9. Restaurante, Garçons, Mesas e Lugares Disponíveis: um prato cheio para a investigação matemática na sala de aula
p.105Renato Sardinha
Luciana Parente Rocha
Resumo: A pretensão deste capítulo é refletir e dividir com os nossos colegas professores um pouco daquilo que vivenciamos ao trabalhar com a Investigação Matemática (IM) na sala de aula, levando em conta o que propõe o professor pesquisador português, João Pedro da Ponte. Os desafios são apresentados a todo o momento, seja no planejamento das aulas, na criação de tarefas interessantes para os alunos, na dinâmica da sala de aula e no comportamento dos alunos em relação às atividades em grupos. Para os alunos, as dificuldades centram-se na organização da leitura e da interpretação dos textos, na capacidade argumentativa no grupo, na criação de estratégias de resolução, no registro escrito das ideias e na comunicação oral perante a turma. Em relação aos professores, é visível o aumento do trabalho nessa proposta de ensino; porém, é gratificante perceber o quanto as crianças, mesmo em tenra idade, se desenvolvem e se apropriam da linguagem e das estratégias matemáticas. Outro desafio diz respeito a nossa ansiedade em conter o impulso de dizer ao aluno o que é para ser investigado ou mostrar-lhe algumas possibilidades de caminhos como resposta, pois isso não contribui para o desenvolvimento da sua autonomia nos estudos. Certamente, as dificuldades encontradas foram muitas, mas isso contribuiu para o crescimento dos alunos e também dos professores. Este relato diz respeito às aulas investigativas que ocorreram com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação, o CEPAE/UFG, a partir do trabalho vinculado ao Projeto de Ensino Investigação Matemática em Sala de Aula: o aluno como pensador autônomo.
Palavras-chave:Investigação Matemática. Resolução de Problemas. Trabalho Colaborativo.
Introdução e contextualização
Este capítulo tem por objetivo relatar as experiências de ensino e de aprendizagem de dois professores, no ano de 2018, em uma turma de 5º ano do ensino Fundamental, no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE), da Universidade Federal de Goiás (UFG), no que diz respeito à proposta pedagógica denominada de Investigação Matemática em Sala de Aula: o aluno como pensador autônomo.
A abordagem da Investigação Matemática (IM) está relacionada à resolução de problemas, que se apresenta, também, de forma instigante e criativa para os professores e para os seus alunos. A IM parte de situações desafiadoras e abertas, que permitem aos estudantes um leque de soluções, promovendo o pensamento livre e a possibilidade de experimentar, de argumentar, desenvolvendo a autonomia e a comunicação, que são elementos fundamentais na formação social dos alunos.
As nossas experiências fazem parte de um projeto de ensino intitulado: “Investigação Matemática em sala de aula: o aluno como pensador autônomo”, que é desenvolvido em turmas de 5º e 6º anos no CEPAE/UFG, desde o ano de 2015. No contexto desse projeto, as cinco aulas de Matemática são divididas em dois ambientes distintos: três aulas acontecem na sala de aula, com um professor regente, e as duas outras aulas são realizadas no Laboratório de Ensino e Pesquisa em Educação Matemática (LEPEM), com dois professores, que trabalham simultaneamente com os alunos da turma.
p.106O projeto de ensino que destacamos nasceu das discussões realizadas no grupo de pesquisa colaborativa, denominado “Abakós: Práticas Formativas e Colaborativas em Educação Matemática na Escola”, visando dar suporte tanto a nossa prática, quanto aos projetos didático-investigativos dos licenciandos em Matemática, ao desenvolverem os seus estágios no CEPAE. O Abakós é um grupo heterogêneo, composto por professores pesquisadores e formadores dos Departamentos de Matemática e de Pedagogia do CEPAE/UFG e do Instituto de Matemática e Estatística (IME/UFG), por estagiários do IME e por professores de instituições públicas e privadas do Estado de Goiás, bem como por alunos dos Programas de Pós-graduação em Educação Básica e Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática, ambos da UFG.
Estudos de Melo e Fiorentini (2008) e Passos et al. (2006) apontam que práticas reflexivas e colaborativas são importantes ferramentas no desenvolvimento profissional docente, por proporcionarem momentos de estreita relação entre a reflexão e a própria prática, pelo diálogo entre o ensino e a pesquisa, e a articulação entre a teoria e a prática. É nessa visão colaborativa e reflexiva que temos trabalhado com os nossos alunos e que, a partir de agora, vamos discorrer sobre o que vivenciamos ao aplicar uma tarefa investigativa para os alunos de uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental.
Dialogando com a teoria
Uma das preocupações que nós, autores deste capítulo, sempre temos em nossa jornada profissional é fazer com que aquilo que ensinamos aos nossos alunos seja significativo e útil para a sua vida. É comum o professor de Matemática perceber que os seus alunos estão entediados ou desconectados da sua aula e, mesmo assim, insistir com as suas convicções inabaláveis, sem se preocupar com qualquer renovação pedagógica que possa auxiliá-lo a transpor esse obstáculo em seu ofício. Sobre as renovações pedagógicas, vale refletir sobre o que La Taille (1998, p. 33) escreveu:
Ao procurar adequar o ensino aos interesses dos alunos, [as renovações pedagógicas] buscam impulso motivacional que ajuda a fazer projetos e crescer; ao procurar uma aprendizagem significativa, respeitam a inteligência da criança e a ajudam na paulatina construção do conhecimento.
Foi seguindo esse caminho, o de respeitar a inteligência da criança, observando o seu processo de crescimento intelectual e de maturação psicológica, que nos aventuramos no uso da Investigação Matemática na sala de aula, com turmas de 5º ano do Ensino Fundamental no CEPAE. Nessa proposta pedagógica, os alunos trabalham sempre em pequenos grupos e recebem tarefas para serem discutidas na busca por soluções de problemas (que podem ser abertos ou fechados), considerando a estrutura apresentada por Ponte, Brocardo e Oliveira (2016) nos seus estudos.
Nesta altura, talvez o leitor ou a leitora deste texto esteja se questionando: “Resolução de problemas? De novo?” De fato, o termo “problema”, no campo do ensino da Matemática, está por demais desgastado e banalizado. Tornou-se bastante comum o emprego da palavra problema nas tarefas que envolvem exercícios apenas repetitivos (do tipo “siga o modelo”), que não instigam a curiosidade, o interesse ou a aplicação daquilo que se estuda na vida desses estudantes.
p.107Para não incorrermos na vulgarização do termo “problema”, que vai aparecer por diversas vezes por aqui, vamos ponderar sobre o que Vila e Callejo (2006, p. 10) propõem:
Consideramos que um problema não é somente uma tarefa matemática, mas uma ferramenta para pensar matematicamente, um meio para criar ambiente de aprendizagem que forme sujeitos autônomos, críticos e propositivos, capazes de se perguntar pelos fatos, pelas interpretações e explicações, de ter seu próprio critério estando, ao mesmo tempo, abertos aos de outras pessoas.
Ora, não queremos apenas considerar os problemas matemáticos livrescos, na nossa proposta de trabalho, com a Investigação Matemática na sala de aula. Pretendemos ir além, buscando desenvolver, também, o pensamento das crianças para lidar com situações do dia a dia, por meio de instrumentos que nem sempre são proporcionados pela escola. A esse respeito, nos lembramos do que escreveu Rubem Alves (2001, p. 52):
Nunca ninguém me disse que eu deveria aprender a descascar laranjas. Aprendi porque via o meu pai descascando laranjas com mestria ímpar, sem arrebentar a casca e sem ferir a laranja, e eu queria fazer aquilo que ele fazia.
Quantas coisas nós podemos e devemos aprender para lidar com os problemas que a vida nos apresenta? Também não há, no manual da escola, uma metodologia que ensine uma pessoa a descascar um abacaxi, que somente oferece o seu saboroso e suculento néctar àqueles que conseguirem se desvencilhar da sua complexa casca protetora, daí o termo popular que também é bastante conhecido dos professores, no seu cotidiano.
Observar a sala de aula em movimento contínuo e crescente não é tarefa fácil para o professor, mas isso se torna factível quando ele se propõe a sair da sua zona de conforto. Para o ensino da Matemática, é comum as tendências pedagógicas indicarem o uso da resolução de problemas como estratégia a ser seguida, principalmente quando nos referimos ao que foi proposto por George Pólya (2006).
De acordo com Pólya (2006), resolver problemas requer habilidades específicas e um caminho estruturado, como o especificado a seguir: 1. Compreender o problema proposto; 2. Estabelecer um plano de ação para a resolução do problema; 3. Executar o plano estabelecido; 4. Fazer um retrospecto da resolução (revisar e verificar aquilo que foi feito). Analogamente, de acordo com Ponte, Brocardo e Oliveira (2016), a Investigação Matemática em sala de aula envolve quatro passos: 1. Reconhecer a situação problemática; 2. Formular conjecturas ou hipóteses; 3. Testar e refinar as conjecturas; 4. Justificar e demonstrar as ideias levantadas, ressaltando que os itens 2 e 3 podem andar juntos. Pólya (2006, p. 18) diz que:
p.108Resolver problemas é uma habilidade prática, como nadar, esquiar ou tocar piano: você pode aprendê-la por meio de imitação e prática. [...] se você quer aprender a nadar você tem de ir à água e se você quer se tornar um bom “resolvedor de problemas”, tem que resolver problemas.
Esta indicação do autor nos mostra que, se o professor não se preocupar em apresentar propostas de resolução de problemas significativos aos seus alunos, certamente eles continuarão com as mesmas dificuldades para compreender a Matemática como ferramenta para enfrentar os desafios da vida, que virão para todos, de uma forma ou de outra.
Neste momento, achamos importante dizer o que diferencia uma proposta no âmbito da Investigação Matemática na sala de aula de, por exemplo, uma aplicação sistematizada de problemas para serem resolvidos pelos alunos. João Pedro da Ponte (2017, p. 59) nos dá uma luz sobre essa questão:
A investigação só termina quando foi comunicada a um grupo para o qual ela faz sentido, discutida e validada no seu seio. [...] Ou seja, a investigação envolve uma metodologia, mas envolve também uma pergunta diretora e uma atividade de divulgação e partilha.
Concordamos com o professor João Pedro da Ponte no sentido de que não basta apenas apresentar problemas interessantes para os nossos alunos. Vale muito o uso de uma metodologia própria para que se investigue matematicamente na sala de aula, principalmente quando valorizamos a comunicação das estratégias que foram utilizadas pelos alunos e a socialização dessas ideias para serem validadas, ou não, por meio da partilha entre os pares, ou seja, a validação daquilo que foi encontrado ou descoberto é feita pelos próprios alunos.
Para a nossa reflexão, vale lembrar que há uma gama ampla de tipos de problemas matemáticos que podem ser trabalhados pelos professores na sala de aula. Para Toledo e Toledo (2010, p. 85), alguns tipos são frequentemente encontrados nos livros didáticos e utilizados pelos professores nas suas aulas: “arme e efetue” – cujo foco reside no treino de técnicas operatórias; “problemas de enredo” – são aqueles que envolvem as operações que estão sendo estudadas no momento; “problemas não convencionais” – são capazes de desenvolver nos alunos a habilidade de planejar, elaborar estratégias gerais de compreensão do problema, tentar soluções, avaliar a adequação do raciocínio desenvolvido e os resultados encontrados; e, finalmente, “problemas de aplicação” – que são problemas elaborados a partir de uma situação de vivência dos alunos, sendo que a sua resolução exige o uso de conceitos, técnicas e processos matemáticos já estabelecidos.
A proposta que apresentamos no projeto de ensino e nas nossas aulas foi a criação de “problemas não convencionais” para serem trabalhados com os alunos, o que está adequado ao que nos propõem Ponte, Brocardo e Oliveira (2016), que sugerem uma abordagem criativa na elaboração das tarefas matemáticas. De acordo com esses autores, a IM na sala de aula possibilita ao professor trabalhar o processo criativo dos seus alunos, propondo-lhes situações (que podem ser anedóticas ou não) que geram discussões acaloradas entre esses alunos, pois os problemas apresentados não necessariamente possuem uma única resposta a ser dada ou solução única a ser encontrada.
A descrição e a discussão, que faremos a seguir, têm como pano de fundo uma tarefa investigativa que foi aplicada aos nossos alunos do 5º ano do Ensino Fundamental. Procuraremos dialogar com os autores aqui referenciados e com outros que julgamos oportunos ou necessários, ao longo do presente texto. Além disso, queremos narrar os momentos de angústias, os desafios, as descobertas e as alegrias que experimentamos com os alunos nas aulas de investigação matemática que propusemos.
p.109Desenvolvimento da aula
Por onde começamos
Ao escrever este capítulo, começamos por dizer que as nossas aulas foram e são recheadas de registros, sejam eles orais, escritos ou pictográficos. Como o objetivo deste texto é compartilhar uma história de sala de aula, vivenciada por dois professores de Matemática do 5º ano do CEPAE/UFG, em uma abordagem investigativa no ensino da Matemática, procuraremos fazer uma narrativa mais descritiva das aulas, destacando aquilo que observamos e o que, de fato, saltou aos nossos olhos naqueles encontros que tivemos.
Vamos considerar como fonte de pesquisa os cadernos e os registros dos alunos, nas aulas realizadas no LEPEM do CEPAE/UFG, além das anotações dos dois professores, que sempre dialogaram sobre o que ocorria em cada encontro com a turma. A reflexão recaia tanto sobre as tarefas aplicadas, quanto sobre as reações e as produções dos alunos.
A dinâmica das aulas no LEPEM
Na nossa turma, as aulas de Matemática no LEPEM aconteciam sempre após o recreio. Por conta disso, as crianças chegavam cheias de energia, suadas e fazendo muito barulho, características que são esperadas para a idade e que enchem qualquer espaço da escola de alegria e de vida. Ao entrarem no laboratório, os alunos portam apenas uma garrafinha com água, pois todo o material que eles utilizam é de uso coletivo e disponibilizado pelos professores. Desse modo, nós colocamos sobre as amplas mesas da sala, que estão dispostas em ‘U’, materiais como lápis, caneta, borracha, apontador, régua, papel para rascunho, papel Kraft, pinceis e fitas adesivas, além daqueles materiais específicos para a aula em questão, além do material de apoio que criamos e denominamos de “Livro de Tarefas: investigando nas aulas de Matemática”. Essa dinâmica funciona bem porque ela foi acordada com os alunos, já nas primeiras aulas que tivemos naquele ano letivo.
A organização do LEPEM é diferente da nossa sala de aula. Nele, há mesas grandes que contribuem para o trabalho coletivo entre os estudantes, armários com diversos materiais pedagógicos, como dominós das quatro operações, sólidos geométricos, jogos pedagógicos, réguas, relógios, copo medidor, balanças, material dourado, ábacos, calculadoras eletrônicas etc. Este espaço, apesar de estar fisicamente localizado no prédio em que se encontram as turmas dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental da escola, é utilizado por todos os professores de Matemática do CEPAE, ficando também disponível aos demais docentes que se interessarem pelo seu uso.
Nas paredes do LEPEM, existem cartazes afixados, nos quais podemos ler a sequência dos três “momentos” da aula investigativa: (1º) O que é para ser investigado? (2º) Vamos testar as nossas ideias? (3º) Vamos ouvir o grupo!
Por fim, não pense o leitor ou a leitora que essa organização da dinâmica no LEPEM e os “momentos” fluem tranquilamente na aula, pois os estudantes vivenciam um processo de organização do seu pensamento e de evolução da sua escrita formal. Isso requer tempo, paciência e insistência por parte dos professores que se propõem a trabalhar com a Investigação Matemática na sala de aula.
p.110A tarefa proposta para a aula
Primeiro, queremos destacar o uso da palavra “tarefa” neste texto. Para Ponte (2017, p. 104), “Uma tarefa é, assim, o objetivo da atividade [...]. É formulando tarefas adequadas que o professor pode suscitar a atividade do aluno”.
De modo geral, uma aula investigativa parte de uma tarefa, envolta em um problema ou em uma situação problemática, que foi criada pelos professores com objetivos específicos (veja a Tarefa proposta no Quadro 1), tentando abordar os conhecimentos que são adequados aos seus alunos, de acordo com a sua faixa etária e o ano escolar em que se encontram.
Um grupo de amigos sempre se reúne para assistir aos jogos da Seleção Brasileira, no restaurante Pança Cheia. Em 2018, ano de Copa do Mundo, não foi diferente. Eles combinaram entre si, marcaram o horário e os amigos foram chegando ao local para a farra. Sempre há uma pequena confusão na organização das mesas, que são todas iguais e quadradas, comportando 4 cadeiras cada uma. À medida que os amigos vão chegando, os garçons correm de um lado para o outro, fazendo a ‘emenda’ das mesas, para que todos fiquem acomodados em seus lugares. Em certo dia, na Copa de 2018, chegaram 39 amigos para ver o jogo. Novamente, várias mesas foram arrumadas de tal modo a acomodar o grande grupo. Jonescrildo, o rapaz que representava a turma, ficou curioso ao ver a habilidade dos garçons ao organizar o espaço do restaurante. Também lhe veio algo à mente: uma mesa, sozinha, é suficiente para acomodar 4 pessoas. Agora, somos 39! Então, serão utilizadas várias mesas para acomodar o grupo todo. Ficou pensando como poderia fazer para diminuir aquela confusão inicial. Ora, se soubesse exatamente quantas pessoas iriam, bastaria informar ao metre (que é o chefe dos garçons) com antecedência esse número e as mesas e cadeiras poderiam ser organizadas antes da chegada das pessoas. Simples assim! Quem sabe, neste ano, ele consiga fazer isso. Jonescrildo resolveu pensar sobre o assunto e já teve uma ideia para facilitar a vida dos profissionais do restaurante...
A turma do 5º ano era composta por trinta estudantes, com faixa etária entre nove e dez anos. A tarefa “Copa do mundo: reunindo amigos” estava prevista para acontecer em dois encontros, ou seja, em dois dias, com cem minutos de aula cada um.
Resumidamente, os alunos deveriam ler o texto e compreender que havia a necessidade de descobrir uma maneira para organizar um grupo de amigos sentados em mesas quadradas, com quatro cadeiras cada, que seriam unidas de tal modo que ninguém ficasse de pé. Isso equivale a pensar no seguinte: se sabemos quantas pessoas irão se reunir em um restaurante, quantas mesas quadradas, “emendadas” umas nas outras, seriam necessárias para que todos ficassem devidamente acomodados?
p.111A aula flui...
Conforme já descrevemos, os alunos entraram no LEPEM cheios de energia, após o intervalo das aulas, o que geralmente traz dificuldade inicial para retomarem a aula e se conectarem àquilo que os professores têm a apresentar naquele momento. Após uma conversa inicial com a turma, iniciamos a tarefa do dia com os grupos formados livremente, contendo cinco alunos cada um. Interessante notar que muitos alunos fazem uma leitura aligeirada do texto e já “encontram uma solução rápida” para o problema. Seria interessante se fosse assim mesmo, mas sabemos que, na maioria das vezes, eles se mostram ingênuos e ansiosos para encontrar a solução do problema apresentado, mesmo já sabendo que, em muitas das tarefas que propomos, não temos solução única ou, até mesmo, não encontramos a solução para o problema apresentado.
Também, como já explicitamos, existem os “três momentos” da aula investigativa que devem ser respeitados por todos os grupos, ao longo dos seus estudos e das apresentações que farão ali mesmo no LEPEM. Durante as nossas aulas investigativas, observamos que há dificuldades por grande parte dos alunos nos “1º e 3º momentos”, pois eles envolvem e exigem interpretação de texto, escrita mais elaborada e poder de síntese e de argumentação convincente por parte dos componentes de cada grupo de trabalho.
O “1º momento” diz respeito aos registros iniciais das ideias de cada grupo, o que depende da interpretação do texto apresentado e das discussões que são feitas inicialmente pelos alunos. Curiosamente, percebemos que eles costumam se dedicar mais ao “2º momento”, que é aquele no qual há a apresentação de ideias sobre como resolver o problema, quando é feito o levantamento de hipóteses, a realização de testes e a construção das conjecturas dos grupos. Considerando esse aspecto, escolhemos analisar alguns registros do “2º momento”, que foram feitos pelos alunos nas nossas aulas.
A aluna R fez os seus registros do 2º momento de forma bastante peculiar, conforme consta na Figura 1. Os desenhos nos mostram que o seu raciocínio partiu da tentativa de testar algumas possibilidades, sempre pensando em descobrir se as junções que ela faria com as mesas dariam para comportar todos os 39 amigos sentados. Isso equivale a tentar confirmar, ou refutar, a afirmação presente no texto, de que seriam necessárias apenas 10 mesas para acomodar todas as pessoas sentadas.
p.112O raciocínio da aluna R foi muito interessante e, de fato, ela conseguiu perceber que o número de mesas deveria ser dobrado (multiplicado por 2) e mais 2 mesas deveriam ser acrescentadas no final – isto ficou evidente nas sucessivas adições que ela apresentou, no final dos seus registros –, para que o problema das mesas e dos lugares fosse resolvido.
Agora, iremos analisar as ideias da aluna AL, de acordo com o registro da Figura 2.
Esta aluna fez esquemas diferentes, pois pensou em outras possibilidades que não aquela de “emendar” as mesas apenas em linha reta. Ela fez testes com as mesas compostas em “L”, em “formato quadrado” e na forma solta, “sem juntar”, embora este último formato não estivesse associado ao enunciado da tarefa em questão e, naturalmente, não implicaria em um problema a ser resolvido.
Outro fato que nos chamou a atenção no registo de AL foi que, já sabendo o que era para ser investigado, ela usou o algoritmo da divisão (canto superior esquerdo da folha) de forma equivocada, dividindo o total de pessoas que precisavam de lugar para se sentar, 39, pelo número de mesas, 10, obtendo o resto 1. Além disso, ela fez mais dois algoritmos – de divisão e de multiplicação –, mas nos parece que abandonou essa ideia, talvez porque, ao fazer os testes, tenha percebido que os algoritmos não colaborariam para responder à questão investigada, por isso ela escreveu “não” ao lado das conjecturas que abandonou.
Ressaltamos aqui a liberdade da aluna para testar as suas ideias, liberdade essa expressa na busca por regularidades, ao usar estratégias diversas, indo além das possibilidades dadas no enunciado da tarefa. Essa questão da busca pela regularidade está entre os elementos característicos do pensamento algébrico, segundo os pesquisadores Fiorentini, Miorim e Miguel (1993).
p.113Acreditamos que a realização de atividades investigativas na sala de aula, ainda nos primeiros anos de escolarização, tem se mostrado como uma importante ferramenta para o desenvolvimento do pensamento e da linguagem algébrica do aluno. A tarefa de investigar, na exploração de padrões, partindo de situações concretas, generaliza regras e desafia os estudantes a pensar algebricamente. A investigação é uma metodologia de ensino que pode ser utilizada desde as séries iniciais, desde que o professor trabalhe no estudante tal habilidade e conduza o processo de investigação (MATOS; BRANCO; PONTE, 2005, p. 54-59).
Quando nós, professores, passamos a trabalhar com a Investigação Matemática na sala de aula, percebemos a importância de estimular os alunos e de lhes dar a autonomia necessária para o desenvolvimento das suas ideias e para a construção do seu raciocínio. Para que estes dois fatores ocorram, devemos levar em conta a comunicação presente na aula e, portanto, vale lembrar o que Ponte e Quaresma (2017, p. 285) pontuaram: “A comunicação em sala de aula marca de modo decisivo as oportunidades de aprendizagem dos alunos. Esta comunicação é unívoca, quando é dominada pelo professor, ou dialógica, quando a contribuição dos alunos é valorizada”. Portanto, podemos concluir que o diálogo entre professores, alunos e também entre os próprios alunos é essencial para uma abordagem investigativa nas aulas de Matemática.
Os alunos que estão participando ativamente das aulas de Matemática de forma investigativa nos surpreendem o tempo todo. É importante salientar que nem todos eles são produtivos nas aulas, que temos problemas semelhantes àqueles que teríamos na sala de aula convencional. O que estamos discutindo é uma possibilidade pedagógica distinta de lhes proporcionar situações nas quais eles possam exercer a sua criatividade, a sua liberdade de expressão e, ainda, desenvolver o seu raciocínio lógico-hipotético-dedutivo, o que não é pouco para essas crianças.
O caso do aluno MV, na Figura 3, nos surpreendeu por apresentar um raciocínio limpo e criativo, ao tentar vários caminhos distintos buscando uma solução para o problema apresentado. No canto superior direito, por exemplo, ele tenta expor o seu raciocínio, usando uma tabela, sem explicitar que informações estão dispostas nas linhas e nas colunas. Entretanto, é possível perceber que ele compreendeu que existia uma relação nas linhas entre si – que é o número de cadeiras que se perde quando se juntam as mesas.
p.114O aluno MV utilizou uma lógica um pouco mais avançada para a sua idade, que é de apenas 10 anos, e conseguiu relacionar o número de mesas e de cadeiras por meio de uma tabela rudimentar. O mais impressionante foi a sua capacidade de fazer a dedução do “acréscimo de 2 cadeiras”, mesmo sem construir uma tabela mais ampla. Além disso, ele percebeu que havia uma adição de 2 parcelas repetidas, além desse acréscimo de 2 unidades, ou melhor, de 2 cadeiras.
Os registros do aluno mostram que não é necessário o uso de uma linguagem estritamente formal para encontrar a resposta do problema, além de revelar a presença do processo de generalização, ao acrescentar o número 2 em seus escritos, que representa as cadeiras acrescentadas. Pesquisadores como Fiorentini, Miorim e Miguel (1993) acreditam que o pensamento algébrico pode ser desenvolvido de forma progressiva antes mesmo da aquisição de uma linguagem algébrica simbólica. Eles elencam alguns aspectos que são caracterizadores desse pensamento:
Quando a criança estabelece relações/comparações entre expressões numéricas ou padrões geométricos, percebe e tenta expressar as estruturas aritméticas de uma situação-problema [...]; desenvolve algum tipo de processo de generalização; percebe e tenta expressar regularidades ou invariâncias (FIORENTINI; MIORIM; MIGUEL, 1993, p. 5).
Nós, professores de Matemática do 5º ano, ficamos surpresos com a conclusão a qual chegou essa criança, embora ela não tenha conseguido fazer a comunicação eficiente para os demais integrantes da turma. Isso nos demonstrou, mais uma vez, que o “3º momento” ainda é uma barreira para muitos alunos, pois a dependência da escrita e do uso da oralidade perante a turma mostra-se como obstáculo para a socialização das ideias levantadas por vários alunos. Portanto, nós temos a consciência de que há muito que avançar nesses quesitos, quando trabalhamos com tarefas investigativas na sala de aula.
Considerações finais
Julgamos que, neste pequeno capítulo, não há muito que concluir sobre o uso da Investigação Matemática na sala de aula, o que demandaria uma discussão teórica mais ampla e aprofundada. Entretanto, faremos algumas considerações e observações sobre este relato de aulas investigativas, procurando diferenciar os desafios dos alunos e também os desafios enfrentados pelos professores, que estão imersos nesta jornada contínua de ensino e de aprendizagem.
Os desafios dos alunos
Conseguimos perceber que a maior dificuldade encontrada pelos alunos tem sido a leitura compreensiva do texto que lhes apresentamos, do qual eles deveriam retirar o problema a ser resolvido, destacando a pergunta que ali estava oculta ou, até mesmo, exposta. Também ficou visível a resistência que algumas crianças possuem para trabalhar em grupos, mesmo que seja com poucos colegas e que a escolha dos seus integrantes tenha sido feita pelos próprios participantes da turma. Há justificativas variadas para essa não aceitação nos grupos, mas o professor precisa aprender a lidar com essa situação, que surge em todos os níveis de ensino.
Das três partes da aula investigativa, que chamamos de “momentos”, o “3º momento” é o mais aguardado, tanto pelos alunos quanto pelos professores. Porém, nem sempre os resultados apresentados são os esperados. No momento das apresentações dos grupos, a turma fica organizada na forma de “U”, ou seja, nenhum aluno ou professor fica no centro da sala. Isso possibilita uma ampla visão do espaço do LEPEM por todos e permite aos alunos interagirem com os conhecimentos que eles mesmos produziram, fazendo levantamento de hipóteses, construção de conjecturas e defendendo as suas ideias com muita veemência.
p.115Outro fato a ser destacado é que, na prática, nem todos os grupos conseguem chegar a uma generalização ou a uma solução plausível para o problema proposto na tarefa, mas é notável o avanço do raciocínio lógico-hipotético-dedutivo que as crianças desenvolvem, utilizando desenhos e esquemas próprios para representá-lo. Essa observação nos fez perceber que o uso da IM na sala de aula pode proporcionar liberdade de pensamento às crianças, pois elas se sentem encorajadas a lançar voos solos, sem a preocupação com o rigor característico do universo da Matemática.
Os desafios dos professores
Considerando que “[...] investigar matematicamente envolve a participação do aluno num processo ativo, em que seu esforço na construção do conhecimento se faz imprescindível” (VARIZO; MAGALHÃES, 2016, p. 23), nós assumimos aqui que também encontramos dificuldades para trabalhar com a IM na sala de aula. Uma das dificuldades diz respeito ao hábito que nós, professores, temos de sempre mostrar aos alunos a pergunta do problema proposto, indicando o que deverá ser feito por eles, como se o caminho e a resposta fossem únicos. É verdade que, em muitas situações, isso pode ser desejado, mas as tarefas que criamos e apresentamos aos nossos alunos têm propósitos bastante definidos e não buscam somente uma solução, muito menos esperam por um único caminho a ser trilhado nessa busca.
Outro ponto a ser considerado é o excesso de ansiedade que a turma demonstrava, ao se deparar com as tarefas apresentadas pelos professores, levando em consideração a abordagem da IM na sala de aula. Observamos que, talvez por trabalharmos com crianças na faixa de 10 anos, os alunos despendiam bastante tempo desenhando e colorindo o material impresso que era fornecido pelos professores, desviando a sua atenção da tarefa inicialmente proposta. Entretanto, nós queremos ratificar que permitimos e estimulamos a criatividade artística dos nossos alunos, em todas as instâncias possíveis.
Exemplo do que foi dito no parágrafo anterior pode ser encontrado na Figura 4, que apresenta adornos e estilos gráficos bastante definidos. Durante o nosso processo de busca de material para a análise e a escrita do presente texto, nos deparamos com uma “declaração de amor” às atividades do LEPEM, feita pela aluna M, no seu material de apoio. Esse tipo de registro nos mostra o quão gratificante tem sido o nosso esforço, na tentativa de tornar as aulas de Matemática mais interessantes e estimulantes para os alunos, tendo o privilégio de despertar nessas crianças o verdadeiro amor pelo conhecimento, nas suas variadas instâncias.
p.116Mais um ponto que queremos destacar é que coordenar a turma de forma produtiva no “3º momento”, no qual a exigência maior é o saber ouvir os colegas, é sempre um desafio para os professores. Os docentes também precisam exercitar a capacidade de síntese dos estudantes, que apresentam ou defendem os seus “achados” da investigação, sem interferir de forma contundente no debate e nas argumentações feitas pelos alunos, durante as suas exposições.
Parafraseando Vila e Callejo (2006), percebemos com o nosso trabalho que o uso da Investigação Matemática na sala de aula não é somente mais uma “tendência” a ser utilizada pelos professores, mas uma ferramenta para pensar matematicamente, um meio para criar ambientes de aprendizagem que formem sujeitos autônomos e críticos, capazes de enfrentar os problemas que temos atualmente na nossa sociedade ou aqueles que ainda estão por vir.
Referências
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