Keila Matida de Melo (UFG)
k_mcosta@ufg.br

Wellington Ribeiro da Silva (UEG)

Ilustração do sertão brasileiro em Nunila de Carmo Bernardes

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Resumo

O artigo é parte dos estudos desenvolvidos pelo projeto de extensão Saberes da (e sobre a) literatura (FE-UFG) e analisa a obra Nunila, de Carmo Bernardes, flagrando vestígios que tecem o imaginário do povo goiano e a história de Goiás. Antes disso, no entanto, elenca a ligação entre Nunila e Jurubatuba, obra-prima, célebre, do autor. Nunila não se enreda simplesmente por trilha amorosa, mas expõe o sumo que assola a história do sertão brasileiro. A obra, na verdade, ocupa uma espécie de antessala do revisionismo que caracterizou os estudos historiográficos goianos, assinalados a partir da década de 1990, explicitando o fato de que o autor não se furtou a entabular um romance de grande pendor à crítica social e política das desigualdades sociais e das iniquidades humanas que ombreiam o processo de conversão territorial de Goiás à lógica do capital.

Palavras-chave:Nunila. Jurubatuba. História de Goiás.

Palavras iniciais

O sujeito que fala no romance é sempre, em certo grau,
um ideólogo e suas palavras são sempre um ideologema.
Uma linguagem particular no romance representa sempre
um ponto de vista particular sobre o mundo,
que aspira a uma significação social.
Mikhail Bakhtin (1988).

Este artigo esboça marcas do sertão brasileiro, no caso, traços históricos que compõem o imaginário do povo goiano presente em Nunila de Carmo Bernardes. O imaginário é aqui entendido como “imagens e representações que têm o poder de sugerir aos indivíduos de um grupo, de maneira viva e marcante, objetos e idéias” (QUEIROZ, 1993 apud MELO, 2007, p. 31). Distinguindo ficção de realidade, não há como negar que a obra literária se vê marcada pela sociedade porque nela está imersa. Para Mikhail Bakhtin (1988, p. 135), “o sujeito que fala no romance é um homem essencialmente social, historicamente concreto e definido e seu discurso é uma linguagem social (ainda que embrião), e não um ‘dialeto individual’”. Edward Lopes (2003, p. 64, grifos do autor) assegura que, tanto para Bakhtin como para Lukács e Lifshitz, a arte, bem como a literatura, “na medida mesma em que se dirigem a um outro, seu destinatário – o leitor, o público – e em que sua matéria provêm de um sujeito, destinador – a comunidade, a classe social do artista etc. –, é sempre um artefato de natureza social”.

E é de uma particularidade que vislumbra uma compreensão de mundo que este artigo pretende alcançar. Este estudo, pois, é fruto de discussões oriundas do projeto de extensão intitulado Saberes da (e sobre a) literatura, vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), que nos anos de 2021 e 2022 se debruçou sobre as obras de Carmo Bernardes com objetivo de melhor entender a importância desse escritor na tessitura ficcional e, neste caso, histórica de Goiás.

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Quem foi Carmo Bernardes? Para Bento Fleury (2015), “Carmo Bernardes foi um dos maiores regionalistas goianos e um dos nomes mais expressivos da literatura sobre o Cerrado. Era um doutor em sertão. Contista, cronista, romancista, crítico de arte. Fez seu nome no cenário das letras de Goiás”. A biografia do escritor é descrita pelo pesquisador: Carmo Bernardes nasceu em Patos de Minas-MG, em 1915, e faleceu, aos 86 anos, em Goiânia em 1996. Teve inúmeras obras premiadas. Foi contista, cronista, romancista. Dentre suas obras, constam Jurubatuba, Ressurreição de um caçador de gatos, Nunila, Quarto crescente, Memórias do vento, Força da nova.

Silva (2013), no prefácio de A ressurreição de um caçador de gatos, também destaca as características da narrativa bernardeana. Para a pesquisadora:

[...] Carmo retrata o mundo arcaico do sertão, onde o bulíco, a pressa e as neuroses citadinas não têm vez. O andamento de seus textos é lento, sem atropelos, à maneira do caipira, que conta seus causos, ao mesmo tempo em que pacientemente enrola um cigarro, entremeando a narração com pausas, digressões, ditos sentenciosos. (SILVA, 2013 apud BERNARDES, 2013, p. 6).

Soma-se a isso o uso de uma linguagem marcada pela oralidade, por construções sintáticas próprias do coloquialismo, por desvios semânticos, por palavras reinventadas que exprimem a originalidade do autor. Não que isso signifique total distanciamento do discurso erudito. Ao contrário disso, eles se encontram, se misturam (SILVA, 2013). No âmbito da linguagem, especificamente no uso da língua, a criação se evidencia sobretudo pelos ditos populares ou por expressões que assim se assemelham. Neste caso, a genialidade do autor permite flagrar o alcance do uso da língua em termos de alarido, em que inúmeros sentidos povoam as palavras que aludem a um modo de entender o mundo e de nele participar. Nesse sentido, ficção e realidade se entrecruzam, seja na caracterização dos próprios personagens enquanto reafirmação da identidade de um ser sertanejo, e também indígena, e também trabalhador explorado, seja pelo confronto por eles vivido em função da sanha do capital.

É um pouco desse traçado que este texto espera percorrer. E, para isso, ele se divide em duas partes. Na primeira, explicita aspectos do enredo de Nunila e episódios que interligam dois romances do escritor, no caso, Jurubatuba e Nunila. Salutar destacar que Jurubatuba é considerada a obra-prima de Carmo Bernardes. Na segunda, transita pelo imaginário que tece e fortalece a gênese e o desenvolvimento do povo goiano, tateando o sumo que assola a história de Goiás.

Liames narrativos entre Jurubatuba e Nunila

Nunila, obra produzida em 1984, retrata, pela voz do narrador-protagonista Antonino, vivências no Arraial do Descoberto. Como lugar de passagem, Antonino chega ao arraial num caminhão vindo de Santana e já nas primeiras linhas do romance o que o narrador anuncia é:

As encrencas que me esperam quando vou morar no Descoberto começam na ação mesma em que boto o pé no chão, ao que vou chegando. Tem tempo em que a cafifa monta numa pessoa e demora muito a desapear – que comigo sucede nessa ocasião. Dito e feito como meu pai dizia: urubu quando dana de infeliz até na laje ele atola. (BERNARDES, 1984, p. 7).

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A encrenca retratada logo nessa abertura é a briga com o caminhoneiro que não quis parar no local combinado, na entrada do arraial. Posteriormente a isso, o narrador fica sabendo que nenhum caminhoneiro parava ali por um deles ter apanhado num boteco nessa localidade. Adentrando a cidade a pé, uma vez que o narrador foi deixado após o arraial, Antonino se depara com um menino tocando um jumento. É assim o ingresso desse narrador-protagonista no vilarejo, ingresso visto como passagem. Nessa passagem, há uma preocupação com a visão que o outro teria dele, ou seja, como o forasteiro seria ali visto: “Andando a pé, sem chapéu, feio e sujo, barba duma semana – é o quê? Doido ou escorraçado, fugindo de algum malfeito” (BERNARDES, 1984, p. 10). Guiado pelo menino mencionado, Antonino chega à pensão de Dona Filomena, local onde se aloja. Dona Filomena é proprietária das terras do arraial. Há, de forma recorrente, a figura da mulher forte nas produções bernardeanas e é nesse local que Antonino conhece Nunila (sobrinha de Dona Filó), Adão (irmão de Nunila), Agenor (comprador de ouro de quem se tornará sócio), o bobo Badu, o trio Mundico, Henricão e Vitalino e outros.

A narrativa de Antonino se interliga à Jurubatuba, célebre romance de Carmo Bernardes. Em Jurubatuba, o personagem-protagonista é Ramiro, mas em muitos momentos a narrativa recupera, na verdade, a história de Antonino (como parte do passado de Ramiro), sua fuga do sertão, seu romance com Nunila. Jurubatuba expõe as aventuras e desventuras, no cerrado goiano, de Ramiro, numa aproximação entre homem e natureza. Situação que se difere em Nunila, já que Antonino terá sua história circunscrita a um pequeno arraial como vestígio do que restou da era aurífera de Goiás, isso no Arraial do Descoberto. A modificação do nome dos personagens, de Ramiro a Antonino, que o leitor só fica sabendo ao ler as duas obras, na ordem que for, se deve, por exemplo, a um episódio retratado em ambos os livros, quando o narrador se envolve numa lavoura de arrendo e, não conseguindo colher o previsto, e assim pagar o que devia, foge, inclusive alterando nome. Antonino retrata parte desse acontecimento no trecho a seguir:

Toquei meio alqueire; quer dizer que esperava colher 120 sacos, pagaria de arrendo 40. Não colhi um bago, mas o dono da terra trepou na minha alma, me cobrando o arrendo. Um Inspetor do Quarteirão foi me intimar e me falou que a lei dava que os azares são por conta do arrendante, e que eu tinha que pagar, rindo ou chorando. Queimamos a cara um do outro no tiro, tive que abrir a terra e entrar dentro. Girei por Jurubatuba, Rio do Peixe, Leopoldina, sem poder apresentar documento, andando de nome mudado. Fiz protesto de nunca mais mexer com lavoura, a não ser se um dia eu der conta de adquirir um sítio, de meu. (BERNARDES, 1984 p. 28).

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Outras partes em Nunila fazem referência direta à Jurubatuba, dentre elas: a visão do narrador-protagonista sempre como estrangeiro, percebido como diferente e nunca adaptado verdadeiramente ao lugar em que se insere; a comparação destacada entre cachorro e burro (um possível de se amansar; outro que não se amansa); o calcanhar de Aquiles dos narradores, que são as mulheres e a sujeição que a elas lhes acomete. Tanto numa quanto noutra obra, o narrador-protagonista (quer Ramiro, quer Antonino) diz que o ingresso que promove a qualquer vilarejo advém ainda da aproximação com meninos ou bobos, pessoas ingênuas, talvez como ele próprio. Assim acontece com Ramiro quando chega a Mocambinho, em Jurubatuba, e se defronta com meninos pescando, faz amizade com eles, paga-lhes o pescado perdido, sabe por eles sobre a cidade. De modo semelhante ocorre com Antonino, que transita em Arraial do Descoberto guiado por um menino tocando um jumento. É a esse menino que o narrador se apresenta, dizendo se chamar Antonino “por sobrenome Lino da Costa” (BERNARDES, 1984, p. 11).

As duas obras esboçam o incômodo de o narrador ser notado, de seu vislumbre como estrangeiro, adaptado, mas nunca integrante verdadeiramente do lugar, “Devido minha criação muito sojigado, fico inibido no lugar estranho [...] Deve ser questão de herança eu ser desconfiado com os da cidade, achar sempre que eles estão mangando de mim. Só depois de muita confiança, sinto-me mais ou menos domado, assim mesmo não é sempre” (BERNARDES, 1984, p. 10-11). É interessante notar que o estrangeirismo, a sensação de não estar de todo no lugar, que tanto caracteriza os personagens centrais em Nunila, mas também em Jurubatuba, não remete a vetores essencialmente geográficos.

A esse respeito, referências ao Matão, ao Mocambinho, à Jurubatuba e ao Descoberto, por exemplo, são sumariamente superficiais no que se refere à descrição da paisagem. Não são lugares que encerram modus vivendi específicos, horizontes que ensejam relações humanas genuínas com o meio natural, que importa à narrativa concatenar. Mesmo que o narrador-protagonista se permita, por várias vezes, a desfiar descrições espetaculares das geografias então percorridas, elas são meramente o palco para a entronização do verdadeiro drama de uma condição reiteradamente adventícia. Nesses cenários, os narradores, aparentemente domáveis, expressam práticas ambíguas:

Penso que o meu parentesco com cachorro é mais próximo e acentuado do que o do comum das pessoas. Nos meus domínios, sou um durão: arrasto mala, não tenho acanhamento, inibição nenhuma. Já na terra alheia sou um mingau. Entro pisando macio, berrando como vaca, murcho e de cenho baixo – numa covardia tão miserável que nem falar direito falo. Gaguejo, não sei o que faço com as mãos, um constrangimento de quem se apresenta nu em pêlo. (BERNARDES, 1984, p. 15).

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Em Nunila, o reaparecimento de considerações antropomórficas, levadas a cabo pelo narrador-protagonista, reforça ainda mais o seu estranhamento, pois mesmo “sendo esse que veio de fora, que lê livros e sabe conversar ilustrado [...] o instinto mal domado de bicho irracional e lúbrico” (BERNARDES, 1984, p. 64-65) o faz ser submisso aos caprichos da cabrocha. Nesse sentido, a nudez da natureza humana é traduzida e se, por um lado, expressa submissão; por outro, de homem já ajustado, expõe encorajamento. Enfrentamento dúbio que migra do cachorro ao burro: “É verdade, dou testemunho, é que todo ser vivente é reconhecido a quem lhe faz bem. Menos o burro que nem todos são de fiança. Quando é um animal sestroso, até na hora que é tratado, amilhado e raspado, se facilitar escoiceia o tratador”. (BERNARDES, 1984, p. 17).

Em Jurubatuba, o narrador, em muitos momentos, se mostra mal domado, não se deixando acometer pelas opressões que lhe asseveravam. Já o calcanhar de Aquiles, em Jurubatuba, foi amor que Ramiro teve por Ermira; e, posteriormente, Antonino terá por Nunila, fato ilustrado a partir de um cenário paisagístico marcado pela tonalização da natureza: “Nas noites compridas, embaladas pelo pio insistente e lúgubre da corujinha suindara e pelos assopros dos lobos no ermos da burguéias, ainda suspiro de saudade de Ermira, a barra da saia por quem me perdi em Jurubatuba” (BERNARDES, 1984, p. 20).

A barra de saia, dita por Antonino, é uma das perdições evidenciadas como lição transmitida pelo universo rural. A mãe do personagem, quando o jovem ia tentar a sorte no mundo, já o alertava que: “Três barras é que dão encrenca: barra de ouro, barra de corgo e barra da saia” (BERNARDES, 1984, p. 20). O degringolar de Nunila aventa por essas três barras. De modo mais esmiuçado, esse degringolar não necessariamente é somente do narrador e, sim, do povo goiano, retratado no discurso de decadência que por muito tempo assombrou e ainda assombra a história de Goiás. A sedução pelo ouro, pela terra e por mulheres traça a dimensão ficcional da obra e o imaginário de formação cultural de Goiás. No caso das mulheres, a aproximação é facilitada pelo serviço da roça:

[...] me constrange um pouco contar é que arrebento calos d’água nas mãos do tanto que ajudo às mulheres na limpação do arroz no pilão. E não é ser um cabra muito cretino ir pro pilão limpar arroz, só para ter o prazer de socar de dois com as mulheres? Pois é: se isso é pecado, esse eu carrego! Aliás, essa treita de se aproveitar de certos serviços para ficar perto de mulher, creio que em mim é uma questão de tendência atávica, própria de minha categoria de roceiro. (BERNARDES, 1984, p. 18).

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Já, no caso do ouro, o que Antonino relata é que “Ouro estou vendo aqui entre meus dedos, em barra, em lâmina, em pó, um dos mais fortes motivos de discórdia entre os homens, e eu estou barafustado com ele” (BERNARDES, 1984, p. 20). Na verdade, o narrador-protagonista e os garimpeiros da região vão lidar com o que restou desse metal precioso, ou seja, com o cascalho. Antonino torna-se, inclusive, sócio de um comprador e purificador de ouro – Agenor –, com oficina montada num cômodo da pensão de Dona Filó. Já a sedução pela terra provoca o seguinte disparate:

Em tomar terras dos órfãos, passar a perna nas viúvas, a gente de fora que vai chegando não muda a camisa. Os graúdos de Goiânia falsificam documentos, avançam nas terras devolutas, forjam títulos definitivos de glebas há mais de século ocupadas por famílias naturais do lugar – aprontam toda desgraceira. Uma jagunçada desgramada que, sem entranhas, consome proprietários recalcitrantes, toma mantimentos nas roças a título de arrendo, toca fogo nas propriedades alheias – um banditismo que só vendo uma coisa. (BERNARDES, 1984, p. 20).

Vestígios dessa ocorrência já são mostrados em Jurubatuba, mas a situação do trabalhador, do situante, se acentua ainda mais em Nunila. Não apenas a grilagem, mas também a agropecuária, sob a tutela do Estado, irá expor desavenças e expulsão do homem do campo. Discursos ainda revigorados pelo advento dos meios de comunicação de massa, como os jornais, que tonificam sentidos, distorcendo e montando fatos, fazendo do roceiro, do sertanejo, do homem do campo, culpado por estar e usufruir da terra: “Difícil explicar que o noticiário dos jornais às vezes não prevalece como verdade [..] – O papel aceita tudo, companheiro!” (BERNARDES, 1984, p. 103). Soma-se a isso a justiça que se faz cega: “Eles escrevem como bem querem os depoimentos, no fim mandam o peão assinar, e o caboclo não pode recalcitrar” (BERNARDES, 1984, p. 105).

Por esse e outros motivos, a história de permanência desse sujeito no campo vai se fazer itinerante, como ilustra a própria trajetória de Antonino no trilhar da obra, adentrando outras como Jurubatuba, Nunila e Memórias do vento, mesmo com nome diferente. Há sempre um rastro que estabelece a ligação entre as obras mencionadas, frisando o imaginário do sertanejo, do homem do campo, que migra para a cidade. Salutar destacar que no caso da barra da saia, em Nunila, a perdição não é simplesmente por uma mulher, mas por uma mestiça “meio sangue Carijó, bisneta no negro Mané Jirau, donde ela puxou a cor azeitonada, o nariz morcegueiro, os olhos rasos e espaceados, os cabelos um negrume e corredios” (BERNARDES, 1984, p. 40).

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Aspectos do imaginário goiano nos meandros entre decadência e progresso

O desvelamento da origem de Nunila não simplesmente a traduz como mestiça, mas, se por um lado a pontua como ser angelical e puro; por outro a caracteriza como primitiva e inferior, assim como todos os nativos que restaram no Arraial. Razão que inicialmente causa estranheza no narrador: “[...] fico sem entender como é que uma fêmea enxutona como Nunila ainda está disponível, parecendo que não tem nenhum pretendente. Chego a pensar que os machos dali, de Descoberto, não são inteiros” (BERNARDES, 1984, p. 27). E é pelos olhos de Agenor, bom companheiro, “discriminador de raça desses cheios de empáfias que querem ser melhor do que os outros” (BERNARDES, 1984, p. 29), que Antonino descreve e contesta o entendimento do amigo acerca de Nunila, nativa do lugar, vista como inferior, como gentinha, como povo primitivo. Imaginário que afigura-se sobre o sertanejo. Isso para o narrador em muitos momentos não se torna problema, já que:

Acho é vantagem as pessoas possuírem um caráter próprio sem nenhum desdouro disso. O povo sertanejo dali é todo de meio sangue tapuio, e Nunila não nega a raça. [...] Meia altura, quase baixota, roxona de cabelo bom. Agenor alega umas besteiras contra. Mestiçagem, condição que para mim não tem nada a ver, umas desvantagens de pouco alcance que não levo em conta. Contrário do meu pensar. O que para ele é defeito eu acho uma beleza, o máximo que uma tem para me cativar. (BERNARDES, 1984, p. 29).

Assim descrito, a conclusão que o narrador chega é que Agenor é que pertence a uma raça inferior, estrangeiro também do lugar. Antonino tinha planos de se casar com Nunila e inclusive se tornar coronel daquelas bandas. Isso não é muito diferente, embora ele negue, dos doutores pobretões que abandonavam suas terras e iam a Goiás para “abecar uma sertaneja possuidora de uma boa manada de gado e herdeira de uma sesmaria bem grande” (BERNARDES, 1984, p. 37). Mesmo defendendo a mestiça Nunila, quando qualifica o povo do Descoberto, lidando com a labuta do ouro sem praticamente nada receber em troca, como se ali não houvesse ambição, pretensão maior do que migalhas que matam fome e sede, o comentário que faz é:

– Preguiça demais da conta a desse povo! Ocupar o tempo com essa bestaginha que não leva ninguém adiante! Largo uma praga e Agenor geme que sim, concorda, considera que nenhum tem aspiração maior do que aquilo mesmo. Uns cobrinhos apurados nos fins de semana, a conta de arrumar um celamim de sal e a cachaça de sossegar as lombrigas – a essa gente é o bastante. Mais do que isso sobeja, e pra quê? Se o resto que precisam eles panham no mato sem maior esforço. Diz isto com ares de mangação, referindo-se com perfídia cordial a Nunila com o povo dela, a propósito de me espicaçar. Ralé! Raça inferior! (BERNARDES, 1984, p. 43).

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A fala do narrador, querendo ou não, acaba se entrecruzando com a de Agenor, dando a dimensão do alcance do imaginário que, em muitos momentos, é negado por Antonino. Antonino, em outras partes do texto, se percebe diferente do povo do Arraial, diferente de Nunila, talvez por isso um envolvimento maior entre eles não ocorre. E mesmo que o narrador de Nunila se empenhe deveras em evidenciar sua condição de desajustado, desses que os infortúnios da vida postergaram-lhe a errância enquanto única rota possível a ser seguida, não se pode desprezar o teor pedagógico das experiências socioculturais por esse narrador em trânsito. E se a errância radica na ambígua condição de percurso ao léu e na procura de um lugar para si no mundo, é o “estacar provisório”, nos rincões percorridos, que garante o intercurso contraditório de ideias, concepções de mundo, conceitos e preconceitos. A digressão abaixo revela isso:

Um pensamento que não me larga, me encabula imenso e me aborrece demais. O pessoalzinho fraco ali do arraial vive quieto, na pacatez dos arraias sertanejos. Garimpa seu ourinho semanal, tem suas rocinhas, vive à sua custa. A gente mais de longe, como os das Burguéias, do Coqueiro, do pé da Serra do Imbé, todos esses sertanejos cuidam de um aumento nos recursos da vida. Mesmo sendo fracos labutam e querenciam umas criaçõezinhas, colhem o mantimento da despesa, com uma sobra – umas criaturas que se não progridem amontoando fortunas, não são pesadas a ninguém. Fico nisto, às vezes noites adentro martirizando a idéia a fazer certas comparações. E ali o Mundico, com a sua catervagem, Henricão, Vitalino Cara-Torta, esses diabos, que serventia têm? Qual é o aumento de vida que eles dão à sociedade? (BERNARDES, 1984, p. 92).

Contradição que expõe a defesa por um pensar sobre a população do arraial, mas que escancara a visão que o leitor tem, em alguns momentos, de Antonino, mesmo fatigado pela rotina, pois ele sonha com uma rocinha para dela viver. Vasculhando a história de dona Filó, dos troncos que a precederam, o vestígio que se tem é de um francês de nome France Boussout que chegou a Descoberto por volta de 1911 para explorar o ouro no antigo acampamento dos Bandeirantes. Dizia possuir licença por parte do Estado não apenas para lavrar como para explorar terras. Ficou por muito tempo ali e sua permanência, pelo movimento que promovia, atraia gente, formando moradias na região. De casa adentro, colocou ali Jinuara, mãe de criação de dona Filó, sobrinhos e o bobo Badu. A miscigenação é evidenciada com a vinda da nação Carijó, trazida pelos Bandeirantes às terras goianas, que deserdada fugiu para a serra levando outros irmãos de escravidão, os negros; um que deixou enorme descendência foi Mané Jirau. Nunila é a mistura, portanto, de indígenas e de negros.

Nas terras do Arraial do Descoberto o que aparentemente se vê enquanto imaginário é a decadência da raça, como ditado por Agenor, mas também da época aurífera. Dimensão explicitada por Nasr Chaul quando aventa que em Goiás

O ouro escondeu diante de seu brilho fácil o nosso passado, a mão de obra escrava ocultou o índio, a economia determinou o nascimento da história sem povo e demarcou a infância de Goiás sob as rugas da decadência. [...] Tudo começa com o ouro. Pior: tudo acaba com o ouro. Inventaram para nós uma época de fausto e esplendor auríferos, como se a exploração das minas não fosse atividade predatória, a cigana de milênios, sem leitura de mãos calejadas, sem sorte grande. (CHAUL, 2010, p. 27).

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A decadência a que se refere o historiador foi sedimentada como

[...] um lugar totalmente desprovido de desenvolvimento urbano, alheio ao mundo do capital e do trabalho, carente de progresso. Uma terra que já havia sido algo, que já teria possuído certa relevância nas relações comerciais da época e deixara de ter qualquer representatividade no contexto das relações capitalistas que imperavam. Algo diferente, pois, da ideia de atraso, que era mais comumente usada para identificar lugares que nunca haviam conhecido nenhum desenvolvimento. (CHAUL, 2010, p. 24).

Isso é mostrado em várias partes da obra, por exemplo, quando Antonino descreve a pensão de dona Filó como uma casa enorme, uma das últimas que restara no povoado e que remontara a era faustosa das lavras de ouro, mas, que, com a decadência desse período, virou tapera, lugar de ratos e assombrações. Em outro momento o painel que se constrói é que:

Agenor é de parecer que a decadência e o atraso dessas cidades antigas, de beira de lavras, é que muito torturam e fazem a humilhação das pessoas. [...] Todos vivem no saudosismo, do que já era. Se alimentam dessas xenomanias. Nas suas conversas lamuriosas devaneiam invocando as glórias e a prosperidade do passado que a tradição oral mantém presente. “– Isto aqui já foi grande! Já teve muitas bancas de advogado. Vinha cá o Ouvidor, vinho o Juiz de Fora...”. Os mais velhos peroram em tom lamentoso, envolvendo com um olhar absorto e toldado de melancolia as ruinarias do lugar, os casarões senhoriais esmoronando, o mato crescendo nas ruas em meio ao taperão, os buracos das antigas lavras esborcinados. (BERNARDES, 1984, p. 82).

E mesmo sendo uma narrativa erigida em acordo com o cânone da decadência, uma vez que, no Arraial do Descoberto, o cenário encontrado, quando de sua chegada apresentava, “casas com as portas fechadas, cachorrada bradando por toda a parte, o mais tudo quieto e deserto, como se o povo todo tivesse morrido largando o lugar a espera” (BERNARDES, 1984, p. 13). Apesar disso, o narrador de Nunila desconfia dos excessos cedidos à suposta saga do Eldorado goiano, da era opulenta e dissipadora que permitia encontrar o ouro fácil, que se podia pegar com as mãos livremente na natureza. Sua apreciação é notadamente mais modesta uma vez que:

Noto que essa gente diz isso com uma indisfarçável ponta de orgulho. Dou seguimento à conversa, aparento espanto e interesse. Apois o que menos custa é ser agradável, se bem que a língua coça, uma vontade enorme que tenho de questionar. Se eram tantos os advogados, as demandas também seriam dez vezes mais do que é hoje. Contenho-me na conveniência de calar, travo a língua, engulo em seco. Sempre digo que o arraial ali tem tudo para reagir, ir adiante, prosperar. Com a rodagem passando, muita gente chegando, é de se esperar grandes demudanças. (BERNARDES, 1984, p. 82).

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O discurso sobre decadência assenta-se em seu contrário, no progresso, que desmantela não apenas o povoado, mas o povo que ali vive. Em uma das histórias narradas, sobre a solicitação de um padre ao bispo de Salvador, para se fazer presente na cidade importante que era Descoberto, o desafio era encontrar um padre que pudesse transladar-se “para os sertões de Goiás, terra de índios, de casais amancebados, de muito mais negros cruzados com tapuios do que de branco de sangue limpo” (BERNARDES, 1984, p. 85).

Por mais que Antonino contestasse, dizendo “Mas tem aquela indaca de considerar que sertanejo é raça inferior, e eu acho que raça de gente é uma só” (BERNARDES, 1984, p. 92), ao sertão, exigia-se transformação para se enquadrar nos preceitos modernistas que se faziam sentir na expansão da agropecuária, na disputa por terras e na própria eliminação do sertanejo, acusado de comunista:

Nas rodas em que Mundico esteja, com Hernricão, Vitalno Cara-Torta, o bando de garimpeiros no que chagam os agenciadores de negócio, gente de fora, a conversa mais acesa é a de que sertanejo não traz progresso. É bicho acanhado, não toca uma lavoura que preste, não grama uma invernada, não tem civilização. Só querem saber e de vierem vender umas poucas gramas de outro todo sábado, beber cachaça e vadiar. (BERNARDES, 1984, p. 83).

Para que o progresso e a civilização pudessem ser impulsionados, até o sertanejo teria que ser eliminado. Nos jornais das grandes cidades, o que se noticiava era que “Está escrito que comunistas são os lavradores, que eles chamam ora de camponeses, ora de posseiros” (BERNARDES, 1984, p. 56). O sentido de camponês e posseiro não era sem razão; se camponês, era preguiçoso, inferior, devia mesmo ser expulso da terra; se posseiro, era apropriador de terra alheia, cuja escritura era forjada, pois fatos não adiantavam, o que valia mesmo era a justiça dos homens da cidade que “não reconhece documentação assim, que não seja preto no branco, papel selado. Evidência não vale” (BERNARDES, 1984, p. 55).

Há de se notar que o romance apresenta indícios do que se passa em meados da década de 1970, uma vez que alude aos ímpetos dos projetos agropecuários promovidos ora pelo capital nacional, ora pelo capital estrangeiro, ambos em conluio com os projetos governamentais do Estado brasileiro que, no limite, implicaram numa “reconquista” do cerrado goiano e do Brasil Central, convertendo-o drasticamente aos ditames do modelo homogeneizador da produção de grãos e gado de corte de grande procura no mercado internacional. Para tanto, não só as formas mais arcaicas de acesso à terra, como a posse, a parceria, como todos os dispositivos legais que emperravam o avanço dos interesses dos grandes proprietários em aumentar suas propriedades, deveriam ser suprimidas.

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De acordo com Maria Isaura Pereira de Queiroz (1978), por volta da metade da década de 1960, uma considerável parcela dos trabalhadores rurais no campo brasileiro pertencia à categoria de pequenos trabalhadores independentes, sejam eles sitiantes, posseiros ou pequenos proprietários em geral. São esses seguimentos sociais que sobejam nas páginas de Nunila, com o agravante de que o romance ainda informa sobre a situação de uma comunidade quilombola que, numa leitura mais rasa da realidade, vivia a expensas dos demais moradores da região.

Considerações finais

A essa altura, se pudéssemos apontar os princípios móveis da estrutura narrativa do presente romance, talvez chegássemos à seguinte encadeação: as desventuras do narrador, marcadas por heranças “benditas” e “malditas” do convívio com pais e familiares que, inclusive, teriam moldado seu caráter movediço e ambivalente ante aos valores que estimam ou subestimam o trabalho, o lazer, a propriedade, a frugalidade, a simplicidade, a excentricidade, etc.; sua incontornável condição de mulherengo, mas que, com efeito, “as negras puseram freio e passaram barbicacho” (BERNARDES, 1984, p. 100); a questão da luta pela posse e usufruto da terra, expondo os desacertos, os anacronismos, as tensões e os embates entre grandes proprietários rurais, ciosos da manutenção e/ou expansão de seus domínios, e demais trabalhadores rurais, forçosamente incluídos na genérica condição de posseiros; e, por fim, a mística do ouro, sobretudo do ouro entesourado, dos “grandes bambúrrios”, cujo efeito delirante unificava os êmulos de garimpeiros de diamante, de ouro e de cristais de rocha (BERNARDES, 1984, p. 142).

Vê-se, de passagem, no entanto, que a narrativa não se submete plenamente à lógica da interpretação decadentista da história de Goiás, tampouco filia-se a uma interpretação mais nuançada sobre o estatuto de decadência, ruína, abandono e atraso. Historicamente, a obra ocupa uma espécie de antessala do vigoroso revisionismo que caracterizou os estudos historiográficos goianos, assinalados a partir da década de 1990. Mesmo assim, Bernardes não se furtou a entabular um romance de grande pendor à crítica social e política das desigualdades sociais e das iniquidades humanas que ombreiam o já acelerado processo de conversão territorial de Goiás à lógica da ferocidade do capital, interessado tanto em monoculturas modernas, quanto em “invernadas” onde o boi impera soberano.

O arremate da narrativa expressa a expulsão premente de Antonino do Arraial, como já vinha ocorrendo com outros homens varridos do campo, acusados de comunistas, a partir de espúrias provas, de produção de alvará impedindo qualquer exploração do minério ou do que restou dele pela população que lá residia. Antonino foi acusado de espião, visto como homem sabido, leitor de muitas obras, escritor de livros, treinado em Cuba. Assim, ele “migra” para a cidade, para a capital de Goiás – Goiânia – buscando meios no submundo, na periferia, como tantos outros, para driblar, por inúmeras artimanhas, as usuras provenientes da impetuosidade do capital sob a indagação de que “Quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão?”, dando continuidade a saga bernardeana que vai resultar em Memórias do vento, outro ilustre romance do escritor.

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Notas

1.(UFG)

2.(UEG)

3. O presente estudo não intentou evidenciar os principais marcos de uma “geo-história da formação territorial goiana” que, no caso presente, alumiaria as diferenças, as interfaces e as minúcias das distintas formas pelas quais o território goiano foi sendo capturado pela lógica da acumulação de capital, sobretudo, a partir do último quartel do século XX. Muitos estudos se debruçaram sobre tais processos, interceptando por meio dos discursos geográfico e histórico temas longamente tratados por Bernardes. A título de exemplo podemos citar o trabalho de Barreira, que explora a “opção” pelo boi – pelas invernadas que tanto fala o autor de Nunila –, enquanto outras paragens se moveram para acomodar as monoculturas de commodities. Outros trabalhos também tangenciam os fundamentos de tais especializações territoriais, no entanto, nos limitamos a citar os de Chaveiro (2005) e Teixeira Neto (2008) pela amplitude da problemática então tratada.

4. A esse respeito ver Bertran (2006), Sandes (2002) e Chaul (2010).