Capítulo 8
Experiências docentes com Ensino Remoto Emergencial na Educação Física Escolar na cidade de Palmas/TO
Esta entrevista foi realizada no dia 13 de julho de 2021 com dois professores convidados da rede municipal de ensino de Palmas/TO. A professora Eurenes Alves Martins atua numa escola regular e o professor Marley Ferreira Milhomem atua numa escola de período integral. Ambos são acadêmicos do Programa de Mestrado em Educação Física em Rede Nacional/PROEF. Nessa entrevista tivemos a intenção de registrar aspectos singulares à prática docente desses professores durante a pandemia da Covid-19.
Flórence: Boa tarde Eurenes e Márley. Agradecemos a oportunidade de falar com vocês sobre as particularidades das experiências que tiveram em relação ao Ensino Remoto Emergencial, nesse período de pandemia que estamos vivendo desde março de 2020 e está se estendendo até o presente momento. Para iniciar, gostaria de saber quais foram as decisões da Secretaria Municipal de Educação de Tocantins/TO e das suas escolas em relação às indicações das necessidades de distanciamento social?
Márley: Nossa escola atendeu à recomendação da Secretaria de Educação Estadual, assim que o governador do Estado determinou que fossem suspensas as aulas a nível estadual. Por volta do dia 16 de março, recebemos a notificação de que as aulas estavam suspensas, por tempo indeterminado, até segunda ordem. Havíamos tido duas semanas de aulas presenciais e ficamos nessa expectativa delas serem retomadas, o que até agora não aconteceu.
Eurenes: Completando o que o Márley falou, depois que o governador decretou que as aulas estaduais fossem suspensas, a prefeita de Palmas também suspendeu as aulas da rede municipal, seguindo o decreto do governador. Eu, e acredito que os demais professores também, pensávamos que ficaríamos pouco tempo sem aulas. De modo que, sempre esperávamos o retorno das aulas para a próxima semana e já nos organizávamos para isso. Jamais imaginamos que estaríamos até este momento longe da sala de aula.
Márley: A minha expectativa era de 30 dias, falei que não duraria mais que 30 dias. A princípio foram poucos casos de coronavírus, uma das últimas cidades a ter morte por conta do coronavírus foi Palmas, no Tocantins. No entanto, a minha avaliação foi mudando, eram sempre mais 30 dias e então percebi que não era uma coisa simples de se resolver e que duraria um pouco mais de tempo. Com isso, entramos nessa aflição e ansiedade de saber como seriam os próximos dias.
Flórence: Como foram esses próximos dias? Como vocês ficaram sabendo que deveriam atuar no Ensino Remoto Emergencial? Quais foram as diretrizes que foram repassadas para vocês em relação a isso?
Márley: A princípio nós ficamos sem saber o que ia acontecer, o município não conseguiu, a curto prazo, dizer o que a gente precisaria fazer. As aulas ficaram suspensas por tempo indeterminado e ficamos esperando que algo novo acontecesse a nível nacional e estadual. Através de decretos e circulares as informações eram passadas aos professores, sempre marcando um dia para começar. No entanto, na medida que os dias iam passando o início das aulas era adiado por conta do aumento dos casos referentes à pandemia. Ficou tudo muito indeciso, até que a partir do mês de agosto de 2020, a prefeitura criou uma estratégia para que as aulas fossem feitas de forma remota, foi criada uma plataforma on-line para que os alunos pudessem ter acesso ao conteúdo das aulas.
Eurenes: Exatamente, ficamos um tempo aguardando. A plataforma até foi criada antes, acredito que durante o mês de maio, se não me engano, não é Márley? No início foi somente para que os pais e professores fossem conhecendo. Porque nós não tínhamos conhecimento a respeito de nada, era tudo muito novo para a gente e eu acredito que para a maioria dos professores também. A própria Secretaria de Educação criou a plataforma Palmas Home School e elaborou as apostilas. Este material apostilado foi disponibilizado para as famílias já terem acesso, mas não era obrigatório a realização das atividades, mas muitas crianças foram realizando as atividades com os pais. Nós professores, ficamos aguardando novas orientações. A prefeitura até decretou férias em julho. Em agosto retornamos ao trabalho já com a plataforma e um canal de TV, sendo que alguns professores se disponibilizaram a gravar as aulas. Havia um professor responsável por gravar as aulas para cada série e por disciplina, era bem organizado. Também havia um canal de televisão aberto para as famílias terem acesso às aulas gravadas anteriormente, com o acompanhamento das apostilas. Para aquelas famílias que não tinham como imprimir o material, este foi impresso pela escola. Além disso, deveriam acompanhar pela televisão as aulas gravadas. Esse foi o nosso trabalho inicial enquanto professores do município.
Ana Paula: Pela fala de vocês, entendo que a partir do momento em que a Secretaria Municipal de Educação entra em ação, ela cria esse canal de televisão e a apostila. A dúvida que emerge é: qual era a autonomia de vocês no exercício da docência em relação a este material que foi produzido e disponibilizado pela Secretaria Municipal de Educação?
Márley: A plataforma apresenta o conteúdo baseado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e no Documento Curricular do Tocantins. Esses conteúdos eram disponibilizados na plataforma on-line pela Secretaria Municipal de Educação e tínhamos que desenvolver as estratégias didáticas das aulas. Era de responsabilidade dos professores gravar as aulas baseando-se nesses conteúdos. Tive a oportunidade de gravar para o segundo ano e esse material ficava disponível no YouTube, além do canal de televisão. Assim, todos os dias tinha um cronograma de aulas, todo dia a aula do segundo ano, por exemplo, era transmitida no mesmo horário. Quem não tinha acesso à internet poderia acompanhar a aula pelo canal de televisão. No entanto, esse conteúdo era fixo para todas as escolas e os professores poderiam fazer atividades complementares. Mas como não tínhamos estrutura e conhecimento, na maioria das vezes, isso não acontecia, apesar de cada escola ter a autonomia de complementar o conteúdo base que era disponibilizado pela Secretaria Municipal Educação. No caso da minha escola, que é em tempo integral, foi bem complicado de fazer essa complementação, porque no currículo possui outras disciplinas, natação, artes marciais, xadrez (jogos de tabuleiros) e a dança, que não estavam contempladas na grade do portal da Secretaria Municipal de Educação. Neste sentido, precisávamos encaminhar para os alunos outros conteúdos relacionados a estas disciplinas. No início foi muito difícil estabelecer esse contato escola-aluno. Mas, a autonomia do professor ficava relativa a complementar os conteúdos já disponibilizados pela Secretaria Municipal de Educação. No entanto, se o professor optasse em ficar atuando só com aquele conteúdo disponibilizado era suficiente. Ou seja, não era obrigatório ele fazer outras atividades e/ou trabalhar com outros conteúdos.
Eurenes: No início, quem elaborou essas apostilas foi a própria Secretaria de Educação, através da coordenadora de educação física escolar, mas, a partir do mês de setembro de 2020, essa autonomia já foi repassada para as escolas. A Secretaria de Educação fez uma distribuição, nós elaboramos um currículo mínimo porque sabíamos que não conseguiríamos completar os 200 dias letivos. Além disso, já existia uma autorização do Ministério de Educação e Cultura - MEC para que completássemos a carga horária mínima sem obrigatoriedade dos dias letivos. Então, começamos a elaborar esses conteúdos para serem desenvolvidos pelos alunos em conformidade com as aulas que eram gravadas para o canal de TV.
Márley: Isso, mas só para ficar entendido, era um conteúdo único, determinado por uma escola. O conteúdo seria igual para todas as escolas, porque era uma única transmissão para todas as escolas. Por exemplo, a escola “A” era escolhida para fazer o conteúdo do mês de setembro, assim, somente aquela escola e os professores que atuavam lá se organizavam e faziam o conteúdo daquele mês. Toda rede municipal de ensino iria participar daquele conteúdo através da plataforma e da aula que era gravada. No entanto, as gravações dos conteúdos já elaborados eram realizadas por professores já preestabelecidos desde o retorno das aulas, sendo sempre o mesmo professor responsável por realizar a gravação do conteúdo planejado. Cada disciplina e turma tinha um professor fixo para as gravações, por exemplo, no meu caso, eu era o professor responsável pelas gravações sobre os conteúdos de Educação Física para os segundos anos do Ensino Fundamental da rede municipal. Cabe destacar que o conteúdo era único, os professores das outras escolas não podiam fazer outro, apenas poderiam complementar dentro daquela unidade temática.
Ana Paula: O que vocês relatam é uma experiência bastante singular de organização do trabalho docente. Como vocês se ajustaram e se organizaram a partir do conteúdo planejado por professores de outra escola? Como vocês avaliam essa experiência?
Eurenes: Não foi nada fácil, estávamos acostumados com a nossa liberdade individual. Temos um conteúdo a seguir, mas o professor, individualmente, organiza a sua aula de acordo com os seus alunos e com a sua realidade. No entanto, tivemos que seguir o método que foi proposto, para que tudo funcionasse corretamente. Acredito que foi válido sim, grandes aprendizagens surgiram a partir dessa experiência, que também nos motivaram a fazer diferente este ano. Aprendemos e nos obrigamos a ter um contato maior com as famílias, criamos grupos de WhatsApp para todas as turmas, para ter acesso aos pais, o que nos permitiu um contato muito próximo com as famílias. Foi muito válido esse momento que vivemos ano passado (2020), já este ano de 2021 está sendo totalmente diferente, com novas experiências.
Márley: O aprendizado foi significativo, mas a dificuldade também foi grande. Como já disse, o conteúdo da educação física de uma escola parcial é diferente de uma escola de tempo integral. Na escola em tempo integral já tem uma disciplina específica de dança que é ministrada por um professor de educação física, uma disciplina específica de jogos de tabuleiros, que é ministrada por outro professor de educação física. Entendemos que dentro de um planejamento coletivo, poderia trabalhar esses conteúdos na minha aula, mas não era obrigado. Mas, com o ensino remoto, eu obrigatoriamente tinha que desenvolver as aulas propostas para a rede municipal, ainda que já houvesse outro professor trabalhando este conteúdo. Assim, algumas vezes, o conteúdo ficava duplicado. Avalio que a plataforma não contemplou a singularidade das escolas de tempo integral. Outro exemplo, é o caso da natação, que não foi possível ser ministrada quando a nossa escola ficou responsável por planejar o conteúdo para a rede municipal. Uma vez que as outras escolas de tempo parcial não desenvolviam este componente curricular. Devido a isso, nossos alunos não tiveram acesso a este conteúdo.
Flórence: Muito interessante o relato da Eurenes sobre a aproximação com as famílias. Sabemos das dificuldades decorrentes das mudanças no cotidiano, de toda a rotina familiar. Muitos alunos tiveram dificuldade de manter essa aproximação com a escola e ter o apoio da família para o desenvolvimento das atividades do Ensino Remoto Emergencial. Considerando a importância da mediação, também dos pais, no momento da aprendizagem, é muito bom ouvir o seu relato, que demonstra um caminho que fomenta a aprendizagem dos alunos e o desenvolvimento do trabalho pedagógico. Em relação ao acesso dos alunos aos conteúdos disponibilizados foi realizado algum levantamento? Para os professores houve algum tipo de formação para o trabalho com as tecnologias e com o Ensino Remoto Emergencial?
Eurenes: É bem interessante falar da nossa experiência, porque o Márley e eu fazemos parte da mesma rede de ensino, mas a nossa realidade é bem diferente. Atuo apenas no primeiro e segundo ano do Ensino Fundamental. Na nossa escola, conseguimos fazer um levantamento com as famílias através de pesquisa de busca ativa com a nossa orientadora educacional que trabalhou muito, muito mesmo. Então ela conseguiu fazer um levantamento para saber quem tinha acesso à televisão, porque a gente pensa que todos têm acesso, mas isso não é uma realidade de todas as famílias. A própria Secretaria de Educação fez esse levantamento com as famílias. Na escola, conseguimos realizar uma pesquisa para saber quem tinha acesso à internet, quem tinha computador ou só quem tinha só o celular dos pais. Percebemos que a maioria dos nossos alunos só possuía o celular dos pais e com acesso a dados móveis, nem wi-fi eles tinham acesso. A partir desse levantamento, sabíamos que nossa relação com as famílias de forma on-line seria limitada, tanto que 70% do atendimento que realizamos com as famílias foi com o atendimento da entrega dos blocos de conteúdos. Quando conseguimos realizar aulas de forma síncrona o alcance foi muito pequeno. Em relação à formação, eu já tinha um pouco de experiência, pois já havia feito outra graduação na modalidade de Educação a Distância. Mas, utilizar as tecnologias na docência em educação física é bem diferente e eu não tinha qualquer habilidade, e não tive nenhuma formação nesse campo. Desde o início da pandemia até agora não tive nenhuma formação específica em relação ao uso da tecnologia e como levar isso até os pais e as crianças. O que aprendi, e estou falando individualmente, foi porque “corri atrás”, eu e meus colegas, foi uma união de colegas de todas as áreas. Nós pesquisamos muito e buscamos isso para nós e entre nós, trocando experiências conseguimos levar adiante. Mas, formação organizada pelo MEC ou pela Secretaria de Educação Estadual ou Municipal, eu, particularmente, não tive. Tivemos alguns encontros, mas não para formação, e sim para trocar experiências, e nada relacionado especificamente à educação física, sempre com encontros gerais.
Márley: Na minha escola foi bem difícil fazer o levantamento referente ao acesso dos alunos a internet, a televisão e aos outros materiais, devido a quantidade de alunos, por ser uma escola para 1.200 alunos, uma das maiores escolas do município, pioneira na cidade como escola em tempo integral. Descobrimos algumas falhas que a escola tinha na questão do cadastro dos alunos. Não conseguíamos falar com os alunos nesse primeiro momento, apesar de todo começo de ano ter o registro de um telefone, ter uma ficha de matrícula. As visualizações dos vídeos com relação às aulas no YouTube não contemplavam toda a rede. Em relação ao acesso aos conteúdos pela televisão não conseguíamos ter esse feedback. Mas, avaliamos que o contato com os alunos foi bem fraco no primeiro momento, foi uma dificuldade. Apesar das orientadoras pedagógicas fazerem o seu trabalho, buscarem o contato, ficou essa falha de saber quantos alunos estavam acessando, se eles tinham ou não acesso à internet. A princípio os pais e professores tinham dificuldades com o ensino remoto. Os professores não sabiam o que era o ensino remoto, ensino híbrido, aula síncrona ou aula assíncrona. Tivemos alguns encontros com relação à formação e troca de experiência, nos quais participamos de alguns fóruns, mas nada especificamente na prática. Não tivemos uma experiência prática de como manusear, qual aplicativo utilizar, qual o melhor recurso para uma atividade síncrona, se era o Google Meet, o Zoom ou qualquer outra plataforma. Tivemos trocas de experiência, algumas satisfatórias, que mostraram caminhos possíveis para o ensino remoto. Outra dificuldade foi com os alunos da zona rural, por volta de 50 alunos, que não tinham acesso à internet e que ficaram dependentes das atividades impressas na escola. Porém, não temos dados acerca do acesso desses estudantes ao material impresso. Enfim, a nossa formação para o ensino remoto foi realmente bem carente. Principalmente no que se refere a utilização das tecnologias de informação, material técnico mesmo. A disponibilização de material para os professores foi quase zero, tudo dependeu da boa vontade dos professores se organizarem, de trocarem ideias nessa relação com as mídias tecnológicas.
Flórence: Pelo relato de vocês, compreendi que não tiveram uma formação específica para o ensino remoto e para o uso das tecnologias na escola. Mas, independentemente disso, gostaria de saber se vocês utilizavam as tecnologias nas aulas de Educação Física antes da pandemia?
Eurenes: No meu caso, às vezes, utilizava o datashow ou a TV. O computador era mais raro, porque temos poucos na escola. A forma como a gente vem trabalhando com a mídia hoje é bem diferente do que a gente poderia utilizar na aula presencial. Tenho dúvida se o que estamos fazendo é o correto, porque o ensino remoto é bem diferente do ensino presencial, é muito estranho, é frio. Há pouco retorno dos alunos e de suas famílias. Mas, em relação à utilização anterior à pandemia, hoje percebo que não utilizava as tecnologias em praticamente nada, muito raramente, hoje é que estamos utilizando mais devido à situação emergencial da pandemia.
Márley: Se podemos dizer que a pandemia trouxe alguma coisa boa foi na busca por aprendizado por parte dos professores. Percebo um avanço no ensino com o uso das tecnologias, praticamente não fazíamos uso nas aulas de educação física. Temos aulas de informática na nossa escola, para todas as turmas, e pensava que o trato com as tecnologias era de responsabilidade dessas aulas. Quando, na verdade, estava deixando de dar oportunidade aos alunos de aprenderem de outra forma. Na minha escola não utilizamos as mídias ou a tecnologia para as aulas de educação física, ficávamos com a aula do dia a dia mesmo, a aula prática.
Ana Paula: Cabe destacar sobre o relato de vocês, que a falta de formação acerca da Mídia e das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação/TDICs dificulta a percepção de suas possibilidades de inserção e problematização junto aos conteúdos da Educação Física escolar. Sobre os conteúdos que foram abordados por vocês ao longo do Ensino Remoto Emergencial, que foram organizados pela Secretaria Municipal de Educação, seja na apostila, ou nas transmissões on-line, ou pela televisão, vocês tiveram espaço em algum momento para discutir sobre a pandemia, sobre a necessidade de distanciamento social, sobre o vírus SARS-COV-2? Oportunizaram momentos de escuta para ouvir os estudantes e saber como eles estavam? Considerando que o quadro da pandemia pode provocar sofrimento, também entre as crianças e adolescentes, em virtude da necessidade do distanciamento social e da mudança de rotina.
Márley: Então, tudo muito novo e demorou para entendermos o que seria o SARS-COV-2. Não tivemos, ao menos na minha escola, um espaço para o diálogo ou um momento de orientação, na qual a gestão escolar ou a Secretaria de Educação indicassem para nós o que era preciso fazer. Nós da escola ficamos esperando uma resposta da Secretaria de Educação, que por sua vez ficou esperando uma resposta do MEC. Não havendo ao fim nenhuma diretriz sobre como abordar a pandemia na escola. Em 2021, mudamos um pouco a dinâmica, tivemos mais acesso aos alunos, mais condição de fazer aula síncrona, ter relação com o aluno, ter intimidade com o aluno, com os pais também para desenvolver algum trabalho durante as aulas.
Eurenes: Quando o Márley fala em 2021 é porque tivemos dois momentos bem diferentes aqui no município, a gente teve um canal de televisão em 2020, em 2021 não temos mais o canal de televisão. Senti que a responsabilidade de 2021 foi jogada toda para cima da escola ao suspender o canal de televisão. Este fato não foi ruim porque nos deu mais liberdade para trabalhar com as nossas turmas. O Márley tem razão em afirmar que não tivemos nem conversas e nem orientações das autoridades gestoras para falarem conosco, nos sentimos em um barco à deriva. Penso que foi falho e poderia ter sido melhor. Não sei se eles conseguiriam fazer diferente. Mas acredito que havia muitas “cabeças” refletindo a questão da pandemia, poderiam ter feito melhor e, ao invés disso, a prática docente ficou muito engessada no ano passado, já que tivemos que seguir sem questionar. Já no ano de 2021 foi um pouco diferente, em 2020 não tivemos oportunidade de saber como os alunos estavam, de conversar, saber como estava sendo para eles, não tivemos esse momento ano passado, em 2021 sim, porque nós professores fomos atrás como escola e conseguimos fazer esse trabalho de forma diferente.
Ana Paula: Reconhecemos as dificuldades desse processo de adaptação, para a modalidade de ensino remoto, que inclusive dificulta o diálogo com os alunos. Além disso, entendemos que as dificuldades docentes não foram as únicas enfrentadas por vocês, como no caso da mudança da rotina familiar. Quais foram as principais dificuldades que vocês vivenciaram nesse contexto?
Eurenes: A minha maior dificuldade foi conciliar o trabalho com meus filhos. Não tínhamos equipamento em casa para atender todas as demandas, pois o esposo em home office ocupava uma sala com computador, os filhos com aula on-line em outra sala, e eu ficava sem o equipamento para trabalhar. Foi muito tempo perdido que poderia ter sido utilizado se tivéssemos um notebook. As aulas eram remotas, precisávamos, no mínimo, desse equipamento e não tínhamos. Foi preciso adquirir com dinheiro do próprio bolso, porque não era possível ir à escola todos os dias. A Secretaria de Educação disponibilizou um valor muito pequeno para a escola montar um estúdio, com recursos tecnológicos, mas não foi suficiente. Assim, precisávamos fazer revezamento. Por esse motivo, tínhamos que fazer em casa. Porém, tenho dois filhos e no tempo que eles estão em aula on-line não conseguia fazer nada antes de ter comprado o notebook, eu tinha que trabalhar à tarde e à noite, ultrapassando a minha carga horário de trabalho. Além disso, tinha o atendimento aos pais nos grupos de WhatsApp, que é o canal que usávamos para falar com eles. Os pais enviavam as atividades após o horário de trabalho, por vezes, às nove ou dez horas da noite, e eu me sentia na obrigação de responder naquele horário. Não possuo contrato de dedicação exclusiva. Mas, me sinto no dever, nesse momento, de fazer isso, então na hora que chegava já tentava responder e isso bagunçou a rotina em casa. Estamos há um ano e três meses trabalhando e estudando em casa, ainda não consegui me organizar nesse tempo para conseguir fazer tudo que precisa ser feito. Temos que gravar a aula assíncrona em casa, porque a aula síncrona não acontece da forma como deveria. A escola não se preocupa com a forma que vou realizar as aulas, simplesmente querem as aulas no dia correto e pronto! Mas não recebi nenhum tipo de treinamento, nem equipamento, nada que pudesse me ajudar. Preciso me virar, comprar equipamento para gravar, baixar aplicativo e buscar tutoriais até conseguir gravar uma aula. E quando acha que terminou percebe que não consegue enviar a aula pelo WhatsApp, porque o arquivo é muito grande e você tem que compactar na internet. Todo o investimento era do nosso bolso, paga internet, paga tudo, nem é uma reclamação, mas a gente se sentiu pressionado, você tem que produzir e pronto! Às vezes, você está gravando aula às dez, onze da noite, quando você vê já é meia-noite e você passou o dia todo tentando organizar os slides sem você ter conhecimento. Quando não sabemos, demora mais tempo para fazer uma coisa que faria bem mais rápido se soubesse, pois tem que buscar ajuda de um e de outro ou fazer pesquisas. Devido a essas demandas, ficou difícil organizar a rotina, e, às vezes, eu me frustro muito, porque queria que tivesse sido melhor. Na última reunião que tivemos na escola até desabafei, disse que não fiz o trabalho que sei fazer, que eu me frustrei muito nesse ano de 2021, mais do que ano passado, porque queria ter feito muito mais e não tive condições para isso. Eu me senti muito mal de chegar ao final de um semestre letivo e ver que não alcancei nem os meus objetivos pessoais, quanto mais o das famílias e dos alunos. Considero que essa rotina dentro de casa é muito estressante e tenho certeza de que é para todos, não só para mim.
Márley: Foi um desafio muito grande essa organização em casa com atividades dos filhos, da família que também estava em home office. A questão do material, de comprar equipamento, pegar emprestado computador, por exemplo. Aqui em casa não compramos, mas pegamos emprestado com alguém para que a minha filha pudesse assistir a aula dela, porque ela também estava em aula remota, foi algo bem complicado. Como a Eurenes disse, não tivemos esse subsídio para comprar o material, as escolas estavam fechadas, havia decreto, o professor não podia ir à escola para trabalhar, gravar as aulas ou planejar atividades dentro da escola. Depois que abriram as escolas, facilitou, pois foi possível utilizar os recursos da escola. Porém, os recursos da escola não eram apropriados, os computadores, por não serem notebooks, não tinham câmera, impossibilitando a realização de aulas síncronas. Na nossa escola, a princípio organizaram um mini estúdio, utilizado apenas para a gravação de aulas, composto por uma câmera e um pano verde. Este estúdio não tinha condições mínimas para a realização de aulas síncronas que, na minha avaliação, seria mais interessante para a educação física.
Flórence: Mãe de duas crianças matriculadas na educação infantil, compartilho com vocês essas dificuldades de organização do trabalho remoto, do cotidiano e da vida familiar. Fica essa sensação de realizar tudo pela metade, de não fazer com a qualidade desejada. Além disso, compartilho com vocês a preocupação da dificuldade de acesso dos alunos, em saber se o material de estudo estava chegando até eles. Vocês falam das aulas síncronas, dos vídeos que vocês produziram. Sabem se todos os alunos tiveram acesso a esses vídeos, se conseguiram assistir aos vídeos, a participar das aulas síncronas? Em relação à aprendizagem, como vocês avaliam o acesso e a aprendizagem dos alunos?
Eurenes: O que consigo mensurar é em relação às apostilas que os familiares devolvem na escola, já que foi dada a opção para aqueles que não tinham acesso à internet de buscar o material impresso na escola. Assim, 70% dos meus alunos buscavam o material na escola. Tenho 309 alunos e tenho que buscar 309 apostilas na escola para corrigir. Gravava as aulas de acordo com os blocos de conteúdos. Avalio que aconteceu aprendizado, mas não da forma que esperava. Eu esperava mais. Agradeço muito às famílias, porque sem elas esse aprendizado não teria acontecido de forma nenhuma. As aulas síncronas não atingiram o que esperava, sempre marcava dois horários, um de manhã e um à tarde, uma vez por semana para não sobrecarregar a família, porque além da minha tem muitas outras disciplinas. Não foram muitos alunos que acessaram, de 300 alunos acessaram dez, no máximo 15 por horário. Nas aulas síncronas não era para abordar o conteúdo da apostila, para que aqueles alunos que não tivessem acesso ao material impresso não ficassem excluídos da atividade on-line. O aprendizado, a meu ver, não foi suficiente. Ao corrigir o material que eles enviam para a escola e na plataforma, no Palmas Home School, percebo que você fala do assunto, ensina sobre o assunto e mesmo assim o aluno responde errado, sendo que a resposta é muito óbvia. Os meus alunos são pequenininhos, eles precisam do auxílio do pai, se o pai não auxiliar, ele vai fazer de qualquer jeito, vai responder de qualquer jeito. Na escola a gente ensina, se ele não aprendeu ensino novamente, eu explico de uma outra forma para que ele entenda e pelo ensino remoto isso não tem como acontecer. O aprendizado para mim não foi satisfatório, talvez eu não tenha alcançado da forma que queria, talvez outras pessoas enxerguem diferente, mas para mim como professora não foi satisfatório de forma nenhuma.
Márley: Compartilho da mesma angústia da Eurenes com relação a devolutiva do material, ao acesso dos alunos às atividades e da disponibilidade dos pais em investir parte do seu tempo, do seu dia, para auxiliar o aluno na atividade. Não eram muitas atividades, uma vez por semana para cada disciplina, as perguntas são poucas, os responsáveis pelos alunos tinham a oportunidade de ir buscar na escola o material impresso ou imprimir em suas casas. Para mim, o grande marco foi fazer com que alguns pais, mesmo que poucos, entendessem a necessidade de estarem disponíveis para o acompanhar seus filhos no ensino remoto. Avalio que por ser escola de tempo integral os familiares têm mais dificuldade de entender a necessidade de acompanhamento de atividades extraclasse, e por vezes questionam “o aluno passa nove horas, oito horas na escola, porque tenho que chegar em casa e ainda fazer a atividade do aluno?” Porque eles acham que é muito tempo na escola e o aluno vai para a escola para resolver tudo, não precisando ter o apoio em casa. Mas, o ensino remoto veio para mostrar aos familiares que eles precisam auxiliar o aluno nas atividades escolares. Avalio que com o entendimento da necessidade de participação dos familiares tivemos um avanço na aprendizagem e nas atividades com bons retornos não só na disciplina de Educação Física.
Flórence: Vamos aprendendo com as dificuldades ao longo do caminho, traçando outras estratégias para alcançar os alunos e a família. Em relação ao desenvolvimento dos conteúdos da Educação Física, historicamente enfatizou-se a dimensão procedimental, o saber fazer. Pelo relato de vocês, entendo que no Ensino Remoto Emergencial a ênfase foi maior na dimensão conceitual. Vocês concordam que foi isso que aconteceu? Teve alguma estratégia para os alunos apresentarem algum vídeo para mostrar também o aprendizado em relação à dimensão procedimental? A partir dessa experiência no ensino remoto, vocês consideram que é possível abordar também as dimensões conceitual e atitudinal no ensino presencial?
Eurenes: Eu, particularmente, tento fazer meus filhos participarem e me ajudarem na realização das atividades práticas. Afinal, era o que tínhamos para desenvolver o conteúdo tanto prático quanto teórico. O teórico eu já fazia, sempre colocava no final dessa parte teórica uma atividade prática, o que dava para fazer em casa. Pensava em alguma coisa e chamava meus filhos e meu esposo para me ajudarem. Gravávamos e eu colocava as duas aulas juntas para que eles tivessem a teoria e um exemplo da prática. Recebi muitos vídeos de volta porque pedia para os alunos me mostrarem o que conseguiram fazer. Eu dizia: “faz com o papai, faz com o irmão e me manda de volta que eu quero ver”. Assim, recebi muitas atividades e fiquei feliz pelo retorno das famílias. No entanto, cabe destacar que era um percentual bem pequeno diante do número de alunos que temos, mas ainda assim achei válido solicitar os vídeos e fotos. Um exemplo: eu estava tratando de um conteúdo folclórico, pedia para confeccionar o material e enviar foto e os alunos faziam isso. Como o Márley falou, às famílias que abraçaram a causa tiveram um aprendizado relevante, as famílias ajudaram muito, muito mesmo. Tem família que deixava passar o mês todo porque o bloco de conteúdo era para o mês inteiro e no final do mês me enviava o material completo. Ficava emocionada de ver as devolutivas, porque sei que deu trabalho para fazer tudo aquilo, além de todas as outras tarefas, então muitas coisas foram boas, reconheço isso. Tentei fazer as duas coisas, tentei sempre relacionar teoria e prática, às vezes, não dava certo, não recebia nada de volta. Quando voltarmos ao ensino presencial, quero continuar utilizando algumas coisas que aprendi durante esse tempo de pandemia e ensino remoto emergencial. Vamos aproveitar aquilo que foi de melhor e continuar com acesso maior com as famílias. Uma vez que no ensino presencial o contato acontece, na maioria das vezes, só com o aluno, enquanto a família se faz mais presente quando tem algum problema.
Márley: No caso das brincadeiras, das atividades que precisavam de mais de uma pessoa, buscávamos fazer com que os alunos tivessem interação com a família. Pensamos na pandemia e na criança que está dentro de casa sem poder brincar e avaliamos a necessidade de ensinar os pais a brincarem dessas atividades e aprender novas brincadeiras junto com eles, então consideramos essa premissa na organização das aulas. Recebemos muitos vídeos e muitos áudios no caso da disciplina de música e foi muito satisfatório, isso envolvendo as disciplinas de educação física e das que envolvem a parte cultura de dança, teatro e música. Recebemos mais atividades como devolutivas, do que o bloco comum que envolve as disciplinas de português, matemática. No contato com todos os professores durante conselho de classe, ouvíamos dos nossos colegas que um aluno não estava fazendo as atividades. Enquanto os professores de Educação Física, Dança, Teatro e Música diziam que ele fez todas. Justamente porque tínhamos a necessidade desse feedback, de receber vídeos, fotos, áudios referentes às atividades realizadas. Por exemplo, mandar foto do brinquedo que construiu. Percebemos que essa estratégia de pedir para que os alunos retornassem às atividades através de vídeos, áudios e fotos foi de certa forma a mais interessante do que a própria estratégia apresentada pela Secretaria de Educação, que era só responder e entregar o questionário, só entregar o papel impresso na escola ou responder na plataforma.
Ana Paula: O relato que fizeram demonstra a importância da autonomia do professor em relação às estratégias de ensino e a importância da participação da família na aprendizagem. Para finalizar, gostaria de perguntar se vivenciaram alguma situação inusitada, marcante que gostariam de relatar, algo que tenha chamado muito a atenção?
Eurenes: Tenho um exemplo de uma família que é algo que me emociona a cada mês, acho até que tinha mencionado ela antes, eles fazem tudo e no final me enviam. Olho cada detalhe e fico impressionada com o capricho! No final desse semestre me agradeceram pela oportunidade que ela teve de trabalhar com os filhos, de brincar com eles e construir junto com eles. Uma relação que ela não tinha antes da pandemia pela correria do dia a dia e que agora ela teve que fazer. Ela falou "estou fazendo a sua função, professora, mesmo sem ser professora e fiquei muito feliz porque aprendi muito e passei muito tempo do lado dos meus filhos e um tempo de qualidade, não só aquele tempo", sempre me emociono com essas situações. Mostro para o meu marido, mostro para todos, porque é tudo muito lindo o que ela conseguiu fazer com os filhos e a relação dela com a família mudou e a minha relação com os meus filhos mudou. Não consegui fazer tudo que tinha que fazer com eles porque também tive que fazer o papel de mãe ajudando, como as famílias estavam fazendo com os alunos, e não consegui fazer o que essa mãe fez. Essa relação me marcou muito. Na escola com o ensino presencial eu não tenho essa relação com os pais, porque como trabalho em várias turmas, e não temos esse relacionamento com os pais pelo celular, e com o ensino remoto tivemos que ter. Esse relacionamento próximo com as famílias, de saber como eles estão, “meu filho está internado, não consegui fazer agora, mas vou fazer”. Isso me marcou muito e profundamente, e acho que vai permanecer. Essa relação com as famílias foi algo que fiquei muito feliz de ter vivido, pois sei que nas aulas presenciais isso não seria possível devido à quantidade de alunos que temos.
Márley: Algo marcante, com certeza são as atividades, a devolutiva, ter essa intimidade com os alunos através de rede social, do grupo do WhatsApp, do próprio Instagram foi bem interessante. Mas, no meu caso, o que me marcou foi a relação com as professoras da regência, a troca de experiência que tivemos. Por exemplo, quando tive a oportunidade de ensiná-las a produção de pequenos vídeos para que fossem enviados como atividades assíncronas e complementares para seus alunos. As professoras viram que eu estava fazendo isso, se interessaram e me pediram para ensiná-las. O que me marcou neste período foi perceber que tive algo para ensinar aos meus colegas e que poderiam usar esse conhecimento em suas aulas. Além, é claro, das atividades com os alunos, pois, poder vê-los, é sempre bom.
Ana Paula: Os fatos destacados revelam a importância do diálogo. Entendemos que a troca de experiência a partir do diálogo favorece a aprendizagem e a construção de novos conhecimentos, o que qualifica o trabalho docente e a educação ao aproximar os integrantes da comunidade escolar, fato que nos parece minimizar também os impactos negativos do Ensino Remoto Emergencial. Para finalizar, agradecemos novamente a participação da Profa. Eurenes e do Prof. Márley nessa entrevista, que nos permitiu registrar alguns dados da realidade docente vivida por vocês na cidade de Palmas/TO enquanto um marco histórico deste período pandêmico.
Notas
1. Especialista em Fisiologia do exercício físico pela UFG e em Educação Especial e Inclusiva pela Fael. Professora de Educação Física da Rede Municipal de Ensino de Pamas/TO. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação Física em Rede Nacional(ProEF/UFG). Integrante do ConnectLab (UFG).
2. Especialista em Fisiologia do Exercício pela Universidade Veiga de Almeida. Professor de Educação Física da rede municipal de ensino de Palmas-TO e Professor de Educação Física da rede estadual de ensino do Tocantins. Mestrando no Programa de Pós-graduação em Educação Física em Rede Nacional. Integrante do ConnectLab (UFG).
3. Doutora em Desenvolvimento Humano e Tecnologias pela Universidade Estadual Paulista. Professora Adjunta da Universidade Federal de Goiás. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação Física em Rede Nacional/ProEF – FEFD. Líder do Grupo de Pesquisa Conexões entre Práticas Corporais, Tecnologias e Inclusão/ConnectLab (UFG).
4. Doutora em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Associada da Universidade Federal de Goiás. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação Física em Rede Nacional/ProEF – FEFD e no Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica/PPGEEB – Cepae. Líder do Grupo de Pesquisa Conexões entre Práticas Corporais, Tecnologias e Inclusão/ConnectLab (UFG).