8. Educação Matemática na Escola: transdisciplinaridade em uma proposta de Educação Estatística

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Uyara Soares Cavalcanti Teixeira
Ricardo Antonio Gonçalves Teixeira
Anny Jackeline Rodrigues da Silva

Resumo: O presente texto traz como tema a educação matemática em uma prática pedagógica, escolar, desenvolvida no âmbito de uma pesquisa em movimento harmônico entre ensino e extensão. Como objetivo, apresenta-se uma proposta de intervenção pedagógica, de característica transdisciplinar, de perspectivas de mudanças, em educação estatística. Fundamenta-se na transdisciplinaridade enquanto contraponto ao modelo de ensino disciplinarizado, universal e padrão e no diálogo e trabalho coletivo como ato político, no exercício da construção da autonomia. Este estudo expõe o contexto histórico e constitutivo da educação matemática, bem como o lugar da educação estatística enquanto movimento educacional. A pesquisa, de natureza qualitativa, tem na pesquisa-ação, a partir da complexidade da démarche do desenho proposto, a variante da pesquisa-ação integral e sistêmica (PAIS) como suporte metodológico. Participaram como sujeitos da pesquisa os estudantes das terceiras séries do Ensino Médio, os respectivos professores e a equipe gestora de uma escola da rede estadual de ensino de Goiânia, Goiás. O estudo contou com a colaboração de 24 estudantes matriculados em uma disciplina ofertada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Expõe a análise do contexto de um dos seis temas desenvolvidos na escola, sendo ele “Saúde e Meio Ambiente”. Enquanto resultado, para além da significativa aprendizagem dos conteúdos propostos em estatística, a pesquisa provocou mudanças significativas e transformadoras no contexto escolar.

Palavras-chave: Educação matemática. Educação estatística. Interdisciplinaridade. Pesquisa-ação integral e sistêmica.

A transdisciplinaridade no processo de formação crítica e reflexiva

Apresentamos, aqui, o resultado de um estudo sobre estatística no contexto escolar, cujo desenvolvimento se deu em uma escola da rede estadual de Goiânia, tendo como objetivo conduzir uma proposta de intervenção pedagógica, de característica transdisciplinar, de perspectivas de mudanças, em educação estatística.

Como espaço síntese da sociedade, em termos de concepção, a escola se caracteriza como um lócus privilegiado para a educação no contexto de formação integral humana. O objetivo de compartilhamento de saberes historicamente acumulados para o desenvolvimento dos educandos, para o bem comum, para convivência coletiva e qualidade de vida social, tem sido ameaçado pelo movimento globalizador da sociedade que se baseia na economia, na acumulação de riquezas e no processo de racionalização para produção em larga escala. Tais fatores demandam da escola uma formação de sujeitos com conhecimentos aplicados e que estejam preparados para a competição, na busca constante, a todo custo, pelo resultado, pelo sucesso.

As avaliações estandardizadas são reflexos da globalização que propõe um modelo escolar com base na competição nos diferentes níveis: local, regional, nacional e internacional. Assim, é possível, a partir de um padrão de avaliação previamente estabelecido de saberes a serem acumulados, para diversos fins, comparar o desempenho dos estudantes, das escolas e das nações, com exposição pública dos escores adquiridos nos diferentes níveis.

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A transdisciplinaridade é uma proposta que se estabelece na contramão desse modelo universal e padrão, caracterizando, pois, como um resgate ao local, ao que é próprio da escola e dos sujeitos que a compõe. Não um local que desconsidera outros locais e, por conseguinte, o global, mas, sobretudo, uma construção que parte de um olhar para si, para o que é próprio, para o autoconhecimento, ao multiculturalismo, na direção de conhecer e se reconhecer no/com o outro.

É importante compreender que o movimento da transdisciplinaridade, que se inicia no local, se desencadeia no global. Mas não em um global globalizante e imperativo, colonizador, a partir de um modelo único e universal a ser seguido por todas as comunidades/nações, que homogeneíza, submete e aliena a autonomia do sujeito, conforme adverte D’Ambrósio (2001, p. 63):

Os erros do colonialismo não podem ser repetidos nessa nova fase das relações entre os indivíduos, as comunidades, os povos e as nações, que chamamos de globalização. Isto nos conduz necessariamente a uma análise das distintas formas de explicar, conhecer, entender, lidar e conviver com a realidade, reconhecida nas inúmeras e distintas culturas.

É preciso pensar em um processo de globalização que valorize e preserve as identidades locais, cujo objetivo se caracterize pelo compartilhamento de culturas, de experiências, de saberes. Que as pessoas, independentemente de sua nacionalidade, crença, gênero, cor, posição social ou políticas, sejam respeitadas pela condição de ser humano. É, pois, nesse contexto que a transdisciplinaridade caminha.

Na transdisciplinaridade, segundo D’Ambrósio (2011), o sujeito é levado à tomada de consciência de si e do outro, a partir da realidade social, natural, planetária e cósmica. Nessa perspectiva:

O essencial na transdisciplinaridade reside numa postura de reconhecimento que não há espaço e tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar, como mais correto ou mais certo ou mais verdadeiro, complexos de explicação e convivência com a realidade que nos cerca. (D’AMBRÓSIO, 2011, p. 11).

A transdisciplinaridade, no contexto escolar, se apresenta como um movimento de aproximação das fragmentadas disciplinas com a realidade que se encontra no lado externo dos muros da escola, que é desconsiderado no currículo escolar, nos tópicos abordados nos livros didáticos ou nos exames estandardizados. Não se trata de transmissão de um saber prático que explica, por definitivo, os fenômenos naturais e sociais, mas um saber inacabado, em construção, aberto a novas propostas e intervenções coletivas. Nesse contexto, é necessário pensar em uma educação na perspectiva Freireana, ou seja, como um ato político (FREIRE, 1989, 2001).

A educação, segundo Freire (1981), não pode se resumir a práticas de transferência de conhecimento que simulem a realidade, o que cercearia a consciência crítica, reforçando o analfabetismo político, a partir de práticas domesticadoras. Pelo contrário, deve ser ativa, na qual os educandos são convidados, de modo crítico, a conhecer e a desvelar a realidade. A educação, em essência, deve promover a libertação. Libertação das condições postas, da naturalização, do status quo, elementos presentes em uma escola neutra, vazia. É, pois, nesse ínterim que a transdisciplinaridade se apresenta, no sentido que a sua prática requer mudança de postura de seus atores – aluno, professor e comunidade escolar.

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A tomada de consciência se opõe ao princípio da neutralidade, assunto tão em voga no contexto político atual. Freire (1979a) expõe que a conscientização é o caminho para desvelar a realidade. É por meio dela que nos permitimos sair da condição de expectador ou observador externo para nos constituirmos integrantes, participantes e atuantes, em um protagonismo crítico. Não há conscientização sem a ação-reflexão, bases de um compromisso histórico. Para Freire (1979a, p. 15), “A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência-mundo”.

Partindo da premissa de que a conscientização é um ato cíclico e não deve cessar, por se caracterizar como uma atitude crítica, ativa e reflexiva do homem na história, não se pode conceber a propositura de uma escola que se estabelece como transmissora de saberes cientificamente consolidados, prontos e acabados. A transmissão desse modelo de conhecimento, a partir de depósitos de saberes, é denominado por Freire (1979a, 1979b, 1981, 1987) de educação bancária, cuja crença é de que quanto mais se dá, mais se sabe. Para o autor, “a experiência revela que com este mesmo sistema só se formam indivíduos medíocres, porque não há estímulo para a criação” (FREIRE, 1979b, p. 20). Em consonância com Freire, D’Ambrósio (2008, p.55) expõe que, nesse modelo de transmissão ou depósito, “o conhecimento disciplinar, e consequentemente a educação tem priorizado a defesa de saberes concluídos, inibindo a criação de novos saberes e determinando um comportamento social a eles subordinado”.

A transdisciplinaridade se apresenta como resposta a esse modelo escolar, na busca pelo mundo-vida para a tomada de consciência, para a realidade que é local ou global, em contraponto a disciplinarização de saberes e da sua homogeneização (D’AMBRÓSIO, 2008, 2011). Como síntese de uma proposta transformadora de uma prática conteudista, a escola deve assumir uma postura mais ativa, reflexiva e crítica diante das questões que se apresentam. Mudanças essas que em Freire (1979b) são compreendidas como tema gerador da prática teórica. Ou seja, ela se apresenta como tema da consciência, na busca de uma sociedade mais justa e igualitária que se dá por um caminhar coletivo. Para tanto, é necessário compreender que a realidade é mutável e, por conseguinte, possível de ser transformada.

Educação Matemática e o lugar da Educação Estatística

O contexto da Educação Matemática

A complexidade da organização da sociedade, impulsionada pelas novas tecnologias e meios de comunicações informacionais, tem exigido um novo perfil de cidadão, e, por conseguinte, uma reorganização escolar. O movimento de Educação Matemática é uma tentativa de resposta aos novos anseios da sociedade acerca dos objetivos da escola, cuja essência é contribuir efetivamente com o seu papel de (trans)formação de cidadãos para a vida social.

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A matemática e seu ensino têm se constituído, historicamente, em um saber elitizado, de difícil aprendizado e pouco acessível aos estudantes (D’AMBRÓSIO, 1993). A Educação Matemática surge no contraponto a esse modelo de matemática centrada no conteúdo e resultado, muito impulsionada pelo Movimento da Matemática Moderna (MMM), um movimento iniciado na década de 1930, na França, e intensificado no mundo nas décadas de 1950 e 1960. A ideia do MMM era atualizar/modernizar a matemática e os métodos de ensino, propagados pelas escolas, como uma tentativa de reduzir a distância entre a “academia”/universidade e a escola; tentativa lícita e plausível. Os resultados insatisfatórios do modelo tecnicista, formalista e abstrato que a matemática assumiu com esse movimento, provocou, dentre outros, a reprovação em massa, a falta de percepção de sua utilidade, além de pouco contribuir com o processo de formação dos educandos (MIORIN, 1998; MATOS; VALENTE, 2010).

O movimento de Educação Matemática inicia nos idos da década de 1970, pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática (GEPEM) e se intensifica no Brasil na década de 1980. Os constantes encontros de professores em fóruns e eventos da área e nos cursos de formação continuada, promovidos por diferentes instituições de ensino superior, culminou na fundação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM) – Criada durante o II Encontro de Educação Matemática (II ENEM), em 1988.

O movimento de Educação Matemática se estabeleceu e provocou importantes rupturas no modelo vigente nas escolas, além de contemplar construções de políticas públicas, com contribuições efetivas na construção da proposta dos Parâmetros Curriculares de Matemática (PCN) (BRASIL, 1997a; 2000); documento este que foi constituído em resposta à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/1996) (TEIXEIRA, 2010).

Muito embora os PCN de matemática apresentem limitações em diversas dimensões (embora ainda vigentes, tratam-se de documentos construídos há mais de duas décadas), eles contribuíram com avanços consideráveis nos rumos da educação brasileira. Há, porém, que se considerar a persistência, ainda hoje, de práticas no ensino de matemática recorrentes aos moldes tradicionais, o que reforça a necessidade de investimento de pesquisas, estudos e ações de formação continuada de professores (TEIXEIRA; TEIXEIRA; SOUSA, 2017).

Educação Estatística como tendência em educação matemática

As transformações nos processos educacionais, no Brasil, provocadas pelo movimento de conquista sócio-política de acesso escolar a crianças, jovens e adultos, têm conduzido a mudanças na distribuição dos recursos, nas orientações da organização escolar e a transformações no campo didático-pedagógico.

No contexto do processo ensino-aprendizagem da matemática, tais mudanças resultaram, em parte, de importantes contribuições de grupos de estudos sobre práticas pedagógicas, bem como de pesquisas realizadas nas instituições de ensino superior e na formação continuada de professores. É a partir das reflexões teórico-metodológicas acerca do sentido do ensino da matemática que surgem as denominadas tendências em educação matemática.

As tendências podem ser compreendidas como campo, área ou mesmo estratégias didático-pedagógicas – oriundas de construções teóricas; de demandas sociais, históricas, educacionais, tecnológicas e culturais; resultantes de experiências ou práticas exitosas ou mesmo propostas discutidas/elaboradas no âmbito da pesquisa – que se apresentam como alternativa ou como ação pedagógica inovadora no ensino de matemática em um contexto educacional e científico. Tendência esta que, de acordo com Ferreira (2003, p. 14), pode ser entendida como:

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[...] toda e qualquer orientação de cunho filosófico e pedagógico que determina padrões e ações educativas, ainda que esteja desprovida de uma reflexão e de uma intencionalidade mais concreta. Uma tendência pedagógica é, na verdade, uma inclinação por pensamentos e comportamentos pedagógicos lidos na história da educação ou mesmo em outras práticas pedagógicas hodiernas. Muitas vezes, em uma escola, em uma comunidade, percebem-se práticas educativas cuja orientação embora existente não é fruto de uma reflexão mais apurada, consensada. Assim, vão-se reproduzindo e tornam-se explicações do processo educativo, enraizando-se na dinâmica escolar. Por seu caráter provisório, já que demandam uma maior reflexão, estas orientações são consideradas tendências. Se fruto de análise, de pesquisas, de estudo passam desta configuração ao status de uma teoria, de uma proposta educativa.

É notório que as tendências variam em função do tempo, das experiências e dos resultados que alcançam. Buscamos, neste artigo, apresentar algumas perspectivas de autores ou documentos que abordam ou indicam tendências em educação matemática.

Lopes e Borba (1994) apresentam que várias pesquisas têm abordado a necessidade de se avançar sobre temas essenciais para a escola como enfrentamento do poder da avaliação e o problema de reprovação em massa; demandas por uma matemática crítica com vista ao incentivo de postura de questionamento; modelagem matemática na construção de linguagem e saberes matemáticos, demandados de um problema real; no envolvimento com a crescente tecnologia computacional; e na escrita matemática, como tentativa de aproximação entre a escrita, pensamento e expressão no campo da matemática.

Os PCN de matemática – Ensino Fundamental e Médio (BRASIL, 1997a, 2000) – embora não abordem a especificidade das tendências, como documento orientador, expõem os caminhos das pesquisas e os rumos políticos da educação, mais especialmente, da educação matemática, constituindo-se como importantes documentos orientadores das práticas pedagógicas. Esses documentos trazem para o campo educacional como um todo, de forma transversal, propostas de temas sociais que traduzem preocupações contemporâneas, como ética, saúde, meio ambiente, sexualidade, pluralidade cultural, trabalho e consumo (BRASIL, 1997b). Eles expõem a importância do uso das novas tecnologias nas escolas, apresentam a resolução de problemas e o lúdico como importantes propostas/estratégias para o ensino de matemática.

Groenwald, Silva e Mora (2004) destacam, em seu estudo, seis tendências consolidadas em educação matemática, sendo elas: (1) resolução de problemas – resgatando o contexto histórico, a abordagem dos PCN e as experiências e adequações; (2) modelagem matemática – como uma linguagem e interligada à resolução de problemas, a partir de situações práticas e significativas no contexto dos estudantes; (3) jogos e curiosidades matemáticas - retomando as propostas dos PCN com propostas de aprendizagem a partir de jogos, brincadeiras e demais propostas lúdicas; (4) novas tecnologias – como forma de conduzir a matemática e o seu ensino de forma a explorar o potencial que os diversos recursos/meios/estruturas/dispositivos tecnológicos possibilitam; (5) história da matemática – como forma de contextualizar, (re)construir fatos e conceitos acerca da matemática e suas experiências, além de estabelecer laços entre passado-presente-futuro; (6) etnomatemática – como movimento de valorização e resgate de histórias e culturas do ser humano em sua relação com a natureza/mundo/vida. Os autores em tela, por fim, apresentam/resgatam uma sétima tendência, segundo eles em voga: (7) ensino por projetos de trabalho que, segundo eles explicam, se apresenta vinculada à concepção de Educação Matemática Crítica.

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Zorzan (2007) apresenta, além da etnomatemática, da resolução de problemas, da modelagem em educação matemática e das novas tecnologias, a filosofia como uma nova tendência em educação matemática. Segundo a autora, tal tendência se apresenta como uma importante oportunidade de reflexão sobre a teoria e a prática educativa que leva em consideração o contexto do ensino da matemática e o ambiente sociocultural dos educandos.

No rol das tendências, apresentamos a educação estatística que, além contemplar o bloco de conteúdos propostos nos PCN de matemática – Tratamento da Informação (BRASIL, 1997a, 2000), com destaque especial para os Temas Transversais (BRASIL, 1997b), possibilita a integração com outras áreas, campos e demais tendências.

Martins e Ponte (2010) defendem o ensino de estatística na escola como oportunidade de proporcionar, nos educandos, o desenvolvimento da literacia estatística e da capacidade de planejamento, organização, tratamento/execução, interpretação e avaliação de investigações estatísticas. Literacia é um termo empregado por Ubiratan D’Ambrósio no campo educacional que, segundo expõe (D’AMBRÓSIO, 2005), em conjunto com materacia e tecnoracia, deveria fazer parte do currículo das escolas. Literacia é empregada pelo autor no sentido de possibilitar aos estudantes o desenvolvimento da “[...] capacidade de processar informação escrita e falada, que inclui leitura, escrita, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia, internet na vida cotidiana (instrumentos comunicativos)” (D’AMBRÓSIO, 2005, p. 119).

Campos et al. (2011), no contexto de experiências pedagógicas, trazem que a educação estatística, além de ser componente crítico no processo de formação de cidadãos, propicia o desenvolvimento de três competências – literacia, pensamento e raciocínio estatísticos – que conduzem, a partir do envolvimento com dados do mundo real, a sua integração com a educação crítica e a modelagem matemática.

Lima e Gonçalves (2017), também expressam a educação estatística como uma oportunidade de formação crítica dos educandos “sobretudo, por possibilitar uma postura ativa dos alunos enquanto pesquisadores e pela adoção de uma abordagem da matemática como ferramenta para resolução de problemas do dia a dia desses estudantes” (LIMA; GONÇALVES, 2017, p. 197). Para os autores, em conjunto com a modelagem matemática, a educação estatística possibilita a vivência com a pesquisa e com temas que expressam o mundo real, levando os estudantes a refletirem/questionarem a sua realidade.

No contexto deste artigo, nos propomos a apresentar os resultados de uma pesquisa desenvolvida em uma escola pública da rede estadual de Goiânia, em parceria com a Universidade Federal de Goiás. A pesquisa, a ser apresentada, buscou na educação estatística o diálogo com as ideias, concepções e bases da transdisciplinaridade no campo educacional, conforme expõe Ubiratan D’Ambrósio (D’AMBRÓSIO, 1993, 1995, 1998, 2001b, 2005, 2008, 2011), no sentido de possibilitar uma formação de base crítica, ativa e reflexiva na perspectiva freiriana (FREIRE, 1979a, 1979b, 1981, 1987, 1989, 2001).

Metodologia: os caminhos da investigação

A pesquisa partiu de um estudo exploratório, de natureza qualitativa. As pesquisas exploratórias, na visão de Gil (2008), buscam contribuir para a complementação de um conhecimento inicial, proporcionando uma visão ampla e geral de aproximação sobre o tema.

As pesquisas qualitativas demandam do pesquisador uma condução do observador que interage com os sujeitos em estudo, sem a busca pela neutralidade. Os investigadores, na pesquisa qualitativa, de acordo com Bodgan e Biklen (1994), ao assumirem que o comportamento humano é influenciado pelo contexto, buscam, no campo, o local para o estudo. Segundo expõem, “os investigadores qualitativos frequentam os locais de estudo porque se preocupam com o contexto” (BODGAN; BIKLEN, 1994, p. 48). Segundo Minayo (2001), a pesquisa qualitativa é responsável por responder questões particulares, preocupando-se com a compreensão da realidade humana que não pode ser quantificada, propondo um trabalho com o mundo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes.

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Enquanto método, em função da complexidade da démarche em estudo, optou-se pela Pesquisa-Ação Integral e Sistêmica (PAIS), proposta por Morin (2004). De acordo com o autor, trata-se de “uma metodologia de pesquisa que utiliza o pensamento sistêmico [...] para modelar um fenômeno complexo ativo em um ambiente igualmente em evolução, no intuito de permitir a um ator coletivo intervir nele para induzir uma mudança” (MORIN, 2004, p. 91). Ressalta-se que a intervenção, na pesquisa-ação, não se trata da imposição de saberes de agentes externos à instituição em estudo, que invadem o ambiente e apresentam soluções mágicas, mas de construções coletivas de novos saberes, cujas transformações ocorrem de dentro para fora, a partir da contribuição, do envolvimento, da participação e do engajamento dos atores-autores.

A escolha da pesquisa-ação como metodologia orientadora da pesquisa se deu pela sua natureza ativa e reflexiva diante da realidade pesquisada; pela produção de saber gestado na ação e na reflexão; pelo desenvolvimento de ações de intervenção construídas a partir da colaboração e participação de outros atores em cena; por valorizar o processo que culmina na produção de mudanças, muitas vezes inacabadas, mas colocadas em curso, e pela pesquisa-ação se apresentar como instrumento de mudança social.

A pesquisa se deu a partir de uma parceria firmada entre a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, via Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/FE/UFG), e uma escola da rede pública estadual de educação, localizada na capital goiana. Se constituíram como parceiros de pesquisa, denominados por atores-autores, os professores da terceira série do Ensino Médio, a coordenadora pedagógica da escola e os estudantes de mestrado e doutorado em educação da Faculdade de Educação da UFG. Elegemos como sujeitos, no campo de estudos, os alunos das quatro terceiras séries do Ensino Médio do turno matutino da escola.

A pesquisa foi realizada no período de janeiro de 2018 a março de 2019. Faz-se importante ressaltar que o convite para o trabalho coletivo partiu da referida instituição escolar, via solicitação da professora de matemática.

Em reunião envolvendo a equipe de gestão, os professores e demais interessados, foi estabelecido uma espécie de contrato em que foram detalhados os rumos da pesquisa, as ações e papéis a serem desempenhados por pesquisadores e participantes. Essa etapa da pesquisa-ação é referida, de acordo com Barbier (2002) e Morin (2004), como contratualização, apresentada como essencial no contexto das atividades a serem desenvolvidas na etapa de campo.

No âmbito da pesquisa de campo, valemo-nos da observação participante, segundo indica Barbier (2002), uma técnica que permite que o pesquisador, ao mesmo tempo em que se apresenta como observador, também participe do grupo, participação esta que busca interferir, não pretendendo a neutralidade. Desta feita, todos os lugares, momentos, espaços ou situações se constituem como campo de pesquisa, sem a necessidade de uma delimitação rígida e estipulada. Assim, se constituem como momentos da pesquisa os de característica formal/oficial como reuniões, encontros, grupos de estudo, bem como os de característica informal como os bate-papos durante o café, as conversas de corredores, as rodas e encontros de confraternização. A este contexto de oportunidades, Barbier (2002) denomina de lugar do conhecimento. Para registro dos dados coletados e comunicados em campo, utilizou-se diversos instrumentos/técnicas/meios, como diário de bordo, entrevistas individuais e coletivas, registros fotográficos, blog, dentre outros.

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No processo de análise das entrevistas e demais registros de natureza qualitativa, utilizou-se a Análise de Conteúdo, com base nos pressupostos de Bardin (2010) e Franco (2008), a partir da pré-análise, da exploração do material e do tratamento com inferência e análise dos resultados. Após a fase de leitura dos materiais, foram levantadas as principais unidades de sentido que emergiam do texto. A convergência de tais unidades conduziu, a posteriori, a aproximações que, por sua vez, nos conduziram ao processo de categorização. Como suporte à análise dos dados de natureza qualitativa, utilizou-se o software NVIVO, versão 11 e, para análise dos dados quantitativos, utilizou-se o software SPSS, versão 23.

Análise do investigado

A relação do trabalho docente com o ensino e a pesquisa é permeada por uma série de ações e, dentre elas, há o contrato estabelecido entre as partes integrantes da atividade pesquisadora. O contrato para a realização da pesquisa, aqui apresentada e analisada, foi firmado a partir da parceria entre uma escola da rede pública estadual de Goiânia e a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, via Ação de Extensão do Programa de Pós-Graduação (PPGE/FE/UFG).

É importante ressaltar que a parceria foi estabelecida a partir da busca da professora de matemática da escola em questão e o contrato registrou os caminhos da pesquisa e as ações a serem realizadas, delineando o trabalho destinado a cada um dos participantes. Estiveram envolvidos, na pesquisa, os professores do terceiro ano do Ensino Médio da escola, a coordenadora pedagógica da instituição, os discentes de mestrado e doutorado em educação da Faculdade de Educação da UFG, o professor da disciplina cursada pelos referidos discentes e os alunos dos terceiros anos do Ensino Médio do turno matutino da escola, que foram selecionados como sujeitos.

Já nos primeiros encontros da disciplina cursada no Programa de Pós-Graduação, os alunos foram organizados em grupos pelo professor, em seis grupos de trabalho mais especificamente, e orientados a trabalhar nessa disposição ao longo da disciplina. Antecedendo a ida à escola campo, os discentes receberam orientações dadas pelo professor que, em uma aula planejada especificamente para oferecer subsídios específicos para a atividade proposta, elencou e tratou de elementos, tais como: entrevistas, questionários e especificidades das questões, campo de pesquisa, observação do campo, dentre outros.

Assim como os pós-graduandos foram divididos em seis grupos, os alunos dos terceiros anos do turno matutino da escola campo também foram. Em um trabalho coletivo entre a professora de matemática e os demais professores da escola campo, como dito, foram definidos seis temas de investigação, a partir da importância tanto para a comunidade local, quanto para a comunidade global: maioridade penal, destinado ao grupo 1, inclusão escolar ao grupo 2, violência na escola ao grupo 3, feminicídio ao grupo 4, patrimônio público ao grupo 5 e saúde e meio ambiente ao grupo 6.

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A proposta do projeto foi justamente aliar o ensino, que é próprio da instituição educacional formal, à pesquisa, muitas vezes deixada de lado ou como experiência destinada somente às universidades. Além disso, os elementos que envolvem a atividade pesquisadora foram cuidadosamente trabalhados, levando-se em consideração os sujeitos em estudo e suas singularidades. A escola campo foi preparada e organizada pela equipe docente, de modo que, mesmo em meio à movimentação trazida pela presença dos alunos do PPGE/FE/UFG, a rotina ocorreu satisfatoriamente.

Faz-se necessário destacar, que os educadores, participantes deste projeto, realizaram alterações significativas em suas aulas, buscando, na perspectiva da transdisciplinaridade, oportunidades de trabalho integrando as diversas áreas do conhecimento e, para isso, reorganizaram a composição curricular, modificaram as estruturas das salas de aula e, ainda, adequaram horários, para que fosse possível o que era proposto. O que corrobora com o que diz D’Ambrósio (2001, p.15):

A fundamentação teórica que serve de base à transdisciplinaridade, repousa sobre o exame, na íntegra, do processo de geração, organização intelectual, organização social e difusão do conhecimento. [...] Poder-se-ia dizer que o projeto transdisciplinar é intra e interdisciplinar, abarcando o que constitui o domínio das ciências da cognição, da epistemologia, da história, da sociologia, da transmissão do conhecimento e da educação.

Os professores da escola campo, envolvidos, tiveram o cuidado de trabalhar antecipadamente os temas investigados, estabelecendo uma relação com o cotidiano dos alunos bem como as particularidades da estatística na disciplina de matemática, aproveitando os recursos tecnológicos inerentes à vida dos indivíduos. Segundo Souza (2006, p.108):

as novas tecnologias da comunicação decuplicam as performances humanas – como é o caso da memória, da agilidade da busca da informação, correção de trabalhos etc.- o que tem contribuído para que as pessoas adiram a elas em progressão crescente na vida privada e no trabalho.

Nesse sentido, o grupo dos alunos do PPGE/FE/UFG, responsável pelo tema Saúde e Meio Ambiente, teve como participação o auxílio e a orientação na elaboração do questionário de pesquisa sobre o tema. Para isso, esse grupo esteve presente na escola campo, para a observação participante e pôde, em um movimento dialético das informações disponibilizadas, orientar a construção do questionário.

Em um primeiro momento da observação participante (realizada na escola campo) em sala de aula, na qual estavam presentes os alunos das terceiras séries que optaram por participar da pesquisa com o tema Saúde e Meio Ambiente, ocorreu a apresentação dos envolvidos, a exposição do vídeo “o que é pesquisa”, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=ksHmilEOdQI, a posterior discussão sobre os elementos por ele trazidos e foi perceptível um entrave inicial, que pode ser mencionado como uma das dificuldades encontradas, o silêncio manifestado proveniente da insegurança e da timidez em participarem da discussão inicial o que, aos poucos, foi dando lugar às primeiras participações. Para contornar a situação, conforme planejado, propusemos a condução das discussões a partir de uma grande roda de conversa, denominada por Freire de Círculos de Cultura (FREIRE, 2013).

A proposta desse formato de conversa em círculos, na perspectiva freiriana, consiste na abertura plena para o diálogo com profundidade crítica e participativa que pressupõe, conforme expõe Fiori (2014, p. 24), um processo de problematização subjetiva de experiências de um mundo vivido e experienciado de forma que os participantes assumem “[...] criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora. Todos juntos, em círculo, e em elaboração, re-elaboram o mundo”. Nesse processo dialógico, conforme aponta Freire (2013), faz-se necessário o exercício da capacidade de observação e o registro para se ratificar e ratificar a práxis. E complementa,

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Mas registrar não se esgota no puro ato de fixar com pormenores o observado tal qual para nós se deu. Significa também, e ao lado deste registro, arriscar-nos a fazer algumas observações críticas e avaliativas a que não devemos, contudo, emprestar ares de certeza. [...] A cada estudo e a cada reestudo que se faça, em diálogo com os educandos, ratificações e retificações se vão fazendo. (FREIRE, 2013, p. 164).

No diálogo estabelecido, a partir da proposta de vivenciar uma pesquisa em curso, discutiu-se sobre o aprofundamento no uso de recursos tecnológicos como ferramentas de trabalho e aprofundamento de estudos, previamente apresentadas nas aulas de matemática. As ações da pesquisa proposta levaram os educandos a aprendizagens no uso da tecnologia, em favor da própria pesquisa, para busca de informações, coleta e quantificação de dados, bem como a identificação e análise de problemas sociais dos quais fazem parte. A esse respeito, Freire (2000, p. 102) nos faz refletir sobre a urgência da experiência pedagógica com uso consciente das tecnologias, a partir de experiências problematizadora do ato educativo e formativo, orientando sobre necessidade de superação do que chama de “[...] puro treino ou adestramento para o uso de procedimentos tecnológicos”.

Após o levantamento dos conhecimentos prévios, oriundos da discussão sobre o que é e como iniciar uma pesquisa científica, ficou estabelecido que o questionário em elaboração seria dividido em duas partes: parte I e parte II. Toda a turma estabeleceu os objetivos e, posteriormente, definiu que a parte I trataria da caracterização dos sujeitos inquiridos e a parte II de questões direcionadas ao tema proposto na organização de três subtemáticas: água tratada, lixo e esgoto. As questões que surgiam nas discussões eram registradas e organizadas no quadro da sala de aula, como mostram as imagens da Figura 1.

Figura 1 – Registro de anotações no processo de construção do questionário. Fonte: registro pessoal.

O grupo de alunos foi organizado em três grupos menores que contou com a presença de, ao menos, um pós-graduando, fator que possibilitou maior aproximação, o estabelecimento de orientações e a abertura para ações e reflexões sobre os encaminhamentos e formulações propostas. Em síntese, representou elemento facilitador do diálogo para o conhecimento. Como supervisão do ato pedagógico, os pesquisadores apoiavam todo o processo, proporcionando, porém, autonomia dos estudantes de pós-graduação e Ensino Médio na condução das atividades e na construção dos saberes e conhecimentos necessários para a sua realização, como ação do/para o coletivo-participativo. Nesse sentido, Freire (1983, p. 84) nos orienta que:

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os homens, em seu processo, como sujeitos do conhecimento e não como recebedores de um ‘conhecimento’ de que outro ou outros lhes fazem doação ou lhes prescrevem, vão ganhando a ‘razão da realidade’, o que de fato foi se desvelando ao longo da observação participante.

O conhecimento, segundo aponta Freire (1997a, p. 20-21), não se dá de forma isolada. No movimento de que não há homens isolados, o conhecimento, da mesma forma, é construído nas relações sociais, por homens-sujeitos, ao que diz:

O saber humano implica uma unidade permanente entre a ação e a reflexão sobre a realidade. Enquanto presenças no mundo, os homens são ‘corpos conscientes’ que transformam este mundo pelo pensamento e pela ação, o que faz com que lhes seja possível conhecer este mundo ao nível reflexivo. Mas, precisamente por esta razão, podemos agarrar a nossa própria presença no mundo, que implica sempre unidade da ação da reflexão, como objeto da nossa análise crítica.

Concluída a atividade dos grupos menores, abriu-se a discussão para o grupo maior para o compartilhamento das produções. Argumentações, sugestões e novas ideias foram apresentadas e, nesse sentido, valorizadas. A percepção dos participantes de que o trabalho proposto e colocado em prática não somente identificaria questões importantes, mas abriria precedentes para propostas de soluções, deixou os alunos conscientes da importância do trabalho em desenvolvimento, bem como desejosos por melhorias para a sociedade, fator que ensejava novas perspectivas e sentidos de saberes a serem buscados e construídos (FREIRE, 1997b).

Após a realização do encontro presencial, os alunos da pós-graduação e Ensino Médio deram continuidade às atividades de elaboração do instrumento a partir da comunicação mediada por um aplicativo digital de comunicação (WhatsApp), que serviu como base para discussões e orientações sobre o conteúdo do questionário e para a construção do instrumento online, valendo-se da plataforma Google Forms. Nesse ínterim, faz-se importante destacar, no relato dos pós-graduandos, sobre a surpresa quanto à facilidade dos alunos do ensino médio em lidar com atividades no campo tecnológico. Fator justificado, em parte, pela presença recorrente de ações e projetos realizados na escola com uso de recursos tecnológicos com fins pedagógicos. Outro destaque apontado se deu quanto à política de disponibilização de acesso gratuito à rede de internet, adquirida pela escola a professores, alunos e demais membros da comunidade escolar.

A disponibilização de recursos tecnológicos, como utilização de plataforma de questionário online, das redes sociais para a realização da pesquisa e a preparação para o uso da planilha eletrônica, no caso a planilha Excel, realizado tanto pelos alunos do PPGE/FE/UFG, quanto pela professora de matemática, demonstrou o ensino do uso discriminado dos recursos das tecnologias da informação e da comunicação a favor da aprendizagem significativa, para a autonomia e promoção da criatividade dos educandos. E sobre isso, Souza (2006, p.114) afirma que “a utilização da informática como instrumento impulsionador da criatividade exige que o professor compreenda como se desenvolve a atitude criativa, a fim de que ele saiba como orientar seus alunos”, ação perfeitamente percebida no comportamento de educadores e educandos da referida escola campo.

As imagens, expressas pelas Figuras 2 a 5, se referem a alguns recortes realizados das conversas e/ou orientações/discussões realizadas no aplicativo:

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Figura 2 – Recorte 1 de diálogos entre estudantes da pós-graduação e Ensino Médio. Fonte: registro pessoal.
Figura 3 – Recorte 2 de diálogos entre estudantes da pós-graduação e Ensino Médio. Fonte: registro pessoal.
Figura 4 – Recorte 3 de diálogos entre estudantes da pós-graduação e Ensino Médio. Fonte: registro pessoal.
Figura 5 – Recorte 4 de diálogos entre estudantes da pós-graduação e Ensino Médio. Fonte: registro pessoal.
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Algumas situações, apresentadas nas imagens das conversas por aplicativo, merecem destaque. No recorte 1 (Figura 2), nota-se o interesse e a maturidade de alguns alunos do Ensino Médio que pesquisavam mais sobre o tema investigado e motivavam os parceiros de grupo para a pesquisa. A intervenção dos pós-graduandos nesse momento, foi de motivar e incentivar a ampliação das leituras realizadas, para a melhor formulação das questões.

No recorte 2 (Figura 3), é perceptível a demonstração de preocupação e o compromisso com a realização e entrega do trabalho no prazo previamente estipulado. Considera-se que, ao partir de um próprio colega de turma, a cobrança das exigências realizadas, o trabalho de coordenação do docente se torna menos centrado nele, promovendo, ainda, o desenvolvimento da socialização, da autonomia e do trabalho coletivo.

A aplicação do instrumento como parte integrante da pesquisa deveria ocorrer em uma manhã durante a semana. Havia sido estabelecida a aplicação do questionário simultaneamente à realização de uma feira no pátio da escola, mas, devido a contratempos relacionados a mudança de tempo atmosférico, o que provocou uma manhã chuvosa, a aplicação ocorreu nas salas de aula, retirando-se os investigados aos poucos, para a aplicação, utilizando o próprio aparelho celular do aluno pesquisador.

Observa-se no recorte 3 (Figura 4), a clara satisfação dos alunos quanto à experiência da aplicação do questionário. Eles demonstraram sentirem-se importantes devido ao elogio realizado pela professora de matemática (idealizadora do projeto), quanto à desenvoltura dos alunos durante a aplicação.

No recorte 4 (Figura 5), um aluno do Ensino Médio interage com os colegas, intervindo em relação às questões produzidas, demonstrando conhecimento sobre o assunto sobre o fato de que, em nossa região, as enchentes são menores que em outras regiões do país.

As atividades de pesquisa como esta, realizada em uma escola da rede estadual de ensino, auxiliam no desenvolvimento da autonomia dos alunos, na promoção de uma aprendizagem científica crítica, criativa e emancipatória. De acordo com Freire:

A assistência técnica, na qual se pratica a capacitação, para ser verdadeira, só pode realizar-se na práxis. Na ação e na reflexão. Na compreensão crítica das implicações da própria técnica. (FREIRE, 1980, p. 89).

Ainda sobre o recorte 4 (Figura 5), é de fácil percepção a capacidade de generalizar e arbitrar conceitos devido à utilização e sistematização dos conhecimentos prévios sobre o tema. Em sua escrita, o estudante de Ensino Médio arbitra quando intervém na elaboração das questões, também generalizando quando demonstra conhecer sobre a questão das enchentes nas regiões brasileiras, comparando-as com a nossa região. E sobre a generalização e a capacidade de arbitrar, Vygotsky diz:

[...] a generalização de um conceito leva à localização de dado conceito em um determinado sistema de relações de generalidade, que são os vínculos fundamentais mais importantes e mais naturais entre os conceitos. Assim, a generalização significa ao mesmo tempo tomada de consciência e sistematização de conceitos. (VYGOTSKY, 2001, p. 292).

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Em um dado momento da orientação via aplicativo de conversa, algumas dificuldades quanto à construção textual e ao uso da língua culta foram percebidas, o que promoveu uma nova intervenção dos colegas, para a correção e melhoria da escrita. É importante ressaltar que os alunos, ao compartilharem as questões, também colocaram as pontuações realizadas pela professora de matemática, que assinalava o que era preciso melhorar, dando suporte, auxílio, mas, ao mesmo tempo, oferecendo liberdade para a própria criação/elaboração dos alunos.

Figura 6 – Recorte 5 - Modelos de questões apresentadas pelos alunos da escola campo (Saúde e Meio Ambiente). Fonte: registro pessoal.

Algumas questões foram elaboradas sem coerência ou ainda sem o devido propósito pelo qual a questão se destinava. Nesse sentido, a intervenção dos alunos de pós-graduação foi a de relembrar, com os alunos de Ensino Médio, as questões apresentadas e estudadas na aula-campo, com destaque às escalas Thurstone e Likert. Levando-se em consideração a natureza deste trabalho ser de maior cunho pedagógico do que propriamente científico é que foi decidido coletivamente que a escala utilizada seria a Thurstone, pois haveria uma maior possibilidade e/ou facilidade para ser analisada. Seguem, nas Figuras 7 e 8, as intervenções realizadas pelas pesquisadoras via aplicativo online.

Figura 7 – Recorte 6 - intervenção das pesquisadoras via aplicativo online. Fonte: registro pessoal.
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Figura 8 – Recorte 7 - intervenção das pesquisadoras via aplicativo online. Fonte: registro pessoal.

Como parte do trabalho realizado, foi apresentado, pelos alunos da escola campo, um relatório com os dados obtidos e a análise destes. Percebeu-se, de maneira clara, que o trabalho representou um excelente exercício de pesquisa, o que contribuiu significativamente para o aprendizado e para o despertar do interesse pelas questões científicas.

Os educandos apresentaram algumas dificuldades no que se refere à escrita e à análise dos resultados, o que é facilmente explicado pelo grau de ensino cursado na ocasião e pelo fato de não terem participado deste tipo de atividade anteriormente. Em compensação, os educandos apresentaram no relatório, tabelas e gráficos e cruzaram alguns dados.

No questionário elaborado, a pergunta “Você acredita que reciclar é uma responsabilidade social?”. Das 206 pessoas inquiridas, 194 (94,2%) responderam que “sim”, 9 (4,4%) que “parcialmente” e 3 (1,5%) que “não”. Em outra pergunta: “Você faz o descarte seletivo do lixo?”, observou-se que 63% dos entrevistados disseram que “não”. Diante dessas duas perguntas, os alunos da escola campo apontaram incoerência nas respostas, um distanciamento entre “o que se pensa” e o “que se faz”. Contudo, em função das limitações do instrumento – instrumento didático e não profissional de pesquisa – não conseguiram analisar com maior profundidade. Apesar disso, foi apresentado pelo grupo que, por mais que tivessem se esforçado, o instrumento necessitava de ajustes. Tais inquietações se mostram como um fator importante de questionamento e aprendizagem.

Um exemplo de cruzamento de dados e uma prévia análise podem ser observados no recorte do relatório de estudo expresso pela Figura 9.

Figura 9 – Recorte do relatório de pesquisa dos alunos do Grupo “Saúde e Meio Ambiente”. Fonte: registro pessoal.
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Pode-se verificar, pela síntese expressa nesse exemplo de cruzamento de dados entre a renda familiar e alagamento nas áreas próximas às residências dos entrevistados, que os alunos perceberam uma relação entre baixa renda e más condições habitacionais.

Reflexões finais

A vivência, proposta por essa iniciativa, promoveu a integração entre Universidade e Escola, a pesquisa enquanto parte fundamental da prática docente e ainda apresentou o quão se faz urgente a utilização das ferramentas tecnológicas de modo discriminado, em prol de aprendizagens significativas, como apoio às ações educacionais formais, assim como a escola campo realizou nessa ação. Verificou-se que os professores da escola campo, bem como todos os sujeitos envolvidos na pesquisa, tiveram papel fundamental no processo de reestruturação da escola enquanto instituição educativa, sustentando, assim, que os ganhos foram reais e satisfatórios.

O projeto, que teve como base a transdisciplinaridade, contemplou não somente a aprendizagem dos conteúdos de estatística, mas questões mais profundas, como o trabalho coletivo e participativo entre professores, alunos e pesquisadores, o desenvolvimento da autonomia na aprendizagem, a ressignificação do tema Saúde e Meio Ambiente para os alunos.

A práxis, contemplada a partir da estrutura do projeto desenvolvido pelos professores da escola campo, possibilitou mudanças em uma estrutura existente, tornando possível ações pedagógicas pautadas na educação libertadora. Na avalição dos envolvidos, a ação provocou nos educandos o envolvimento com a pesquisa, incentivando a utilização de recursos tecnológicos em favor da construção do conhecimento, informação e aprofundamento de temas relevantes para a sociedade local e global, bem como as motivações causadas pelas interações entre Ensino Superior e Educação Básica.

Dessa maneira, compreende-se que o projeto desenvolvido, ao procurar conhecer e implantar cientificamente as ações transformadoras do trabalho transdisciplinar, não ignorou a verdade dos fatos, mas buscou intervir na realidade, de modo a transformar efetivamente o ato educacional promovendo o real sentido da escola, que é fazer ciência e não apenas reproduzi-la. Assim, o conhecimento adquirido pela ação revela a primazia do ato educacional consciente e responsável.

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