores éticos, morais, regras de boa convivência, respeito aos mais velhos... tudo se encaixava no causo. Mas não pense o(a) leitor(a) que estou a evocar tais lembranças ao sabor do acaso. Bolivar Botia (2002, p.4) argumenta que, por meio da narrativa, podemos reconstruir a realidade vivida, de modo a interpretar nossas ações e intenções. E se podemos dialogar com esse eu-reflexivo e sua busca por identidade e significados, temos uma boa oportunidade para construir conhecimentos.

Com tudo isso em mente, quero sugerir uma reflexão: e se pudéssemos aprender sobre o ensino de matemática na escola de Ensino Fundamental ouvindo uma história? Isso soaria estranho a você, leitor(a)? Uma história contada sobre a experiência vivida, uma narrativa. Precisaríamos de um bom enredo, uma vivência e, sem dúvida, alguém para contá-la, e alguém a quem contá-la.

Bom, eu tenho uma história. É uma boa história. É uma boa história vivida e que fez parte do trabalho de campo de uma pesquisa de Mestrado. Se achegue mais perto, leitor(a), não se faça de rogado. Essa lhe pareceria uma boa trama? Uma aula em que estudantes do 7º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede particular de ensino de Goiânia sejam convidados a investigar uma sequência numérica oculta nos favos hexagonais de uma colmeia? Alunos, alunas e o professor da turma, em um ambiente colaborativo de investigação matemática, construindo saberes algébricos.

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Mas essa aula realmente aconteceu? Essa é uma história vivida? Veja, leitor(a), essa aula fez parte do trabalho de campo da pesquisa de mestrado do Sergio Muryllo, orientando do Marcos Antonio, (mas ele sempre se apresenta como Marquinhos). Nós somos testemunhas das coisas que aconteceram naquela aula e gostaríamos de contá-la em maiores detalhes para você. Se ela já foi contada na dissertação de mestrado, o que ela traz de novo?

Boa pergunta, leitor(a). Entendemos sua preocupação tanto quanto provocamos que há algo novo sempre que uma história é recontada. O Marquinhos e a Dione Lucchesi costumam dizer que o passado não pode ser mudado, mas podemos lançar novos olhares sobre o vivido e descobrir novidades (GONÇALVES JÚNIOR; CARVALHO, 2014, p. 787). Esse olhar recente não é outro senão o olhar reflexivo sobre a experiência vivida, que escrutina os fatos em busca das singularidades que eles carregam em si. É desse olhar recente que emergem saberes, aprendizados e teorias sobre a experiência.

O que foi experienciado naquela aula é passado, a narrativa que consta na dissertação também o é, mas que bom que podemos reescrever o vivido e aprender com ele, até mesmo porque ele é, agora, visto com os olhos do presente. Além disso, eu não posso contá-la sozinho, o Marquinhos também participa da construção dessa narrativa. Inclusive, ele costuma dizer que contar é o que nos resta fazer diante daquilo que vivemos (GONÇALVES JÚNIOR, 2016, p.62) e há muito que contar nessa vivência; os fatos, as personagens... Gostaríamos de contar a você uma história. E isso é como revirar o baú de estórias de nossos avós à procura de novas aprendizagens.

Problemas, Inquietações e as Folhas Impressas na Mochila

Longe se alcançam as recordações daquela aula, mesmo reconhecendo o fato de as lembranças irem se erodindo lentamente na memória. Algo de especial e significativo aconteceu naqueles minutos a tal ponto de, ainda hoje, sobreviverem na memória, resistindo à exaustão do tempo que insiste em escavá-los, mesmo decorridos dois anos.

Para as memórias erodidas, há sempre um bom remédio a ser guardado com bastante cuidado, as anotações de aula. Quem desejar se aventurar pelos caminhos de uma pesquisa qualitativa, os cadernos de notas são essenciais. Tenho os meus guardados com anotações dos primeiros encontros de orientação com o Marquinhos. Em uma delas, conversamos sobre a elaboração de problemas matemáticos segundo o modelo proposto por Thomas Butts (1997). Essa era uma novidade para mim e pensar um problema matemático se tornou um desafio.

Até aquele momento, conhecia bem as regras para redigir questões para provas de matemática, com o enunciado padrão, acompanhado ou não de suportes (gráficos, tabelas, figuras) e de um comando verbal indicativo da habilidade a ser avaliada. Esses eram os problemas típicos que eu apresentava aos alunos em sala de aula. Eu os encontrava nos livros didáticos, outros de minha autoria e quando não me dava por satisfeito, elaborava as conhecidas listas de exercícios no melhor estilo mais do mesmo.

De acordo com a tipologia de Butts (1997), indicada na Figura 1, em minha prática docente, eu estava acostumado a oferecer aos alunos muitos exercícios de reconhecimento e algorítmicos. Em alguns casos, enveredava por problemas de aplicação.

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Figura 1 – Tipos de problemas matemáticos. Fonte: Infográfico elaborado pelos autores com base em Butts (1997, p. 33), usando o aplicativo canva on-line.

Lembro-me de que quando apresentei ao Marquinhos minha primeira tentativa de elaborar um problema Matemático, estava claro para mim se tratar de um problema de pesquisa aberta. Era um problema sobre a construção de pódios que culminava na modelação da sequência de números quadrados perfeitos. Recomendo ao leitor interessado que consulte o produto educacional “Sequências Numéricas: Sugestões para professores do 7º ano do Ensino Fundamental” para conhecer a atividade dos pódios. Para minha surpresa, ele disse: “Sergio, esse problema tem informações demais”. E após outra leitura, foi bem assertivo ao dizer “Parece que você duvida da capacidade dos seus alunos”. Entendi que o elaborador de questões de prova precisaria dar lugar ao instigador, mas esse não é um deslocamento tão simples de realizar.

Tal movimento envolve assumir novas verdades no lugar daquelas já tão arraigadas e cristalizadas quanto à própria noção de ensino como transmissão de saberes. Um professor instigador precisa reconhecer o ensino como uma ação sobre a própria vida a ponto de inspirar as próximas gerações a agir na construção de novas verdades para o seu tempo (ALRØ; SKOVSMOSE, 2010, p. 47; INGOLD, 2020, p.9). Esse é um trabalho reflexivo interessante que almejo incorporar à minha práxis docente.

Quando avancei nos estudos acerca da Educação Matemática Crítica, entendi que minha prática se aproximava muito daquela que Ole Skovsmose (2008, p. 15) reconhece como baseada no paradigma do exercício, centrada na busca pela única resposta correta a ser apresentada ao problema proposto. O paradigma do exercício também pode ser observado nos padrões repetitivos presentes na gestão de sala de aula. Aula expositiva, resolução de exercícios modelo, exercícios de fixação de conteúdo, tarefas de casa, avaliação.

Na leitura dialogada com Alrφ e Skovsmose (2010, p. 55), aceitei o desafio de transitar do paradigma do exercício para o ambiente de aprendizagem proposto em cenários para investigação. Lembrei-me do Marquinhos dizendo: “seus alunos podem ir além do que você imagina”. Ah sim, cenários para investigação. É verdade, leitor(a). Precisamos falar sobre isso. Podemos entendê-los como a abertura da sala de aula para uma nova forma de comunicação e construção de conhecimentos. Os cenários guardam estreita relação com as ações planejadas pelo professor na intenção de proporcionar, em sala de aula, um ambiente propício ao trabalho investigativo (SKOVSMOSE, 2008, p. 17).

Mas falávamos sobre a atividade, não é mesmo? Ela precisa permitir a abertura para o diálogo entre os partícipes da investigação. Após muitas reescritas, o problema enfim foi dado a conhecer aos alunos e alunas. É isso mesmo, leitor(a), a preparação de uma aula investigativa envolve tempo, diálogo com os pares e muitas reescritas até que seja levada aos alunos. A ideia para uma nova atividade investigativa guardaria relação com a construção dos favos hexagonais nas colmeias. Essa seria a quarta atividade investigativa realizada como trabalho de campo.

A proposta a ser levada aos estudantes começava com a apresentação de um vídeo sobre a construção dos favos da colmeia no formato hexagonal. Seria uma forma de chamar a atenção para o tema do problema a ser investigado. Seguido a isso, uma folha impressa traria a investigação a ser empreendida. Mais uma vez, recomendo a leitura do produto educacional citado anteriormente, caso o(a) leitor(a) queira conhecer toda a atividade. Sem perda do entendimento, a Figura 2 apresenta apenas uma parte da atividade que permite compreender os caminhos investigativos.

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Figura 2 – Parte da atividade investigativa proposta. Fonte: Material elaborado pelos autores usando canva on-line.

Vamos conhecer a dinâmica da aula, mas antes, o momento nos incumbe de uma reflexão. Empreender uma atividade de pesquisa não é uma tarefa fácil. As inquietações são muitas e os ventos das mudanças nos balançam a todo tempo. Eles sopram desde os livros abertos em leituras reflexivas até as reuniões com o orientador. Passam pelos debates nas aulas do Programa de Pós-Graduação e insistem em nos atravessar a mente mesmo quando escrevemos, como se precisássemos nos convencer dos significados das palavras que insistem em ventar desde o nosso pensamento.

Os ventos se tornam ainda mais intensos quando nos colocamos na condição de passividade. Não falamos da passividade laissez faire, do se deixar levar pelas ideias de outros, de não ter ideia alguma, ou não se importar com o que nos acontece, mas da passividade atribuída à ação, C'est le ton qui fait la chanson (ou la musique), a algo que nos toca e nos acontece (BONDIA LARROSA, 2002). Somos os sujeitos da experiência, esses são os ventos da experiência que a atividade de pesquisa nos leva a inspirar. E como é gratificante saber que a experiência da pesquisa nos transforma.

E o problema matemático foi parar na folha impressa. Essa, por sua vez, se aconchegou na mochila, de onde foi tirada para ser entregue aos(às) estudantes do 7º ano. E o que era letra virou número, mas os números também viraram letras... E assim se fez o baile na manhã escolar. Vamos dançar?

Os alvéolos ganham significados numéricos

Foi assim que iniciamos nossa valsa. Lembra-se leitor(a)? A música anunciando o início da aula, alunos e alunas organizando seus materiais e se deslocando pelos corredores até o laboratório de matemática da escola, o vídeo sobre as abelhas e seus favos hexagonais, uma sequência numérica a ser investigada, diálogos... Até o momento em que uma álgebra começou a escorrer por aqueles favos desenhados em folhas de papel.

Quanta Matemática se viu ali! Quantas ideias! Imensuráveis! Incomensuráveis até, pois já não podiam ser medidas por meio da “régua” do paradigma do exercício! Os estudantes reunidos em grupos discutiam a formação dos favos e a lei de formação dos números que insistia em saltar do papel. Uma atmosfera diáfana ambientava todo o Laboratório de Matemática e, por ela, o conhecimento fluía como um rio de ideias matemáticas, acelerado aqui em uma corredeira caudalosa de números, detendo-se ali, em símbolos que resistiam em entregar seus significados. Novos diálogos surgiram.

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Jô: – A gente já sabe assim... O número da hora que pode ser o número de um polígono, entendeu? Aí, vai sempre adicionar mais cinco. É mais cinco porque tem que adicionar uma parede em comum e ele [o polígono] tem seis lados, entendeu?

Entendeu, leitor(a)? Jô terminou sua fala com um nobre “entendeu?”. Ela quer manter contato comigo, quer que eu acompanhe seu pensamento, quer minha ajuda e, para isso, eu preciso entender até onde ela quer me conduzir com esse pensamento para, só então, ajudá-la. Ela queria me colocar em uma vista privilegiada daquele problema. Queria que eu chegasse a ver o que ela e seu grupo já haviam visto. Esse é um elemento arrebatador quando se trabalha na perspectiva de uma investigação colaborativa. É indicador de que valeu a pena tudo o que foi pensado para aquela aula. Mas continuemos, o diálogo reserva mais surpresas.

Professor: – E o que mais?
Jô: – É que a gente tá com dificuldade de escrever a fórmula.
Professor: – Posso dar uma ajudinha?
O grupo: – Pode!
Professor: – Vou provocar vocês, na verdade. Posso provocar?
O grupo: – Pode!

Provocar foi a maneira que encontrei de desafiá-las a continuar pensando no problema. Elas teriam agora a minha ajuda, mas não deixaríamos de pensar no problema a ser resolvido. Para não perder a ideia de que iríamos pensar juntos, a provocação veio como um pensar alto, um apresentar coletivo de ideias. Iniciei conduzindo esse pensar alto, mas logo as alunas se sentiram motivadas a contribuir.

Professor: – Esse aqui ó [apontando para a primeira figura da folha] você disse que é quem?
Jô, Vic e Anne: – Onze!
Professor: – Pode olhar que ele está aqui ó [apontando agora para a segunda figura e riscando a primeira figura dentro da segunda]?
Vic: – Então! Eu falei para elas.
Anne: – Eu mostrei para elas.
Professor: – aqui não é onze mais...
Jô: – Cinco!
Professor: – E aqui?
Jô: – Onze mais dois de cinco.
Anne: – Eu falei!
Professor: – E aqui?
Jô: – Onze mais três de cinco.
Professor: – E o próximo?
Vic: – Onze mais quatro vezes cinco, trinta e um.
Professor: – [retornando a figura 1] Aqui eu posso dizer que é onze mais nenhum de cinco, posso? Onze, né?
Jô e Vic: – Ah, tá. Sim!
Professor: –Então, vamos pensar uma coisa... Quando aqui é um [apontando para o número da figura] aqui [apontando para o desenho da figura 1] aparece o que?
Vic: – Nada, aparece zero. Quando é dois, aparece um, quando é três aparece dois.
Professor: – Então, quando for “n”, tem que aparecer o que?
Jô: – Ah... “n menos 1”

Enquanto as águas do saber serpenteavam pelas mentes, os sujeitos iam revelando seus meandros matemáticos e não demoraram em desaguar em uma límpida recorrência de 1ª ordem. A Figura 3 apresenta, em composição, a escrita algébrica de dois grupos. A observação da escrita adotada pelos(as) alunos(as) permite inferir que eles utilizam a álgebra como uma generalização da aritmética quando utilizam o (n – 1) substituindo os fatores de cinco em cada figura, mas avançam até a álgebra como estudo de relações ao parametrizar (n – 1) com o número, n, da figura (USISKIN, 1999, p.9-10).

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Figura 3 – Composição com escrita algébrica dos alunos . Fonte: acervo dos autores, 2018.

Ao fim dos 50 minutos de aula, era notória a alegria estampada nos rostos daqueles alunos e alunas. Parecia que tudo valera a pena! Eles aceitaram o convite e conseguiram resolver um problema matemático, com as matemáticas que eles fizeram emergir de suas discussões. De igual modo, o professor saía com a certeza de que sua prática havia mudado de tal maneira que seria impossível continuar acreditando que ensinar era transmitir conhecimentos e aprender é assimilação do que foi ensinado.

Em Goiânia, sopravam os ventos primaveris do mês de outubro, anunciando a chegada da estação das águas. Aquela aragem, contudo, chegou carregada dos odores de uma mudança desejada e necessária da prática docente. É nessa atmosfera profícua e desafiadora, ambiente de diversas histórias entrelaçadas e caleidoscópio de vivências em que um professor, um pesquisador, uma comunidade escolar se movimentam.

Referências

ALRØ, H.; SKOVSMOSE, O. Diálogo e Aprendizagem em Educação Matemática. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

BOLIVAR BOTIA, Antonio. "¿De nobis ipsis silemus?": Epistemología de la investigación biográfico-narrativa en educación. REDIE,  Ensenada , v. 4, n. 1, p. 01-26, 2002. 

BONDÍA LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista brasileira de educação, n. 19, 2002.

BUTTS, Thomas. Formulando problemas adequadamente. In: KRULIK, S.; REYS, E. A resolução de problemas na matemática escolar. São Paulo: Atual, p. 32-48, 1997.

GONCALVES JÚNIOR, Marcos Antonio; CARVALHO, Dione Lucchesi de. Perscrutando Diários de Aulas e Produzindo Narrativas sobre a Disciplina Estágio Supervisionado de um Curso de Licenciatura em Matemática. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 49, p. 777-798, Aug.  2014.

GONCALVES JÚNIOR, Marcos Antonio. Narrativas sobre o estágio da licenciatura em matemática: perscrutações sobre si. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2016.

INGOLD, Tim. Antropologia como/na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

SKOVSMOSE, Ole. Desafios da reflexão em educação matemática crítica. Campinas, SP: Papirus Editora, 2008.

USISKIN, Zalman. Conceptions of School Algebra and Uses of Variables. In: MOSES, Bárbara (Ed.). Algebraic Thinking, Grades K–12: Readings from NCTM’s School-Based Journals and Other Publications, Reston, Va.: National Council of Teachers of Mathematics, 1999. p. 7–13.