Geovanna Gonçalves de Sousa
gege-39@hotmail.com

EIXO
Políticas educacionais, currículo e Livros/materiais Didáticos.

A origem do livro didático

81

Resumo:O livro didático faz parte da tradição escolar desde os tempos de Comenius, sendo sua presença muitas vezes inquestionada. Portanto, este trabalho objetiva refletir historicamente sobre seu surgimento. A metodologia utilizada para este estudo foi a da pesquisa qualitativa, por meio da pesquisa documental. Ao tratar, portanto, de um material que faz parte da rotina escolar, é necessário compreender a sua origem até a sua forma atual, tendo início em Comenius que tinha como objetivo “ensinar tudo a todos” em um processo parecido com o das manufaturas, sendo: divisão do trabalho, barateamento da força de trabalho, formação aligeirada e, como consequência, o esvaziamento do conteúdo científico, sendo esses pontos significantes na educação após a adoção do livro didático. O presente trabalho é parte de uma pesquisa voltada para análise do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Palavras-Chave:Livro didático. Professor. Simplificação.

Introdução

O livro didático tem estado presente nas escolas públicas brasileiras como uma parte da rotina escolar, há tempos. De acordo com Silva (1996) “[...] o livro didático é uma tradição tão forte dentro da educação brasileira que o seu acolhimento independe da vontade e da decisão dos professores.” (p. 08). Por isso, é comum que ao chegar a uma escola, tanto alunos quanto professores, recebam os livros didáticos para uso em sala de aula por meio de textos, exercícios e até mesmo cópias do conteúdo que está contido no livro, servindo de material de pesquisa para a organização das aulas dos professores. Deste modo, ele se torna parte da rotina escolar, portanto, este trabalho objetiva refletir historicamente sobre o seu surgimento que resultou no modelo do livro didático que se faz presente dentro das salas de aula nos dias atuais e que forma parte desta tradição escolar.

Metodologia

Para aprofundar no tema, o presente trabalho fez uso da abordagem qualitativa, que é uma proposta de investigação usada nas ciências sociais com base nos fenômenos, ou seja, nas ocorrências diárias que são passíveis de observação. Segundo Neves (1996) a pesquisa qualitativa:

Compreende um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam a descrever e a decodificar os componentes de um sistema complexo de significados. Tem por objetivo traduzir e expressar o sentido dos fenômenos do mundo social; trata-se de reduzir a distância entre indicador e indicado, entre teoria e dados, entre contexto e ação (MAANEN, 1979, p.520 apud NEVES, 1996, p.1)

Segundo Neves (1996) na pesquisa qualitativa existem ao menos três possibilidades de abordagem de pesquisa, a saber, a pesquisa documental, o estudo de caso e a etnografia. O presente trabalho utilizou a abordagem da pesquisa documental, que para o autor Vieira (2010), trata da análise de documentos considerados oficiais, que são de domínio público resguardado por lei, que transportam elementos históricos da sociedade de um determinado período, além de dar ao pesquisador a oportunidade de explorar e buscar novidades dentro do tema. Para tanto, a coleta de dados foi obtida exclusivamente por meio dos documentos oficiais selecionados e de literatura acadêmica que favoreceram a cientificidade dos resultados.

82

Resultados e discussões

O livro didático, conhecido a priori como manual didático, era um objeto de ensino que deveria ser usado pelo professor como um meio de conduzir os conhecimentos em sala de aula. Segundo Paniago (2013), o primeiro modelo vai surgir a partir da didática promovida por João Amós Comenius, que se propôs a “ensinar tudo a todos”, economizando tempo e esforço. Dessa forma, segundo a autora, o modo como o manual didático foi formado manteve grande relação com o processo manufatureiro:

Estudando a obra de Comenius, Alves (2001; 2005) pôde perceber a relação estreita entre a proposta de ensino do educador morávio e o processo de manufatura, surgido com o desenvolvimento das forças produtivas à época. Alves (2001) afirma que o trabalho manufatureiro se evidenciou na escola comeniana na medida em que, ao trazer para a atividade de ensino a divisão do trabalho das manufaturas, o antigo mestre, o preceptor, que dominava todo o processo de ensino, desde a alfabetização até as “noções humanísticas e científicas mais elaboradas”, deu lugar ao “professor manufatureiro”, especialista em tarefas parceladas do processo de escolarização, isentando-o, assim, do domínio total da formação dos alunos. “Em consequência do ponto de vista teórico o professor poderia conhecer menos, do que se conclui que estava submetendo-se a um processo de especialização idêntico ao que atingira o artesão [...]” (ALVES, 2001, p. 91 apud PANIAGO, 2013, p. 37).

Por esta perspectiva, podem-se ressaltar aspectos importantes que acompanharam o manual didático: divisão do trabalho, barateamento da força de trabalho e a formação aligeirada. A princípio, antes de existir o livro didático o professor era considerado o mestre, detentor de um conhecimento amplo, tendo a compreensão de todo o processo de aprendizagem desde a alfabetização até as idades mais avançadas como “noções humanísticas e científicas mais elaboradas” (p. 37), baseando-se em antologias e livros clássicos, ou seja, um ensino embasado no social, no cultural e no conhecimento cientificamente acumulado direcionado para um número restrito de alunos. Mas, com o advento do livro didático, o trabalho do mestre é repartido, formando o professor especialista em uma determinada área do conhecimento (professor de matemática, professor de história, professor de geografia, etc.), tendo-se assim a divisão racional do trabalho dentro da escola, podendo ser comparado ao trabalho promovido pelas linhas de produção em que cada trabalhador domina apenas uma parte do processo produtivo. Assim, na escola, o professor passa a entender apenas uma parcela do processo educacional, aprofundando-se em sua especialidade (português, matemática, história...), perdendo a visão da totalidade do processo educativo, ocasionando na simplificação do trabalho docente na medida em que já não lhe era exigido ter um conhecimento amplo das diferentes áreas do conhecimento.

83

Em consequência da divisão do trabalho, ocorre o barateamento da mão-de-obra, assim como acontecia nas manufaturas por, em tese, o professor ter menor conhecimento do que os antigos mestres e pelo maior volume de professores. Também é possível destacar que a formação desses professores ocorreu de forma aligeirada, ou seja, sem a necessidade de rigor científico e cultural, com a finalidade de suprir a elevada demanda do momento, já que a indústria estava em alta (período inicial do Capitalismo) e era necessário que os trabalhadores que conseguissem ler, escrever e somar para ocupar as vagas nas fábricas. Essa formação aligeirada acrescentou desvalorização à profissão docente, afinal, era fácil se ensinar, bastava apenas seguir o que o livro didático indicava, deste modo, qualquer pessoa poderia ser professor sem necessário rigor e sem formação específica.

Portanto, o livro didático passa a ser o objeto central do ensino e o trabalho do professor fica reduzido à responsabilidade de aplicá-lo, usando-o como instrumento de pesquisa para se orientar. O problema é que quando o livro didático foi criado houve uma sintetização do conhecimento, passando dos livros clássicos e das antologias (sendo considerados caros e não universalizados) aos manuais didáticos que selecionavam os conhecimentos, ao que Alves (2006) afirma que o livro didático “dispensou da escola o livro clássico” (p. 77), mas também serviu como forma de controle dos bens historicamente acumulados, uma vez que os conteúdos passaram a ser escolhidos e resumidos, inclusive, por pessoas que se encontram fora do processo escolar, sendo que, atualmente, são pensados por editoras e empresas que buscam fins financeiros, havendo assim uma secundarização da formação humanística, negligenciando-a.

Como é possível perceber, a concepção criada por Comenius acerca do livro didático (manual didático) se arrastou por gerações e está presente atualmente nas escolas, sendo que suas principais características são um livro único que “simplificou e objetivou o conhecimento” (PANIAGO, 2013, p. 60), esvaziando o conteúdo científico, filosófico e cultural da rotina de professores e estudantes. Também é possível perceber a desvalorização da carreira docente pelo pouco investimento na formação acadêmica e continuada dos docentes baseada em conhecimentos que não incentivam o professor à reflexão, formando um professor dócil e obediente com a função de reproduzir (aplicar o método) sem as condições necessárias tanto do ponto de vista intelectual quanto ao tempo de trabalho. Além disso, a redução dos salários resultou em desprestígio para a profissão, aumentando a desvalorização docente. Sendo assim, a forma como o livro didático foi pensado contribuiu para a redução do compromisso com a ciência, com a veracidade dos fatos e aprofundamento de conhecimentos, apontando o que deveria se aprender e o que deveria ser omitido dessa aprendizagem.

Referências

ALVES, Gilberto Luiz. A produção da escola pública contemporânea. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.

NEVES, José Luis. Pesquisa qualitativa – características, usos e possibilidades. Caderno de pesquisas em administração, São Paulo, v.1, n. 3, 1996, 5 p. Disponível no endereço: http://www.hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/NEVES-Pesquisa_Qualitativa.pdf. Acesso em: 06/09/2021.

PANIAGO, Maria Lucia. “Livro” didático: a simplificação e a vulgarização do conhecimento. São Paulo: Instituto Lukács, 2013, 96 p. Disponível no endereço: https://www.institutolukacs.com.br/single-post/2015/04/01/livro-did%C3%A1tico-a-simplifica%C3%A7%C3%A3o-e-a-vulgariza%C3%A7%C3%A3o-do-conhecimento. Acesso em: 31/05/2021.

SILVA, Ezequiel Theodoro. “Livro” didático: do ritual de passagem à ultrapassagem. In: LAJOLO, Marisa. SILVA, Ezequiel. ZILBERMAN, Regina. et al. Livro didático e qualidade do ensino. Em aberto, Brasília – DF, v. 16, n. 69, 1996, 86 p. Disponível no endereço: http://www.emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/issue/view/210. Acesso em: 22/08/2021.

VIEIRA, José Guilherme Silva. Metodologia de Pesquisa Científica na Prática. Curitiba: Editora Fael, 2010, 152 p. Disponível no endereço: https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/230334/mod_resource/content/1/LIVRO-Metodologia%20de%20Pesquisa%20Cient%C3%ADfica%20na%20pr%C3%A1tica.pdf. Acesso em: 29/06/2021.